Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Minha avó costumava me contar que toda esta região era pacífica e silenciosa até a segunda década do século, que ela mesma viveu numa casinhola entre árvores, beijada pela sombra fria da mata. Mas veio o café, veio a guerra, a estrada de ferro, vieram as armas. Mataram os índios, abriram clareiras, começaram a produzir. Mas em pouco tempo a terra negou seu seio, os cafezais feneceram, os fazendeiros faliram. O povo restou pobre, em uma terra mais seca e nua. Os trilhos de ferro recuaram, abandonando estações ilhadas nas montanhas.


Nasci aqui, sentindo esse vento seco e duro que cresta a alma e corta a cara, que arranca as folhas das árvores, como se tentasse arrancar os homens da terra. Mas eles só sairão quando chegar a hora da colheita. Toda vez que eu olhava os morros erodidos, as encostas peladas, a terra retalhada com cercas e dividida em lotes de cores diferentes eu me sentia cúmplice dessa violência.

Este ano, porém, começou diferente. O cheiro do ar foi outro desde o início, os dias foram encolhendo, as noites ficando mais frias e quando eu olhava as bordas dos morros cortadas contra as nuvens eu tinha calafrios, temendo que essa Hora maldita estivesse a caminho.

Nas primeiras semanas eu me senti assim, sozinho. Não tinha coragem de falar com ninguém, porque desde menino tivesse essa fama de sensível, de fresco, de frágil. Nem os calos duros em minhas mãos, nem minhas botinas armadas com arame, nem o cheiro forte da terra em meu corpo conseguiram apagar as impressões que os outros tiveram de mim no dia em que saí de mim e disse aquelas coisas que ninguém nunca ousou repetir.

Mas quando o outono começava a envelhecer, notei que não era mais o único. Podia pressentir que os jovens estavam irrequietos  que os velhos estavam mais abatidos. Alguns sonhando em voar, outros querendo dobrar definitivamente as asas. Então senti voltando a mim a sensação, e os cheiros, que me abateram naquela tarde de criança. Eu pressenti a proximidade do escuro, eu enxerguei as dobras do destino direcionando o correr de nossas vidas para o canto da mesa, para a caçapa inevitável. Senti a Presença pela primeira segunda vez, mas não tive medo nem ódio, aliviei-me de toda irritação e adorei aquela época do ano.

Os Gonçalves então apareceram com a notícia de que estavam indo embora. Eles tinham uma fazenda grande, com várias casas, currais, tulhas, silos e cocheiras. Tinham feito um trabalho bonito, por vinte ou trinta anos, desde que o velho Nhonhô Gonçalves chegara de Itaperuna cheio de dinheiro, que as más línguas diziam ser mal havido, e comprora a terra de um colono antigo, que eu nem chegara a conhecer. Eles trabalharam muito, fizeram render o seu dinheiro, tinham vacas, tinham milharais, canaviais, um pomar que dava gosto. Então veio aquela seca longa do ano retrasado, emagrecendo o gado, matando o milho plantado, prejudicando a cana. E justo quando a seca acabava apareceu a praga da erva roxa nos pastos, intoxicando os animais famintos que comiam tudo.

Perderam muito dinheiro, tiveram que vender as vacas boas enquanto valiam alguma coisa, muitas morreram vacas de fome, muitas ficaram vacas maninas, cresceram bezerros de pelo ruço, novilhas de tetas murchas.  Um gado sem valor, em uma terra que precisava ser roçada de novo, com uma praga que ninguém sabe de onde veio, como se o próprio demônio tivesse passado semeando.

Agora estão finalmente vendendo, e é uma tristeza ver os garotos com os olhos cheios de água, tentando sorrir enquanto põem preço naquilo que nada paga. Dizem que vão comprar caminhões, ganhar a vida no transporte de carga. Enquanto eles falam eu escuto um vento soprando forte, um vento que arranca folhas das árvores. O vento que anuncia que chegou o tempo de colher. Os dias continuaram encolhendo, as noites ficando frias. Colheita no inverno, colheita mais amarga. Os jovens irrequietos, os velhos andando de cabeça baixa. Eu sei que a escuridão está mais perto, alguma presença está aqui. Parece que o clima mudou, mas eu não estou mais gostando dessa época do ano.

Sempre vivi nesta casa de fazenda. Hoje fazem dez anos que meu pai morreu. Foi num agosto ventoso como esse, talvez ali eu tenha ouvido esse vento pela primeira vez. Herdei esta terra, estas cercas, estas pobres vacas, companheiras de meu infortúnio, pobres reses que eu nunca consegui vender. Não sei bem do que eu vivo, o leite que tiro mal dá para comer. Tenho a herança de uma tia rica, o ódio de uma mulher que me deixou. Faz muito tempo que não tenho medo, muito tempo que não sentia nada mau. Tinha aprendido a conviver com esta terra, deixar crescer o mato, receber a chuva, proteger a ave, abrigar o bicho. Dizem na cidade que eu também virei meio bicho, só porque não consegui cortar a árvore que nasceu debaixo do Mustang que ficava na garagem. Garagem que já caiu de podre porque não a uso: por que me enjaular entre dobras de ferro e produzir fumaça ruidosa pelo mundo? Vou a pé aonde vou, e sempre é perto. Dizem na cidade que a lucidez também me deixou.

Os Gonçalves eram meus últimos amigos. Catarina a última mulher que não me achava louco. Teria sido minha esposa se eu quisesse, me ajudaria a cuidar de meus coqueiros, meus horta, minhas laranjeiras, de todos esses pássaros que pousam na varando cada silenciosa tarde. Eles me dão uma música melhor que qualquer rádio.

Ficará um buraco em forma de Catarina em minha vida. Um buraco na forma de cada amigo que vai embora, na forma de deus que nunca vi, na forma de cada alegria irrepetida que nunca descobri.

Então esta tarde veio o homem de longe, com cabelos penteados, camisa branca de riscado roxo. Enverga botinas pontiagudas, sem esporas, porque sua montaria é dessas de que não gosto.

Ele me falou de coisas que não entendo — como dinheiro, eucaliptos e carros. Fala em derrubar estas espertas, angicos, paineiras, jenipapos, imbaúbas e ipês. No lugar de todas estas cores e perfumes diferentes, uma árvore apenas há de imperar, com sua resina roxa, seu aroma doce.

“Apenas oito anos”, ele diz, “e pode-se vender a um preço exorbitante. Tão exorbitante, aliás, que eu estou disposto a contratar agora a venda, para protegê-lo da possibilidade de que em oito anos tanta gente tenha plantado que o preço nem seja mais exorbitante. Aproveite esta oportunidade única na vida, está na hora de ganhar dinheiro outra vez, sacudir a poeira desta terra adormecida.”

Eram palavras bonitas, mas eu só consegui me fixar nas listras roxas de sua camisa, pensar nas folhas roxas da praga que matou o gado dos Gonçalves e vai levando embora Catarina. Nada de bonito pode vir de alguém que usa roxo. Cor de morte, cor de hematoma, cor de luto de homem, pois homem não se veste de viúva.

“Uma terra tão grande normalmente a gente oferece em parceria, mas se o senhor preferir podemos fazer-lhe um preço muito bom por seus cento e vinte alqueires.”

Não, não venderei a terra, nem plantarei eucaliptos. Tenho trinta anos e ainda tenho alguns mognos para ajudar a crescer. Espero um dia estender minha rede entre os dois jacarandás que plantei na entrada do terreiro, como sentinelas a bloquear a entrada de qualquer carro.

“Sua propriedade vai ficar isolada entre todas as outras, única ilha de mato e pasto sujo num mar de montanhas verdejantes de reflorestamento.”

Que seja, mas há uma beleza nas ilhas. As únicas que eu conheço são as que existem no rio, que eu costumo contemplar quando vou à cidade receber alguma venda, verificar a renda que me legou a minha tia e fazer minhas compras. São pedaços bonitos de terra que resistem no meio do rio, deixando a água passar ao largo, a turbulência ir embora. Resistem à enchente até. Que seja, minha fazenda será uma ilha. E eu o habitante feliz, Robinson Crusoé eternamente a espera de que não me resgatem dela. Espero viver muito, tenho de me cuidar. Enquanto estiver vivo talvez consiga proteger o trinca-ferro, o mão pelada e a preá.

Que sopre o vento o quanto quiser. Que leve embora as folhas doentes das árvores. Pode ser o tempo de colheita delas, mas as folhas vivas, que ainda bebem a seiva da terra, estas não vão ser arrancadas pelo primeiro vento.

Quando ele foi embora eu senti a escuridão mais perto do que nunca. Senti uma presença estranha aqui por perto. Estava perto da noitinha, mas eu não tinha medo. Faz muito tempo que não acontece nada estranho, esta terra nunca me fez mal. Nunca fizera mal aos índios que ficaram, os que a entenderam.

Mas o calafrio continuou, uma sensação de algo forte caminhando entre os galhos emaranhados, algo acinzentado, peludo e frio. Não tenho medo, mas não saio à noite quando pressinto isso. Fico na varanda contemplando o escuro, e o escuro me contemplando com seus olhos amarelos, que às vezes piscam. Acho que o estranho não deveria ter sido tão ousado, não a ponto de vir aqui em carro conversível.

Os grunhidos que ouvia longe, contidos, pareceram mais perto. Os olhos não estavam me olhando enquanto eles estalavam na noite. Ouvi o motor de um carro acelerar ao máximo, bater contra a minha porteira com a força de quebrá-la, mas por felicidade desapareceu pela estrada aos poucos. Pude ouvir o motor um longo tempo, como se a distância não aliviasse o pé do estranho de camisa roxa. Que nunca mais voltou, nem voltaria sob a mira de uma espingarda.

Ele talvez não saiba, mas não deveria ter falado comigo tão ríspido. Todos me chamam de louco, mas ninguém me incomoda. Não desde que o filho do Gracindo, aquele idiota, veio tentar caçar minhas capivaras. Eu o proibi, adverti, implorei, mas ele me estapeou, abusando de sua força e me chamando de maricas. Entrou na mata e não voltou. Sua mãe só o viu de novo embrulhado em plástico preto, uma fotografia ampliada colada no lugar do rosto.

Tentaram me acusar, mas não havia como associar minhas mãos com aquelas marcas, meus dentes com aqueles nacos de carne arrancada. Mataram uma pobre onça nestas redondezas e deram o caso por terminado. Isso é o que a polícia diz, mas ninguém nunca mais entrou na minha terra pensando em caçar. O povo daqui é mais esperto que esses polícias que vem de Ubá ou Muriaé, e não entendem a língua da terra. A diferença é que eu, diferente do povo, não tenho medo. Não vou me deixar levar.

Os Gonçalves foram embora hoje. Estava lá na despedida, barbeado pela primeira vez em meses. Uma cena de fazer chorar, os pobres homens, despossuídos de suas vidas, condenados a vagar no mundo conduzindo máquinas, a maldição da terra. Catarina estava entre eles, parecia mais triste que todo mundo. Não fui o único a notar que lhe haviam dado remédio outra vez, e amarrado suas mãos e pés.

Voltei para casa triste, sentindo a vida me escapar. Sentei na varanda olhando a noite, ouvindo os curiangos no terreiro, e sentindo falta dos olhos amarelos que me acompanhavam nestas solidões frequentes.

Então ouvi de novo o grunhido, e tampouco tive medo. Tanto faz à vida, se a gente morre tarde ou cedo. Mas a fera não tentou morder, nem veio junto a mim. Apareceram os seus olhos, amarelos, na penumbra do terreiro. E no dia seguinte eu encontrei na horta um lenço arrebentado, como se tivesse amarrado os punhos de alguém.

02
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar

A Zona da Mata Mineira vive hoje uma crise – humana, econômica e ecológica. Por toda parte onde se vá, encontramos a descaracterização cultural, a perda das tradições orais, o esquecimento do artesanato (e da própria história) e, mais grave que tudo, uma absurda destruição da natureza que, de tão arraigada, deixou de significar apenas a remoção da vegetação nativa e agora está chegando à remoção do próprio solo e das montanhas: percorrendo a região vemos morros pelados, terra aparente, erosões, cursos d'água assoreados. A Zona da Mata deixou de merecer esse nome: hoje é uma região em processo incipiente de desertificação.

“No começo isso aqui era só mato, bicho e índio. Mas nós limpamos a terra e a fizemos produzir.” A frase foi dita, de verdade, por um proprietário de terras da Zona da Mata Mineira, em algum momento nublado de minha infância. Ele certamente não se lembrava de quando chegaram os primeiros colonos, procedentes do norte do estado do Rio de Janeiro ou dos Campos das Vertentes, mas a presença dos três elementos definidores – mato, bicho e índio – perdurou durante décadas depois, permaneceu no imaginário do povo até bem há pouco tempo. E eu sempre achei curioso como a gente de minha terra contava sua história.

Conheci pessoas que diziam que um ou outro de seus antepassados havia sido “índio pego a laço no mato” – uma referência oblíqua a indivíduos sobreviventes dos massacres dos grupos isolados de tapuias, puris, goitacazes e outros povos ameríndios que aqui viviam. Quando os colonos brancos vieram, trazendo seus escravos e seus machados, a presença dos índios foi sendo extirpada, junto com o mato e com os bichos. As três palavras foram sempre empregadas em um tom pejorativo.

“Mato” era, no português coloquial de antigamente, uma palavra carregada de negatividade. Dizer que algo “era mato” era como dizer que era vulgar, que era encontrado em qualquer lugar. O “mato” era, também, o lugar desorganizado, o caos primevo. “Bola para o mato, que o jogo é de campeonato” e “fugir para o mato” são expressões que mencionam esse sentido. Joga-se a bola para onde ela desaparecerá, para retardar o jogo. Foge-se para longe do alcance do braço da lei. No meu tempo de criança ainda corriam histórias de pessoas que fugiam das cidades e vinham “para o mato” trabalhar em terras de coronéis, e que não eram presas se esses não deixassem, porque a polícia não entrava nas propriedades. Remover o “mato” era um processo civilizatório. Lembro-me de como a professora leiga, de minha escolinha rural, me contou, embevecida, como seus antepassados “desbravaram” a terra. “Desbravar” é cognato de “bravio”. Envolve um sentido de “doma”. Desbravar é amansar a terra. É tirar o mato, o bicho e o índio. E eu me lembro até hoje do desenho que fiz, de um colono enxugando o suor da testa, apoiado em seu machado, no meio da lida hercúlea de derrubar árvores em um campo imenso.

Meus antepassados odiavam árvores. Tanto que construíam suas casas em clareiras lisas, os “terreiros”. O tamanho do terreiro estava vinculado ao poder do proprietário. Viver em uma casa isolada no meio de um terreiro imenso era para os coronéis, ou quem tinha dinheiro equivalente. Manter o terreiro limpo envolvia o trabalho de muitos homens, para remover as folhas do mato, arrancar as ervas que teimavam em nascer. O terreiro era também uma proteção natural contra emboscadas. À noite, mesmo sem lua, era mais fácil ver alguém tentando atravessá-lo para atacar a casa. Mais fácil do que seria se em vez de terreiro a casa fosse cercada de árvores.

“Bicho” tinha um sentido ainda mais forte. A palavra “animal” era reservada para as bestas domesticadas: cavalos, mulas, vacas, jumentos, cabras, ovelhas. Pequenos animais domesticados, ou que viviam próximos à casa – como gatos, ratos e lagartixas – eram chamados de “bichos”, assim como os insetos (bicho-de-pé, por exemplo). Os outros eram os “bichos do mato”, vistos como “invasores” e predestinados à caça ou ao mero extermínio porque interferiam na economia. E o colono sabia muito bem que remover o mato era uma maneira eficiente de afastar o bicho, sem ter que matar cada um, correndo risco. Por isso as grandes queimadas, por isso “desbravar” até mesmo encostas de ângulo impossível para a agricultura e a pecuária. Era preciso “limpar” a terra, para que o bicho não ficasse perto. A onça, o quati, o piriá, a jaguatirica, o guará, o guaxinim, o maracajá, o mão pelada, o caboclo d'água, a lontra – todos bichos que, embora fossem bonitos alguns, tinham o infeliz hábito de ver nas galinhas das fazendas uma caça mais gorda e mais fácil do que os magros e velozes pássaros “do mato”.

E o “índio”, por fim, era o “bicho” por excelência. Dotado de uma inteligência “quase humana”, reunia a ferocidade e a matreirice. Por isso o ódio que despertava no colono, de forma espontânea e natural. Se algum era capturado e trazido à fazenda, era para ser simplesmente morto ou escravizado. Poucos comentam, mas os antepassados pegos a laço eram, em geral, mulheres. Estuprar a índia e fazer filhos nela era uma forma de subjugar este animal estranhamente humano que vivia em torno das regiões de colonização incipiente. Mas uma vez trazido à civilização, se “aprendesse a falar” (o que geralmente só acontecia com crianças) e conseguisse aprender uma profissão, o índio não era mais um inimigo, apenas outro elemento subjugado, na estrutura de poder da grande fazenda.

Não podemos esquecer essa mentalidade se quisermos entender o desastre. Os colonos removeram a mata para afastar o bicho e para exterminar o índio. Removeram a mata até mesmo nos lugares onde isso nem era necessário, como encostas de pedreiras com ângulo de sessenta graus. No lugar da mata plantaram monoculturas que não ofereceram cobertura ao solo, as mais recentes são o eucalipto e a brachiaria. O uso frequente da queimada enfraqueceu a terra, salinizou-a, acidificou-a. Queimada proposital, ou queimada acidental, causada por balões, raios, acidentes domésticos ou, em dias excepcionalmente quentes, pedaços de vidro perdidos em moitas secas. Nos lugares mais queimados já não cresce mais nada: a terra está pelada, mostrando sua derme, vermelha ou amarela. Sem cobertura a chuva arranca e arrasta: surgem erosões imensas. A terra solta vai para os riachos, que ficam rasos e largos. As nascentes são sufocadas, riachos secam na estiagem, coisa que nunca se imaginou acontecer por aqui.

E este desastre acontece aos poucos, sem que ninguém proteste. Os jornais não comentam. A televisão não fala. O cadáver vai apodrecendo e é como se ninguém sentisse o cheiro. As pessoas dirigem pelas estradas olhando exclusivamente para o asfalto, sem ver as feias marcas de destruição que perfilam ao redor. Tal como, nas cidades, ignoram os mendigos, ao sair delas ignoram a destruição.

Ninguém quer ver, porque ninguém quer admitir que tem alguma responsabilidade. Não fomos nós, foram nossos pais, avós e bisavós. Nossos netos e bisnetos também dirão que não foram eles, mas que fomos nós – mas nós estaremos mortos então, o que significa que não veremos seus dedos apontados em nossas caras, e não precisaremos ter vergonha da acusação. Por isso podemos ficar inertes, sem nada fazer, sem nada dizer.

Nascemos em uma cultura violenta, uma cultura de genocídio, estupro, desmatamento, queimada e depredação. Matamos ou “pegamos a laço” os índios, arrancamos as árvores, secamos os brejos, queimamos os montes, destruímos os sinais de tudo que houve antes de nós. Tomamos posse da terra através da terraplenagem e da espólio. Esfolamos a terra, tiramos sua pele, para que crescesse outra, nova, nossa. Agora vemos essa pele que nasceu, ressecada, feia, cicatrizada, e não a queremos. Eis o fruto da ira e da cobiça de nossos antepassados. Até quando os desculparemos, até quando nos desculparemos?

Eu poderia também estar quieto, mas me dói cada vez que vejo uma nova erosão, que noto que esqueci outra cantiga que fez parte de minha infância. Dói quando vejo que a colonização continua, sempre em novas vagas, cada uma determinada a suplantar a que havia antes, sob camadas sucessivas de esquecimento. Rompendo a continuidade, para que tenhamos a ilusão de que o mal lá fora não é fruto nosso: queremos ser novos, fingimos ser outros, porque não queremos saber que matamos os bichos, que laçamos os índios e que limpamos o mato.

Eu não estou quieto porque todo escritor é consciência de sua era. Eu sei muito bem que a perfeição, possível ou não, é apenas um ideal vazio, apenas outra forma de não olhar lá para fora e ver o vazio, de árvores, de bichos e de índios, que o nosso passado produziu. Se eu ficasse obcecado apenas em contar, do melhor modo possível, as histórias e os sentimentos que agradam aos outros, eu estaria sendo apenas outro colono, que vive aqui, mas tem a cabeça no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar. A mentalidade do colono é transitória. Ele não ama a terra, ela não tem família: seu coração está em outro lugar, para onde quer ir ou voltar, quando arrancar da terra o que seja preciso para viver lá como patrão, ele que veio como ladrão. O colono não é um cidadão.

Então eu começo, aos poucos, a falar disso, e de outras coisas que sinto, da raiva que sinto. Posso estar escrevendo mal, mas cada dia que passa tenho mais definida esta sensação de que é preciso vocalizar esta frustração. Falar em nome das árvores, dos bichos e dos índios. Falar em nome do que esta terra foi antes de ter sido reduzida ao que é.


02
Out 11
publicado por José Geraldo, às 19:47link do post | comentar

Hoje estive visitando o sítio de meu pai, em Itamarati de Minas. A viagem foi deprimente, não só porque meu velho não anda muito bem de saúde, mas também porque a natureza não está.

Dói-me ver tantos morros pelados, a terra exausta de sucessivos incêndios e descuido, revelando-se como derme escarificada, vermelha entre os tufos secos de capim. Dói-me ver tantos topos de morros calvos pela ação estúpida do homem, que hoje pensa em depredar rapidamente antes que o governo queira proteger, tal como o especulador que demole o prédio histórico antes que o IPHAN o consiga tombar.

A seca está forte, as estradas estão ardendo em poeira amarelenta. Os pastos parecem estepes de filme americano, o gado está magro. Marcas pretas de incêndios recentes aparecem aqui e ali. Dói-me andar pela roça e ouvir tão poucos pios de pássaros, tão pouco arrulho de riachos.

Volto triste e com sede, com a pele ardendo de sol e ressequida da poeira e do vento. Volto deprimido com os rumos desse mundo que parece caminhar rapidamente para a própria extinção da beleza.


25
Set 11
publicado por José Geraldo, às 20:13link do post | comentar
Apontamentos avulsos e incompletos encontrados datilografados sobre o verso de páginas contendo alguns poemas. Tanto os poemas quanto esses apontamentos haviam desaparecido de minha lembrança. A data (dos poemas) é 1994, a destes apontamentos deve ser um pouco depois (um ano, no máximo). Trata-se aqui do texto mais antigo cuja forma original não tem influência alguma de revisões posteriores. Uma verdadeira relíquia da época em que eu ainda estava aprendendo a tentar escrever. Mais do que isso, parecem ser apontamentos para um glossário que ficaria como apêndice de um romance que, sob certos aspectos, evoca muito o «Serra da Estrela». Por uma dessas estranhas coincidências que a vida tem, meu pai encontrou essas folhas soltas no meio de um monte de papel velho que ia queimar, e salvou para mim.
Benzinho
Planta rasteira cujas sementes são envoltas por uns espinhos terríveis que se curvam ao entrar na pele, tornando difícil e dolorosa a retirada. Talvez o sábio homem do campo tenha visto nesta adesão teimosa uma metáfora para o amor obstinado, que machuca a carne, é difícil de largar e deixa uma inflamação persistente depois que é arrancado.
Quinze Bandas
Em Minas Gerais as direções não coincidem com os pontos cardeais, não são as oito da rosa dos ventos: são quinze, que incluem acima, abaixo, para lá, para cá, desse lado, daquele, antes, depois etc. A semente do quinze bandas (um outro espinheiro da região) são recobertas de espinhos orientados para todos os lados (ou "bandas", como se diz por aqui).
Moça Velha
Trata-se de uma flor cujo traço peculiar é a falta de viço: as pétalas parecem um papel crepom sem brilho, áspero, o talo é grosso, mas tem uma consistência murcha e é recoberto de pelinhos. As folhas são escuras e molengonas. As flores, por sua vez, são de muitas cores possíveis: vermelhas, amarelas, alaranjadas, rosadas, violetas, brancas e acastanhadas. As pétalas são radiadas e algumas plantas têm flores com dupla camada
Coração da Índia
Não consegui apurar com certeza o motivo do nome poético dessa fruta, parecida com uma pinha. Sua polpa é delicada e doce, de cor branca semitransparente e consistência de geleia, mas o cheiro é forte e resinoso. O formato lembra vagamente um coração, mas casca é verde.
Chá da Meia Noite
Dito zombeteiro muito comum nas histórias de nossas avós, que relatavam histórias de esposas maltratadas por maridos violentos que encontraram a sua libertação fazendo-os beber o dito chá. Na língua do povo as mortes súbitas de pessoas relativamente jovens e aparentemente saudáveis eram atribuídas a feitiço, veneno ou “artes de mulher”, um termo obscuro que engloba principalmente a exaustão do parceiro no amor. Mas o chá da meia noite, por ser meio menos sacrificado, era o preferido. Muitas plantas nativas de Minas Gerais são venenosas, e algumas podem agir em doses relativamente pequenas.
Os Misteriosos Efeitos da Aparição do Diabo
Consta que o diabo era visitante regular de uma certa sede de fazenda, cujo antigo dono, sacrílego e assassino, morrera sem extrema unção. O fantasma do velho ainda se arrastava pelas ruínas da fazenda abandonada, tão apegado às suas posses que nem o diabo conseguia tirá-lo de lá e levar para o Inferno. As aparições do diabo eram saudadas por uma sucessão de eventos antinaturais: peixes que saíam da água para respirar, ratos caçando gatos, vacas montando nos bois, frutas subindo de volta para as árvores e… o mais extraordinário de todos: a troca de crias entre duas espécies inusitadas. Mesmo o fantasmas sendo invisível e o diabo não fazendo nenhuma questão de aparecer para mais ninguém, era fácil detectar a presença demoníaca pela visão de uma porca que dava de mamar a uma ninhada de pintinhos e de uma galinha que chocava uma ninhada de porquinhos. Ou vice-versa, isso depende de quem conta.

Além desses trechos, estou expandindo uma outra história contida no mesmo manuscrito, que postarei na quarta feira.


25
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 21:15link do post | comentar | ver comentários (3)

Antes de começar a efetivamente postar o texto de meu próximo romance aqui, vou fazer alguns comentários sobre a natureza da obra, seus objetivos, suas características e o modo como vou disponibilizá-la. Isto é necessário para que o leitor não caia de paraquedas no texto e fique perdido. Futuramente, ainda, esta página servirá de índice dos capítulos, tal como fiz na tradução da “Casa no Fim do Mundo” (título de que me arrependo: a versão definitiva, que vou fazer em e-book deverá se chamar “A Casa Sobre a Fronteira”).

“Serra da Estrela” é um romance do gênero fantástico que emprega os personagens e a imagística do folclore brasileiro (mais especificamente do estado de Minas Gerais) para tentar construir um efeito de “terror sobrenatural“ semelhante ao obtido por autores como H. P. Lovecraft, Stephen King e outros clássicos do terror americano. Contrariamente a outros projetos meus, “Serra da Estrela” foi concebido desde o começo como uma obra de intenções “comerciais”, no sentido de que ele procura atingir um público grande e jovem.1

A história está integralmente ambientada em um pequeno trecho do estado, entre as regiões da Zona da Mata Mineira e do Campo das Vertentes: dali se originam os personagens, ali se passa toda a ação “real” e ali se encontra o ponto de partida para a ação “surreal” — que de certa forma também se localiza ali. Quem quiser ter uma ideia geral do conceito, pode usar a mini-novela em três partes A Cabana ao Pé da Montanha como uma introdução. “Serra da Estrela” procura desenvolver o mesmo universo sobrenatural, com algumas adições e improvisos, e possivelmente recorrerá a um ou dois dos personagens que ali aparecem (mais provavelmente a mulher de negro) e certamente empregará um ou dois locais onde a ação deste conto se passa.2 Um outro conto que pode ser útil como introdução ao mesmo conceito é Inocência Assassina, de onde retirei a protagonista.3

Entre os personagens haverá pelo menos quatro de natureza sobrenatural: a mula-sem-cabeça, o lobisomem, a iara e um que eu mesmo inventei a partir do imaginário popular europeu, mas cuja existência eu não pude atestar no folclore mineiro. Dos quatro, a mula-sem-cabeça será o mais destacado, talvez até ganhando o status de “protagonista” da história, mas o lobisomem também terá seu valor. Para preparar-me para escrever sobre os dois eu fiz uma razoável pesquisa e cheguei a escrever dois breves ensaios sobre eles (as ligações que incluí).

Eu já tenho desenvolvida até agora a personalidade e os conflitos de pelo menos oito personagens (incluindo três capítulos inteiros inéditos), mas justamente me falta acabar de alinhavar as suas histórias. Digo isto porque, contrariamente aos meus dois primeiros romances, este será bem complexo. “Praia do Sossego” e “Amores Mortos” se caracterizavam por ter um personagem central, que mantinha sempre o foco da história. Um narrador em terceira pessoa não onisciente os acompanhava e os demais personagens só tinham vida à medida em que interagiam com o protagonista. Em “Serra da Estrela” não será assim. Acompanharei quatro as “vidas”4 de quatro mulheres diferentes até que se entrelacem (as vidas, não as mulheres, embora isso não esteja inteiramente descartado…) e durante a maior parte do tempo as quatro linhas serão independentes. Poderão eventualmente tocar-se (as vidas, não as mulheres, repito, mas isso não está fora de questão…), mas seguiram cursos independentes, possivelmente sem chegar a um final comum, pois o assunto central do romance não é um personagem e sua vida, mas um lugar e as coisas que nele acontecem.

Capítulo 1: Língua GeralCapítulo 2: Estrada Estreita, Trilho AntigoCapítulo 3: A Porteira do Mundo

Outro aspecto diferente em relação a este projeto é ele ser uma obra ainda grandemente aberta: ainda com menos de 20% do texto necessário para concluir o projeto (que deverá fechar com pelo menos 350/400 páginas). Isto significa que eu ainda acolherei sugestões e comentários que me pareçam interessantes, preferencialmente feitos por pessoas que vivam no interior de Minas Gerais5 ou que sejam especialistas em folclore.

1 A intenção comercial, no caso, se explica pelo desejo de sensibilizar a juventude de hoje para a viabilidade do imaginário nacional como fonte para a cultura pop, combatendo a americanização dos leitores que se formam hoje em dia lendo best seller.

2 No entanto, que fique bem claro que a ação de “A Cabana…” não tem nada a ver com a ação de “Serra da Estrela”. No máximo pode-se dize que a ação desta noveleta se passa posteriormente em relação aos fatos narrados no romance.

3 Ainda não sei como vou encaixar a ação deste conto no contexto do romance, mas eventualmente ele se tornará parte de “Serra da Estrela”, tal como “Memórias de um Cafajeste” se tornou parte de “Amores Mortos”, meu romance inédito.

4 Fica difícil usar literalmente o termo “vida” para os quatro casos, como o leitor eventualmente perceberá.

5 Estou muito interessado em histórias de fantasmas e criaturas legendárias do estado de Minas Gerais. Disposto até ao ponto de ir entrevistar pessoas que se dispunham a me contar suas histórias para eu escrevê-las.


18
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 22:30link do post | comentar | ver comentários (1)

Uma semelhança entre a realidade e sonho é que as duas coisas não tem começo. Da mesma forma como não nos recordamos das primeiras cenas de um sonho, tampouco nos recordamos das primerias coisas que vimos, sentimos, cheiramos, bebemos, pensamos. Cada um de nós vive como em um interminável sonho, do qual talvez acordemos um dia bêbados do cansaço da noite. E se morrer em meu sonho, o que acontecerá comigo na invisível cama na qual, calmamente, eu repouso?

Eu não sei exatamente quem sou. Venho me tornando, esta é a verdade. A minha vida teve muitos episódios estranhos e a primeira coisa de que me lembro é um pijaminha de macia flanela, estampado com figurinhas desbotadas de animais. Estava vestido assim, calçado de um par de sandálias fortes de couro e montado em um velocípede de metal. Não lembro bem o que acontecera antes, mas sei que, por uma razão qualquer, naquele dia fresco de inverno tropical, eu saí pela estrada afora de velocípede, empregando toda a força das minhas pernas gordinhas. Tinha dois anos de vida e muita vontade de ver o mundo, ou de fugir para algum lugar além das montanhas que tapavam o horizonte, como um mar de mãos erguidas com os dedos contra o céu.

Lembro dos odores desse dia: eu cheirava fortemente a leite fresco e a estrada possuía um aroma penetrante de capim gordura. Lembro do cheiro do ar quente cortando as minhas narinas com o esforço das pedaladas. Mas não me lembro da razão pela qual saí de casa, não lembro tampouco aonde fui. Houve um tempo em que eu lembrava, mas hoje não consigo mais discernir exatamente que lembranças são de fatos realmente que aconteceram, quais de coisas que eu somente imaginei. Então esse episódio aparece cortado na minha mente, como uma figura retirada duma revisa: eu era menino e queria enfrentar a estrada e pus toda minha força nos pedais de um velocípede. Segundo a minha mãe eu cheguei à casa da vizinha, que me deu uma broa de fubá e mandou um empregado chamar meu pai para buscar-me. Pode ser verdade. Pode não ser. Eu fui muitas vezes à casa de Deuslira, não lembro da broa de fubá, não tenho motivos para duvidar de minha mãe, mas a memória é traidora em qualquer idade.

Eu estive pensando em maneiras de começar a contar a minha história, essa que todas as pessoas acham que está contada em minha ficção. Pensei durante semanas e não tinha uma maneira de começar. Ontem, então eu me dei conta da semelhança que há entre a vida e o sonho, percebi como as minhas memórias mais antigas aparecem tênues como sonhos, quase derretendo com o passar dos dias. Já tive uma lembrança muito mais rica deste antigo e enigmático dia, hoje só lembro do pijama de flanela, o velocípede, os cheiros de leite e de capim gordura. Nem sei mais da cor do velocípede. Talvez se demorasse mais quatro anos para contar isso para alguém, nem teria mais o que contar. Eu tinha pouco mais de dois anos quando saí de casa vestido apenas com um pijaminha e pedalando um velocípede de metal. Hoje para sair de casa tenho necessidade de levar tanta coisa que a força de minhas pernas parece muito menor do que a que eu tive naquele dia.


20
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 21:54link do post | comentar

Manézim era a maior preocupação dos pais. Já tinha quatro ano o moleque e não falava nada ainda, só ficava quieto no seu canto com os brinquedos. Mas ele tinha um jeito assim estranho de olhar. Mirava nas pessoas os seus oinhos e abria um pouco a boca, como se tivesse bebendo o que falavam. Mas naquele tempo a gente pobre da roça não tinha muito recurso de médico, então o tempo ia passando e Manézim não falava e a família só se preocupava.

Era um dia qualquer, nem feriado nem domingo. Tava todo mundo almoçando em volta da mesa, com se fazia antigamente, antes da televisão. Manézim comia distraído, olhando pros destroços da galinha frita na travessa, talvez pensando que um dia antes a coitada ciscava distraída no quintal. O irmão mais velho, guloso como ele só, já tinha terminado seu prato e pedia mais:

— Mãe, me dá mais dois ovo cozido.

Manézim então, pro espanto da família, interrompeu seu silêncio que vinha desde o nascimento para falar uma palavra solitária:

— “Ovos”.

O pai engasgou com a asa da galinha e a mãe deixou cair o garfo que espetava um ovo. Todo mundo levantou e foi pegar no menino, dizendo:

— Meu filho, ocê falou.

— Olha, Rosa, que o moleque não é retardado não.

— Esse bostinha começa a falar já me corrigindo!

Foi tanto falatório que Manézim foi se encolhendo na cadeira, com os olhinhos arregalados. Até que a mãe, percebendo que ele já tava demorando a falar outra palavra, tratou de provocar:

— Vai, meu filho, fala para mim!

Manézim olhou em volta a família toda reunida espiando o que ele fazia. Pensou e falou:

— Não falo mais.

E mais não falou. Por fim, cansado daquilo tudo, o pai resolveu tomar providências. Vendeu um novilho e foi à cidade levando o garoto para uma consulta com um pediatra. O doutor examinou o garoto durante um bom tempo, mas por fim declarou-se impotente para resolver o problema:

— Acredito que os senhores não tenham muito com que se preocupar. A capacidade cognitiva de seu filho não me parece afetada, ele apenas é lacônico.

— Isso tem cura, doutor.

O médico sorriu, e tentou tranquilizar o preocupado pai.

— Acredito que deve melhorar com o tempo, sem precisar de remédio. Mas ele parece não gostar muito mesmo de falar, embora entenda tudo que dizemos. De toda forma, volte daqui a alguns meses para acompanharmos como vai o menino.

Naquela tarde um arrasado pai chegou em casa, muito preocupado, e trancou-se no quarto com a esposa.

— E então, Manél, o que tem o moleque?

— Parece, Rosa, que nós temos um filho lacônico.

Rosa ficou mortificada. Vários fios de cabelo brancos devem ter nascido em sua cabeça naquela tarde.

— Ó meu Deus! O que vai ser de nosso meninim?

— Temos que ser fortes, Rosa. Pelo menos o doutor falou que melhora com o tempo.


23
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 14:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Em algum momento, em 2003, eu tive um sonho no qual me via seguindo uma mulher a cavalo, vestida de negro. Na época eu ainda não conhecia o som do Uriah Heep e não poderia ter feito a ligação com “Lady in Black”. Em vez disso, o sonho se referia mais à uma figura existente na capa da edição de “As Brumas de Avalon” que eu tinha comprado naquela época. A “Senhora da Magia” levando Excalibur à mão e cavalgando um cavalo branco.

Este sonho acabou se conectando, pelas tortas vias da inspiração, com outro que eu tive no dia seguinte, no qual me via na pele de um perseguido político, ameaçado de tortura. A conexão dos dois resulta no argumento inicial do conto. A segunda parte, escrita cerca de duas semanas depois, procurou relacionar os episódios algo sobrenaturais narrados na primeira a algum tipo de acontecimento histórico conhecido. Eu planejava fazer outras conexões mais amplas, usando, por exemplo, um outro conto que eu intitulava “História de uns Fantasmas” (que acabou resultando em “Inocência Assassina”). O plano que eu tinha era de um romance, ou um ciclo de contos, baseado em um universo paralelo conectado com o interior de Minas Gerais.

Mas o projeto não prosseguiu. Em parte isso foi porque eu não gostava muito de histórias de fantasia e terror, mas a principal razão foi eu não vislumbrar maneiras de dar prosseguimento à história. Durante muito tempo os contos “A Cabana ao Pé da Montanha” (atual Parte I) e “A Mansão Além da Montanha” (núcleo da Parte II) figuraram como duas histórias independentes e inacabadas em meu antigo site. Porém, durante o ano de 2009, eu resolvi retomar o projeto do “Grande Romance Místico Mineiro” e acabei revisitando os dois contos. Na época escrevi um terceiro conto, chamado “O Círculo Entre as Montanhas”, que foi o esqueleto da Parte III. Este conto nunca foi publicado.

Por fim, agora no comecinho de 2011, numa tarde razoavelmente inspirada, eu revisei os três contos, consertei as conexões entre eles, tornando-os efetivamente partes de uma mesma história, e os publiquei no blog (usando a ferramenta de agendamento de postagens).

A “Cabana ao Pé da Montanha” ainda será revisado algumas vezes, certamente aumentado em talvez até 50%, mas já está em uma forma apresentável. Ele será, futuramente, uma espécie de introdução ao universo da “Serra da Estrela”, no qual vou ambientar um romance e alguns contos. Nesse universo, as lendas brasileiras existem, de certa forma, e algumas maldições portuguesas foram desterradas.


20
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
[Error: Irreparable invalid markup ('<a [...] anchor".">') in entry. Owner must fix manually. Raw contents below.]

<div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div><p>A desolação escaldante da paisagem parecia piorar à medida em que o sol subia no céu, e os fatos da noite, ainda queimando na minha memória, me impediam de pensar com propriedade. Que maldito lugar era aquele? Por que as malditas sepulturas estavam esvaziadas? Quem era a Inês, que se parecia tanto com a mulher que se matara na colina? Tantas perguntas. Nenhuma resposta.</p><p>Fui perdendo o medo de ficar por ali e retornei à casa. Seus longos corredores de paredes sem pintura tinham uma frieza cavernosa, apesar do sol que vergastava a terra lá fora. Uma formidável construção, feita para resistir às intempéries dos trópicos. Curiosamente, uma construção da qual eu nunca ouvira falar, mesmo residindo, em teoria, a menos de cem quilômetros dali.</p><p>O lugar realmente se parecia com um mosteiro abandonado. Os demais quartos, que permaneciam fechados, tinham o seu ar de claustro mais preservado, com móveis ainda mais rústicos e até mesmo um ocasional rosário de contas negras pendurado na parede. Boa parte do que normalmente se encontra em um tal lugar estava, porém, faltando. Não havia biblioteca e a capela estava ausente. Apenas um terreno pavimentado de pedras encaixadas, bem ao lado da construção maior, dava a ideia de que ali existira um templo cristão. O que motivara sua completa destruição era algo que me escapava. A igreja maior, localizada onde deveria ter sido a aldeia, ainda estava lá, mesmo arruinada e coberta de ervas. Apenas a capela dos monges tinha sido obliterada da face da terra.</p><p><a name="more" rel="noopener"></a>Vasculhei o prédio durante todo o dia, na esperança de encontrar algum registro deixado por algum dos antigos moradores. Mas não havia nada. Nenhum livro, caderno ou simples calendário com anotações. Na verdade, à medida em que eu percorria aquele lugar, ficava com a impressão mais forte de que ele estava se desfazendo diante de mim, como se os séculos tivessem resolvido finalmente andar.</p><p>Vendo, então, que não havia nada que pudesse me dar notícia do lugar onde estava, decidi que era melhor mesmo retornar ao único lugar onde encontrara alguém com respostas: a cabana ao pé da montanha. Quem sabe a jovem grisalha estaria lá, embora tivesse me alertado para não permanecer naquele lugar por muito tempo?</p><p>Fiz uma trouxa com comida para alguns dias, escolhendo com cuidado na despensa pouco provida. Montei o cavalo sentindo medo, talvez, de algo mais grave que a morte ou mais dolorido que o pau de arara. Deixei que o animal me levasse, e notei com estranheza que ele parecia não ter mais nenhum tipo de receio, nem de ir e nem de voltar. Como se alguma sombra que antes o assustava tivesse sido removida.</p><p>O caminho de volta à montanha não teve aventuras. Passei com cuidado pelas encruzilhadas que não conhecia, temendo especificamente aquela que me faria dobrar a crista do monte e entrar de volta na pequena estrada vicinal que me trouxera, fugido, do mundo onde eu era um criminoso. A custo localizei a entrada da picada na parede fechada da mata virgem, através da qual cheguei ao prado florido à beira do regato, ao vau por onde se podia cruzar a pé a correnteza e à estrada pavimentada de pedras chatas pela qual se subia ao cume fatal da Montanha.</p><p>Não sei que horas eram, porque meu relógio de corda andava louco desde que deixara a civilização. Sem outros com que conferi-lo, poderia estar marcando qualquer hora. Mas eu sabia que devia ser por volta de seis da tarde, ou pouco mais, porque o sol já ia tocando as serras, o ar já tinha um sopro frio que descia pelas árvores, um vento que fazia os troncos estalarem fantasmagoricamente.</p><p>Encontrei a jovem grisalha, vestindo sua longa túnica negra, sentada em torno de uma mesa de madeira rústica, à sombra de uma alta árvore, cuja copa se perdia acima das copas menos notáveis de outras árvores: um centenário pau-brasil, cuja casca rescendia um aroma suave no ar. Ela me acompanhava com os olhos, sem demonstrar emoções. Aproximei-me calado, sem ter mesmo ideia de como dar início à conversa.</p><p>Quando me aproximei dela, a ponto de poder perceber que ela não era, de fato, tão jovem — mas não tão velha que devesse ter aquela cor lunar nos cabelos.</p><p>— Estou confuso — foi o que eu consegui dizer, depois de algum tempo.</p><p>Ela me mostrou um sorriso, ou rosnado, e olhou para os lados e para cima, como se tivesse algo que eu devesse ver. Mas não havia nada, apenas o silêncio e os estalos dos troncos movidos pelos ventos e o murmúrio da água do regato.</p><p>— Como eu pude ter encontrado Inês ontem se a vi matar-se anteontem?</p><p>A jovem grisalha se levantou e caminhou até mim, sem que seus pés descalços quebrassem as folhas secas do chão. Ela me estendeu os braços, cobertos de marcas azuis de tatuagens e maldições milenares. Os olhos dela tinham uma tristeza tão profunda que eu tive vontade de abraçá-la.</p><p>— Ah, querido. Tudo é tão complicado. Tudo seria tão mais simples. Eu mesma não entendo tudo. Não entendo onde estou mais, é como se eu vivesse um círculo eterno. Uma solidão que nunca passa. Desde que vieram os homens de branco, com aquele maldito ritual. Parece que o tempo sempre volta e vem, e vai e está. As coisas acontecem depois de suas consequências, as vidas e mortes sempre se repetem e eu sempre permaneço aqui em torno desta cabana, tentando ir e nunca indo, tendo de testemunhar através das décadas e dos séculos a traição e a morte que tanto me magoaram.</p><p>— Quem é você? O que é você?</p><p>A jovem grisalha me olhou desolada.</p><p>— Quem eu sou não importa mais, nem o que eu era. Tu és apenas mais um que chega, para enfiar outro espinho no meu coração. Quantas vezes não contei minha história a homens como tu, ou mulheres! Quantas vezes não os amei, matei ou ignorei! Nada importa. Vivos, mortos, amados, feridos, abandonados. O tempo continua sua dança em torno de mim e outros vêm.</p><p>Quando disse que muitas vezes havia matado, não pude deixar de notar a adaga de lâmina curva que levava à cintura: distintivo certamente de uma ordem hermética. Estava diante de uma bruxa, de uma proverbial bruxa das histórias infantis. Das que são capazes de matar ou amar com a mesma intensidade e indistintamente. Isto explicava o livro em língua estranha, língua de bruxa. E por isso aparecia ao anoitecer.</p><p>Recuei dois passos enquanto ela falava. Começava a acreditar em toda aquela loucura. Ela não percebeu, ou fingiu não perceber. Minha curiosidade ainda me queimava, mas não tanto quanto o ferro em brasa dos torturadores:</p><p>— Eu não sei quem és. Mas eu quero, eu preciso ficar por aqui. Eu não entendo onde estou, não sei o que estou fazendo. Mas quero e preciso ficar.</p><p>Ela me olhou sem surpresa:</p><p>— Outros antes quiseram ficar.</p><p>— E não é bom que de vez em quando alguns queiram ficar? Se é como você diz, a solidão das décadas já deve ter se acumulado demais.</p><p>— Oh, querido. Tu não entendes nada, e o que dizes é loucura!</p><p>— Se o que digo é loucura, então ouça o que digo: eu preciso de ajuda. Preciso de um lugar onde possa ficar escondido, por alguns anos, talvez para sempre. Dizem que as irmãs sempre ajudam quem as procura com sinceridade e sem desejar o mal.</p><p>Ao ouvir-me mencionar “as irmãs” a jovem grisalha se empertigou subitamente, como se lhe tivessem cutucado em uma parte sensível do corpo.</p><p>— O que sabes, profano? Como reconheces o nome secreto!?</p><p>Se fosse verdade que ela estava há séculos presa naquele canto perdido de Minas Gerais, fazia sentido que ela não imaginasse a facilidade com que se podia ter acesso aos grimórios do passado.</p><p>— Calma, irmã. É em paz que venho.</p><p>— Quia est nomem tuus?</p><p>— Johannes</p><p>A bruxa pronunciou com uma rapidez quase cômica uma série de imprecações em alguma língua mais antiga e mais assustadora que o latim, durante a qual a forma latinizada de meu nome foi repetida várias vezes. Então ela sentou e começou a chorar:</p><p>— Já não funciona mais. Já nada funciona.</p><p>— O que não funciona?</p><p>Aproximei-me dela com cuidado, mas sinceramente comovido, e acariciei os seus cabelos descoloridos pela dor da solidão eterna. Ela permitiu que eu o fizesse, murmurando entre soluços:</p><p>— Oh, tu sabias, velho maldito. Tu o sabias! A carne é frágil diante da solidão e do tempo. Tu o sabias, maldito!</p><p>A bruxa me conduziu de volta à cabana, à sua cabana. Ali ela me preparou um chá, que eu bebi com receio e vagareza, temendo que ela me envenenasse. Mas não era nada disso: apenas hortelã-brava fervida em pura água da montanha e adoçada com o mel das abelhas selvagens.</p><p>Então ela me contou a sua história. Contou-me que se chamava Júlia Carneiro, que realmente fora bruxa em Portugal, que por isso recebera o degredo para o Brasil, casada à força com um proprietário de terras, que parecia ter a missão de espancá-la, mas que nunca ousara tocá-la, talvez por receios de sua fama de bruxa. Havia histórias horríveis sobre lábios com dentes e sobre escorpiões escondidos no útero. Em vez dela, o bronco engravidava as negras e as índias e se enchia de aguardente e de maldades. Um dia os negros e os índios da fazenda se revoltaram, os empregados não puderam resistir muito, pois uma enchente molhara os paióis de pólvora. Foi assim que ela se tornara viúva, vendo o marido ser esquartejado, “como um porco”, pelos vingativos negros, cujas costas tanto haviam sofrido a mando dele.</p><p>Sobrevivera ao massacre atirando-se no rio gordo e turbulento. Deveria ter morrido, mas salvou-se graças à arte mágica da natação, que bem poucas mulheres daquele século sabiam: só as que tinham sido raparigas de navio ou mulheres de pescadores.</p><p>Os índios a acolheram quando ela demonstrou algumas de suas artes. Mas uma pajé mulher era algo que não fazia sentido e ela acabou tendo de deixar a aldeia. Conseguiu retornar à civilização graças a um convento que estava sendo construído bem no centro da Serra da Estrela, a poucos quilômetros do Pico da Mesa, que dominava dezenas de quilômetros quadrados de planície pantanosa e pedregosa: o perigoso vale do Rio Vermelho.</p><p>Nesse ponto da história, fez uma longa pausa. Seu rosto, mal iluminado pela vela de sebo, parecia corar um pouco ao lembrar dos detalhes.</p><p>— Acreditas no amor?</p><p>— Sim.</p><p>— Acreditas no amor absolutamente sem fronteiras, no amor entre almas, ou crês que o amor está preso a corpos?</p><p>— Não sei o que dizer, mas acredito que o amor não pede licença e nem se explica.</p><p>— Eu ainda tenho receio de falar sobre o que aconteceu.</p><p>— Mas não me disseste, há pouco, que é uma história que já te cansaste de contar?</p><p>— Mesmo que a conte mil vezes, sempre terei receio de que a maldição se renove.</p><p>— Então somente me fales sobre isto se houver necessidade. E se quiseres falar. Eu não te cobro respostas. Tudo que desejo é abrigo na tempestade.</p><p>Lá fora soou um trovão distante.</p><p>— Um dia certamente eu te contarei a parte que mais me enluta. Mas por enquanto te baste saber que os padres descobriram tudo, acharam que havia obras do demônio em curso nesta região. Eles já tinham ouvido histórias, dos índios, dos negros, dos brancos supersticiosos que evitavam estas montanhas. Disseram que havia sido imenso o sacrilégio, tão imenso que havia contaminado toda a terra e que somente arrancando, como um tumor, o foco de infestação, seria possível evitar a “gangrena do mundo”. Foi assim que eles fizeram. Não sei a quem recorreram. Artes escuras de todas as partes foram conjuradas pelos homens de branco, a pedido dos padres e suas crenças. Não foi o Deus deles que fez isto. De uma forma sacrílega e estranha eles acharam que valeria até mesmo o recurso aos maiores inimigos da humanidade para poder fazer algo que a Cristo agradaria. E foi o que fizeram.</p><p>— O que foi que fizeram? Eu não consigo entender!</p><p>— Oh, querido. Não vês este emaranhado do tempo em que estamos? Aqueles malditos sacerdotes do Inominável fizeram o que os padres pediram. Amputaram todo esse território do mundo dos vivos, do presente, do passado e do futuro. Estamos aqui fora da geografia, fora da história, fora de tudo.</p><p>— Como assim? Isso não faz sentido? Como eu entrei aqui?</p><p>— A Arte deles não é perfeita, é claro. Ela não tinha que ser. Bastava que cumprisse o que havia sido pedido: não poderíamos jamais morrer ou sair, nem Inês e nem eu. Deveríamos viver a eternidade experimentando e expiando a culpa de nosso sacrilégio.</p><p>— Então é possível entrar?</p><p>— Sim. Muitos entraram antes. De vez em quando alguém entra. Quase todos acabam saltando do Pico, como você viu Inês fazer. Tu mesmo um dia o farás, quando estiveres cansado de mim e não puderes mais sair. Outros acham outros meios. Não sei de nenhum que saiu, mas deve ser possível sair, tanto quanto é possível entrar. Mas a quantidade de corpos no fundo do vale sugere que achar uma saída não é tão fácil.</p><p>Júlia foi me contando sua história naquela noite e eu tomando o chá de hortelã, segurando a xícara com cuidado para não queimar a mão. As palavras dela eram amargas, amargas como o chá que o mel não conseguia adoçar.</p><p>Foram muitas noites como aquela, na cabana ao pé da montanha. A cabana que Júlia construíra com suas próprias mãos para tentar parar a marcha cíclica do destino.</p><p>Muitas outras vezes nós vimos Inês passar, sem parecer vê-la, ou até mesmo a mim. Ela sempre subia ao alto do Pico e de lá se atirava ao abismo. Cada vez que isso acontecia eu pensava ver brotar um fio branco na cabeleira de Júlia. A contar pelos outros que já tinha entre os seus, eram dois séculos ou mais daquela agonia.</p><p>Todos os domingos, à tarde, ela subia a montanha e se atirava, sem dar mostra de nos ver. Júlia chorava ao ouvir o ruído do corpo dela corpo contra o chão e entrava a recolher-se, mesmo sem conseguir dormir. Lá pela madrugada velha ela acordava e saía, sem nunca dizer aonde ia. Assistir aquele espetáculo era uma terrível forma de começar a noite, praticamente impedindo que Júlia e eu tivéssemos qualquer atração.</p><p>De fato um dia eu não suportei mais tudo aquilo. Permanecera ao lado de Júlia querendo ter alguma explicação. Mas nunca tivera mais do que novas perguntas. Não sei quanto tempo demorou para que me cansasse, mas podem ter sido dois anos, ou vinte. Não quis, porém, atirar-me do alto do pico: preferi procurar uma saída. Afinal, eu já tinha uma vaga ideia de onde poderia haver uma.</p><p>Uma manhã, logo depois que Júlia retornou de seus misteriosos passeios noturnos e foi dormir, como sempre envolta naquela túnica de luto, roubei o caderno encapado em couro, que roubara do cadáver de Inês, e saí pela estrada levando uma magra trouxa com o resto de minhas roupas e alguma comida.</p><p>Cheguei à encruzilhada ao pé do morro. Durante o tempo em que vivera na cabana ao pé da montanha, passara muitas vezes por ali, sem nunca criar coragem para subir o morro e conhecer o que haveria do outro lado. Eu vivia com o pavor de haverem soldados espreitando para localizar-me e prender-me tão logo eu saísse detrás de alguma árvore e pusesse o pé na estrada.</p><p>Mas naquele dia o medo não existia mais: certamente a ditadura acabara e eu não teria mais que fugir de soldados e temer torturas. Subi o morro devagar, conquistando cada metro como se fosse um território inimigo. Esperava chegar ao alto e encontrar a beira de uma estrada, alguns carros passando. Ali talvez haveria o ruído de música e de vida urbana filtrado pela distância.</p><p>Não foi o que vi. O que havia diante de mim era o brejo sem fim do vale do Rio Vermelho, dominado pela presença tétrica do Pico da Mesa. Não fazia sentido: o caminho era praticamente em linha reta em direção ao leste, margeando o rio. Dava para acompanhar pelo sol. Mas eu estava ali, encarando de frente aquela paisagem que eu só deveria ver se viesse do sul. Era como se tivessem recortado aquele pedaço do mundo e emendado em torno de si mesmo, num eterno círculo ou buraco negro, cujos caminhos são todos espirais em torno de um ponto. “O Pico da Mesa domina uma região de dezenas de léguas”, dissera Júlia. Era fato.</p><p>Sentei-me em uma pedra e abri o caderno de Inês. Ele devia conter alguma pista adicional sobre o acontecido, mas estava coberto de garatujas angulosas.</p><p>— Meu Deus, são … são caracteres cuneiformes!</p><p>Ali estavam, desenhados com um tipo secular de pena, símbolos malditos e esquecidos de uma civilização extinta, anteriores à Bíblia e a Jesus. Símbolos anteriores às penas e aos livros, que eram antigamente gravados no barro usando estiletes de cana.</p><p>Guardei o livro no bolso, reconhecendo enfim que haveria uma solução para o mistério algum dia, se conseguisse sair daquele poço no tempo em que me metera. Sim, eu sempre temera sair e ser pego, mas nunca pudera, de fato sair. E no momento em que o queria, e muito, percebia que a saída era uma ilusão como outra qualquer.</p><p>Assim derrotado, saí caminhando a esmo por aquele mundo em redoma, procurando alguma brecha por onde pudesse saltar. Quando finalmente o cansaço me derrotou, e já era noite velha isso, achei uma pedra razoavelmente plana, à beira de uma encruzilhada, e ali me deitei, usando a trouxa como travesseiro.</p><div style="text-align: center;">***</div><p>Acordei na manhã seguinte completamente derrotado. Passara o dia anterior sem sonhar como sair. Depois dormira uma noite de pavores, ao relento e sobre uma pedra desconfortável. Sonhara com monstros que passavam em torno, carregando imensos cascos nas costas. Sonhara com monstros de olhos flamejantes, com homens de túnicas brancas que evocavam forças desconhecidas, fazendo o mal em nome do bem.</p><p>Mas quando amanheci e meus olhos doeram com o sol, percebi que estava à beira de uma rodovia maior do que as que conhecera antes. Por ela passavam continuamente imensos caminhões e inumeráveis automóveis, de modelos que pareciam saídos de filmes futuristas.</p><p>— Deus seja louvado! Voltei!</p><p>A encruzilhada já não existia. A pedra estava longe, empilhada com outras à beira do caminho.</p><p>Aos poucos fui me familiarizando com o mundo. Muita coisa havia mudado, mas não tanto assim. Consegui entrar em contato com a minha família e vieram me buscar. Para eles voltei como voltaria um defunto: receberam-me com uma incredulidade que somente minha semelhança com as fotos e a memória fiel de muitos acontecimentos foi capaz de convencer.</p><p>Havia pouca coisa que eu pudesse fazer. Felizmente eu tinha um irmão que era advogado e ele conseguiu-me uma indenização do governo, em nome dos anos de prisão e tortura que eu supostamente passara. Nunca consegui convencer ninguém da minha história alternativa. Com o tempo desisti de tentar. Aliás, o que me passou naquelas montanhas foi de fato prisão e tortura, mereço esse dinheiro.</p><p>Com ele reconstruí minha vida. Casei-me, tive filhos. Esqueci aquela história, guardei o caderno de Inês em uma gaveta da memória e toquei a vida. Hoje tenho sessenta e cinco anos e passei a ter certos sonhos que me incomodam.</p><p>Foi por causa desses sonhos que eu mandei uma cópia das notas do caderno para um especialista em línguas antigas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não posso dizer o nome desse homem: ele não leciona as disciplinas proibidas a que recorreu para fazer-me a tradução. Soube dele através de meus contatos com maçons amigos.</p><p>Recebi ontem a tradução. Foi por causa dela que resolvi contar a história que agora termino. O caderno contém muita coisa que não ousarei transcrever. Coisas, porém, que não deveriam condenar nem a Júlia e nem a Inês.</p><p>Deus não deve ter gostado mesmo que se amassem. A demolição da capela certamente serviria para purificar o lugar da mancha do que os padres assistiram naquela noite. Até o mosteiro teve que mudar de lugar, até os mortos já enterrados tiveram de ir junto. Porque o que veio a seguir afetaria a eternidade.</p><p>O motivo de meus pesadelos recorrentes é que eu passei a imaginar, veja só que loucura, a possibilidade de retornar. Amo a minha pobre mulher, claro. Amo aos meus filhos também. Mas este mundo em que tenho vivido parece tão alheio quanto o outro. A diferença é que neste eu envelheço e tenho um câncer.</p><p>Se eu puder retornar à Serra da Estrela, estarei condenado à eternidade. Desde que ache outra entrada, em algum acaso da estrada. Desde que Júlia me perdoe e não me sangre com seu punhal.</p><div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div>

12
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:51link do post | comentar

Ela se foi e eu fiquei sozinho o resto da noite naquela casinha de pedras no meio do nada. Não tive, porém, tempo para sonhos loucos ou terrores noturnos: apesar do breve sono da tarde, eu estava cansado demais pelos três ou quatro dias de estrada para negar-me a dormir na cama macia e segura, apesar de suja.

Acordei na manhã seguinte com um sobressalto: nos últimos estertores do sono eu havia encontrado uma abertura para ter um pesadelo e lembrei da misteriosa mulher que se jogara no abismo.

Ao me levantar, deparei-me com o fogo aceso e com a mesa posta para o desjejum. Era curioso que isso acontecesse, visto que eu fora dormir sozinho naquela cabana. Mas sobre a mesa estava um envelope rústico contendo um bilhete numa caligrafia que parecia saída de um manuscrito medieval:

Tente não demorar muito nessa casa: ela não o salvará de si mesmo, e o exporá a muitos perigos que você não conhece. Não deixe que minha irmã Lua o engane.

O caderno que eu subtraíra da suicida estava dentro do envelope: sua capa de couro marrom estava úmida, como se manchada de sangue, do sangue dela. Mas não estivera assim quando o pegara. O cheiro dele era quase insuportável, como se o seu texto revelasse horrendos e imemoriais segredos. Coloquei-o na mochila pensando em tentar ler depois.

Tomei do amargo café e comi dos pães duros, untados de manteiga rançosa, e fui ver o que havia do lado de fora. O cavalo da desconhecida estava pastando no relvado próximo à cabana, e pareceu dócil à minha aproximação. Abracei-o carinhosamente, lembrando a pele áspera, mas feminina, de sua dona morta. O cavalo me olhou profundamente, como se tivesse inteligência em vez de ser apenas uma besta de carga.

Selei e montei aquele animal com o respeito que merecem os cavalos, pelo menos no mundo estranho em que eu tão de repente me perdera. Saímos pelas estradas

A estrada era larga, maltratada e pedregosa. Um cavalo poderia facilmente derrapar e cair naquele chão traiçoeiro. Ninguém seguia no rumo oposto, ou no mesmo, e o silêncio da paisagem conspirava como se todo o mundo se tivesse desabitado de seres humanos e das trevas o mal me espreitasse. Cavalgava por horas sem destino, observando cada traço da paisagem, sempre buscando alguma indicação de rumo.

Quando o sol estava alto no céu, parei à sombra de um imenso pau-ferro à margem da estrada e roí algum pão enquanto observava as estranhas runas do caderno. À luz do sol elas pareciam bem menos misteriosas, dava para ver que estavam em alguma língua humana, embora talvez antiga demais para que eu a reconhecesse. Montei novamente e segui meu rumo sem sentido.

Ao cruzar a crista de um morro bastante íngreme, entrei em um território onde parecia ter chovido recentemente. As folhas estavam tão viçosas que dava vontade de fazer-lhes carícias, e os grilos por toda parte se preparavam para a noite que em breve cairia.

Todo o meu dia foi passado em uma estrada interminável, serpenteando por entre montanhas e vales e matas e rochas. Nenhuma casa, nenhuma viva alma, nenhuma encruzilhada. Mas quando já começava a cair à noite, num raro trecho de vargem à beira de um rio largo, limpo e tão silencioso quanto um lago cheio de sapos, eis que achei a primeira bifurcação da estrada desde que entrara naquele mundo. Lembrei-me dela imediatamente, pois fora através dela que eu entrara naquele lugar.

Contemplar aquele lugar me fez sentir firmeza novamente: ali estava o elo que me levaria de volta aos lugares conhecidos, onde as coisas todas têm explicação. Bastava guinar o cavalo à direita e subir aquele morro baixo e triste, tão cheio de feridas avermelhadas. Do outro lado, salvo engano, haveria a cachoeira onde eu me banhara pouco após sair do cemitério da cidade sem nome.

Porém não havia força no universo capaz de me forçar a tomar aquele caminho. Por ele certamente eu retornava ao mundo conhecido, mas por ele eu igualmente retornava ao mundo no qual havia homens cruéis determinados a me conduzir à presença da lei arbitrária que me enquadrava como um facínora. Permanecer naquele mundo estranho era permanecer longe do pau de arara e da cadeira do dragão.

Por isso não tomei nenhuma atitude, apenas deixei que o cavalo, preguiçosamente, seguisse o caminho do menor esforço, o caminho através do qual eu continuaria margeando o rio e me dirigindo à noite que nascia com a lua entre duas montanhas redondas como seios.

Não demorou que começassem a surgir outras encruzilhadas. Estas, porém, eu não conhecia. Cada uma delas poderia ter me levado de volta, ou ainda para mais longe. Mas nelas eu não tive de deixar que apenas o meu livre arbítrio me guiasse.

Logo na primeira delas havia um lenço dependurado em um galho de goiabeira. Poderia ter sido uma indicação, ou poderia ter sido apenas um pedaço de roupa rasgado quando um cavaleiro passara em disparada. Aquele alvo pedaço de pano já estava tão úmido pelo tempo que não guardava traço algum do perfume ou da catinga de quem o usara um dia.

Na encruzilhada seguinte havia uma pedra grande. De cada lado havia uma fratura que se assemelhava a um assento. Mas somente em um dos lados havia algo diferente: um livro, também mostrando sinais de ter sofrido com a chuva. Apeei e fui buscá-lo, pensando nas informações que ele poderia ter, mas era somente um daqueles livros baratos com histórias para moças.

A noite começava a se desdobrar, como um vestido escuro cobrindo a linda nudez da paisagem. O livro tinha a capa arrancada, indício de que fora talvez comprado a quilo em um encalhe de banca de jornal. Mas ao folheá-lho percebi que a sua presença ali poderia não ser casual: havia frases sublinhadas, palavras isoladas marcadas a tinta. Concatenando os trechos soltos parecia haver uma mensagem, mas ela fazia pouco sentido:

Vivendo em uma linda casa … morrendo por … isso a … enganara … pensava talvez em fugir … enfeitiçar … quem vier …

Segui pelo caminho sugerido por aquele livro. Notei sem espanto que ali a noite caía silenciosa, nenhuma viva alma passava, nenhum pássaro piava. Uma negra solidão foi me envolvendo ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de fazer amor outra vez, com a misteriosa morta.

Na virada do morro seguinte se descortinava um vale desolado, um amontoado de construções de pedra muito mal acabadas com um ar mais de fortaleza que de residência. Uma alta torre encimada por uma cruz inscrita dentro de um círculo predominava sobre as demais construções, mais baixas, indicando que aquele lugar, em algum momento perdido de um passado, fora consagrado. Ao lado da enorme e negra igreja de pedra nua, coberta de trepadeiras, um mar de cruzes quebradas e lápides gastas indicava que aquelas colinas cobertas de touças altas de capim haviam sido, num passado distante, uma aldeia populosa.

Mas quando me aproximei eu vi que todas as covas haviam sido escavadas, sabe Deus quando, e que os antigos residentes delas tinham sido levados, somente Ele sabe para onde. O cavalo trotava com familiaridade por aquele terreno, como se tivesse sido apascentado ali desde que fora um potrilho. Depois de passar pelo cemitério o caminho passava a ser calçado de lajotas irregulares de pedra calcária, muito gastas pela chuva de séculos e por cascos e pés de todas as espécies. Detrás da igreja aparecia uma construção que destoava do resto: baixa, clara, geométrica e aparentando modernidade. Estava silenciosa como tudo, e escura também. Outra construção, um imenso paralelepípedo negro com janelas, repousava na parte mais baixa, já perto de um regato que quase não murmurava. Uma luz acesa ali indicava que alguém vivia, ou vegetava, naquele lugar.

Mal podendo imaginar o que me aguardava, em vez disso agradecendo a sorte de um pouso — e talvez até de um lugar onde ficar pelo tempo que fosse preciso — eu me dirigi à porta daquela medonha habitação. A sua porta alta indicava uma construção totalmente fora dos padrões de hoje, com um pé-direito de três metros ou mais. A pesada madeira nem se moveu quando a toquei, nem pareceu sentir quando a pesada aldrava de ferro soou.

Um homem veio atender, macérrimo e pálido. Tinha a fisionomia desolada e os lábios finos. As suas unhas estavam crescidas e as suas costas eram curvadas. Ele poderia ter oitenta anos ou mais.

— O que deseja?

— Encontrei o cavalo por aí venho saber se não pertence a esta propriedade.

— Não criamos cavalos — ele respondeu secamente.

— E nem ao menos pode me dizer de onde é o animal?

O homem deu dois passos para fora e olhou o triste cavalo em que eu viera. Ao vê-lo a besta curvou a cabeça e soltou um relincho de reconhecimento. O homem resmungou alguma coisa que eu não entendi, acariciou o cavalo com uma doçura surpreendente e tirou do bolso algo que lhe deu. Mas quando se voltou tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Então o cavalo é daqui?! — eu devolvi secamente.

Ele permaneceu ainda em silêncio por um tempo. Por fim acenou com a cabeça.

— Reconheço a criatura, mas ela não pertence a nenhum proprietário das redondezas.

— Não compreendo.

— O que lhe importa, com mil demônios?! Pode deixá-lo comigo. Quanto à recompensa, receberá do diabo.

— Sua falta de educação finalmente me irritou. Com que então eu tenho a boa vontade de trazer um animal perdido e o senhor me manda buscar recompensa com o demo! Vá à merda e que ele o leve!

A intensidade da minha rudeza surpreendeu-me. Nunca antes me imaginara sendo tão agressivo com alguém, especialmente com alguém que parecia estar visivelmente assustado e agindo contra sua vontade. Mas era bom exercer minha prepotência depois de tantos dias humilhado na estrada, mesmo que ela me atirasse de volta ao desamparo.

— Você não sabe o que diz!

Ele respondeu com um desprezo e uma expressão de desolação tão profunda no rosto que por um momento eu quase me arrependi. Mas logo recompus minha dureza. Nesse momento, uma voz familiar gritou de cima perguntando quem era e simplesmente ao ouvi-la eu retomei minha firmeza absoluta. Uma chuva fina e fria começara a cair, um vento cortante assobiava nas árvores e uma mulher apareceu à porta, com uma expressão gelada no rosto, como se jamais me houvesse conhecido. Ela era loura bela, como a jovem grisalha que eu vira na descida da montanha fatal.

— Jorge!?

— Ele trouxe o cavalo — disse num fio de voz o Jorge.

— Muito obrigada — disse a mulher, estendendo-me a mão com um sorriso — serás recompensado. Jorge, não vamos deixar que este homem siga viagem sob esta chuva cruel e este frio que vem com a noite, faça-o entrar e lhe prepare um quarto de visitas.

— Realmente, senhora, não é de bom-tom deixar que ele atravesse esta noite inclemente a pé…

E me fez entrar.

A aparência interna do lugar não era melhor que seu exterior desolado. Os móveis eram todos muito grandes e de desenho bruto, o chão era de lajotas enceradas e as paredes caiadas não ostentavam nenhum ornamento. Prepararam-me uma mesa na cozinha e comi alimento recém-preparado pela primeira vez em muitas semanas. Jorge e sua mulher, uma criatura gorda e sorridente, eram os únicos empregados daquela imensa casa.

Depois de terminar, me conduziram escada acima até um pequenino quarto de hóspedes localizado logo à direita, antes de um imenso portão de ferro trancado com um cadeado maior que a minha cabeça. Além do portão um longo corredor com várias portas. Seguramente aquele edifício fora um convento e aquelas eram as celas em que dormiam solitariamente os frades ou as freiras do lugar.

Depois que me fez entrar em meu quarto, pude ouvi-lo girar a chave na fechadura e tive medo pela primeira vez em muito tempo. Segurei a maçaneta, mas já era tarde: Estava trancado! O quarto, uma das celas do antigo monastério, era grande o bastante para caber um guarda-roupa, uma cama e uma mesa de cabeceira. Para mais nada, porém. Havia uma única janela vazando as paredes muito grossas que davam para o exterior. Apesar de estreita, era larga o bastante para que eu pudesse debruçar-me nela e contemplar a noite de lua crescente sobre os campos.

Um ar pesado soprava do norte, como se alguma coisa horrível estivesse vindo. A janela, localizada do lado que dava para o riacho, se abria sobre uma escuridão difícil de avaliar. A luz da lua não chegava até ali porque as montanhas e as construções mais altas se interpunham obliquamente no caminho do luar.

Apesar disso, dispus-me a dormir. Mesmo porque não havia remédio. Despi-me parcialmente e me estendi na pequena cama de colchão duro. Quando estava semi-adormecido, apesar do nervosismo, ouvi uma janela batendo, senti o frio da madrugada beijando meu rosto e levantei-me para ver o que era. Minha janela estava aberta. Enquanto imaginava como pudera ela abrir-se, senti uma presença familiar atrás de mim e me voltei.

— Que bom que vieste…

Era a mulher loura que me recebera à porta. Olhei-a de alto a baixo, apreciando cada detalhe de seu corpo entrevisto através da camisola diáfana que usava. Ela sorriu-me e desprendeu-a de seus ombros, fazendo-a cair e deixar diante de mim uma nudez fulgurante. Então abriu os braços e me chamou ao seu seio e fizemos amor com uma intensidade maior que a da vida.

Em dado momento, ouvimos um ruído ecoar pelos campos, um ruído de tiro. Os olhos dela se iluminaram.

— Ei-lo que chega!

A cancela da entrada rangeu e minhas pernas amoleceram. Suei frio e ergui-me num sobressalto. Um ríspido diálogo se travou embaixo na cozinha:

— De quem o cavalo? — pergunta uma voz estrondosa.

— Não sabemos, um cavalheiro chegou nele, dizendo tê-lo encontrado pelos campos. Veio perguntar pelo dono porque quer a sua recompensa. — Respondeu servilmente Jorge.

— E por que pousou aqui em minha casa este estranho?

— Choveu depois que ele chegou e ficamos constrangidos de ordenar-lhe que seguisse viagem sob tão cruel tempo.

Uma torrente de palavrões ribombou pelo salão, simultânea a dois tiros. Catarina, que até então estivera radiante, rompeu em pranto convulso, levantou-se da cama e atirou-se pela janela antes que eu a pudesse impedir! Pesa segunda vez ela me escapava! Assustado, vesti-me rapidamente e, instintivamente, abri o armário. Lá encontrei, por obra de Deus ou de Satanás, não sei, um rifle carregado!

Enquanto o engatilhava ouvi os passos pesados do recém-chegado logo além da porta e o chocalhar de chaves. Apaguei a única vela que havia no quarto e cerrei a cortina. A escuridão mais completa se fez. Apontei a arma para a porta e aguardei que ela se abrisse para atirar duas vezes no peito do desconhecido, antes que ele tivesse tempo de me ver.

O homem arregalou os olhos, deixou cair a pesada carabina que carregava e tombou pesadamente para trás. Fui até seu cadáver e, reacendendo a mesma vela do castiçal ao lado da cama, pus-me a mirar-lhe. Era uma criatura formidável aquele homem: teria mais de dois metros de altura e uma musculatura firme e poderosa. Seu rosto estava tomado por uma cicatriz que lhe dava um ar cruel e os seus dentes eram bastante ruins. Vestia uma espécie de hábito de tecido rústico, bem pouco suficiente para abrigar-lhe do frio que fazia naquela noite. Toquei-lhe a fronte para certificar-me de seu falecimento e, comprovado este fato, desci as escadas.

No salão estava o pobre Jorge com a cabeça aberta pelo rombo do único tiro que levara. A arma usada para isso teria matado um elefante. A sua pobre mulher fora atingida no meio das costas, mas ainda respirava. Aproximei-me dela e dei-lhe a mão. Ela olhou-me nos olhos, lacrimejando de medo na presença do frio do Juízo próximo e disse:

— Maldito seja ele, maldito!

Eu não tinha nada que fazer por aquela pobre criatura. Apenas acariciei o seu rosto com ternura. Ao sentir a sinceridade de meu toque ela me disse:

— Cuida de Inês.

Imaginei imediatamente que este seria o verdadeiro nome da loura e, não desejando aumentar a tristeza da agonizante, informei que Inês estava bem e que eu cuidaria dela. A mulher cuspia sangue pela boca, indicando que seus pulmões haviam sido atingidos. Num último esforço, olhou-me e disse “pobre coitado de ti!”, vindo a morrer em seguida.

Saí em busca de Inês logo em seguida — e não a encontrei. Não havia nenhum corpo abaixo das janelas daquela construção sinistra, nenhum sinal que indicasse qualquer coisa semelhante à remoção de um cadáver. Para mais estranheza ainda, a provável janela de meu quarto era sobre uma horta, cujas alfaces intactas eram ainda mais intrigantes que o formato barroco daquela lua que parecia uma gargalhada no céu.

Pela manhã, sepultei Jorge e sua esposa em duas das covas vazias do cemitério. As armas, eu achei prudente enterrar no solo fofo do fundo da horta, a fim de que aquela noite ficasse esquecida. E tendo feito isso, enquanto tomava da salobra água do único poço que servia à casa, me perguntei o que deveria fazer em seguida. O sol me respondeu que era preciso descansar. Mas descansar não me parecia nada sábio, diante das circunstâncias.


mais sobre mim
Março 2013
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30

31


comentários novos
Ótima informação, recentemente usei uma charge e p...
Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
Já ia esquecendo de comentar: sou novo por aqui e ...
Essa modificação do modo de ensino da língua portu...
Chico e Caetano, respectivamente, com os "eco...
Vai sair em inglês no CBSS esta sexta-feira... :)R...
Posts mais comentados
pesquisar neste blog
 
arquivos
subscrever feeds
blogs SAPO