Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
03
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Minha avó costumava me contar que toda esta região era pacífica e silenciosa até a segunda década do século, que ela mesma viveu numa casinhola entre árvores, beijada pela sombra fria da mata. Mas veio o café, veio a guerra, a estrada de ferro, vieram as armas. Mataram os índios, abriram clareiras, começaram a produzir. Mas em pouco tempo a terra negou seu seio, os cafezais feneceram, os fazendeiros faliram. O povo restou pobre, em uma terra mais seca e nua. Os trilhos de ferro recuaram, abandonando estações ilhadas nas montanhas.


Nasci aqui, sentindo esse vento seco e duro que cresta a alma e corta a cara, que arranca as folhas das árvores, como se tentasse arrancar os homens da terra. Mas eles só sairão quando chegar a hora da colheita. Toda vez que eu olhava os morros erodidos, as encostas peladas, a terra retalhada com cercas e dividida em lotes de cores diferentes eu me sentia cúmplice dessa violência.

Este ano, porém, começou diferente. O cheiro do ar foi outro desde o início, os dias foram encolhendo, as noites ficando mais frias e quando eu olhava as bordas dos morros cortadas contra as nuvens eu tinha calafrios, temendo que essa Hora maldita estivesse a caminho.

Nas primeiras semanas eu me senti assim, sozinho. Não tinha coragem de falar com ninguém, porque desde menino tivesse essa fama de sensível, de fresco, de frágil. Nem os calos duros em minhas mãos, nem minhas botinas armadas com arame, nem o cheiro forte da terra em meu corpo conseguiram apagar as impressões que os outros tiveram de mim no dia em que saí de mim e disse aquelas coisas que ninguém nunca ousou repetir.

Mas quando o outono começava a envelhecer, notei que não era mais o único. Podia pressentir que os jovens estavam irrequietos  que os velhos estavam mais abatidos. Alguns sonhando em voar, outros querendo dobrar definitivamente as asas. Então senti voltando a mim a sensação, e os cheiros, que me abateram naquela tarde de criança. Eu pressenti a proximidade do escuro, eu enxerguei as dobras do destino direcionando o correr de nossas vidas para o canto da mesa, para a caçapa inevitável. Senti a Presença pela primeira segunda vez, mas não tive medo nem ódio, aliviei-me de toda irritação e adorei aquela época do ano.

Os Gonçalves então apareceram com a notícia de que estavam indo embora. Eles tinham uma fazenda grande, com várias casas, currais, tulhas, silos e cocheiras. Tinham feito um trabalho bonito, por vinte ou trinta anos, desde que o velho Nhonhô Gonçalves chegara de Itaperuna cheio de dinheiro, que as más línguas diziam ser mal havido, e comprora a terra de um colono antigo, que eu nem chegara a conhecer. Eles trabalharam muito, fizeram render o seu dinheiro, tinham vacas, tinham milharais, canaviais, um pomar que dava gosto. Então veio aquela seca longa do ano retrasado, emagrecendo o gado, matando o milho plantado, prejudicando a cana. E justo quando a seca acabava apareceu a praga da erva roxa nos pastos, intoxicando os animais famintos que comiam tudo.

Perderam muito dinheiro, tiveram que vender as vacas boas enquanto valiam alguma coisa, muitas morreram vacas de fome, muitas ficaram vacas maninas, cresceram bezerros de pelo ruço, novilhas de tetas murchas.  Um gado sem valor, em uma terra que precisava ser roçada de novo, com uma praga que ninguém sabe de onde veio, como se o próprio demônio tivesse passado semeando.

Agora estão finalmente vendendo, e é uma tristeza ver os garotos com os olhos cheios de água, tentando sorrir enquanto põem preço naquilo que nada paga. Dizem que vão comprar caminhões, ganhar a vida no transporte de carga. Enquanto eles falam eu escuto um vento soprando forte, um vento que arranca folhas das árvores. O vento que anuncia que chegou o tempo de colher. Os dias continuaram encolhendo, as noites ficando frias. Colheita no inverno, colheita mais amarga. Os jovens irrequietos, os velhos andando de cabeça baixa. Eu sei que a escuridão está mais perto, alguma presença está aqui. Parece que o clima mudou, mas eu não estou mais gostando dessa época do ano.

Sempre vivi nesta casa de fazenda. Hoje fazem dez anos que meu pai morreu. Foi num agosto ventoso como esse, talvez ali eu tenha ouvido esse vento pela primeira vez. Herdei esta terra, estas cercas, estas pobres vacas, companheiras de meu infortúnio, pobres reses que eu nunca consegui vender. Não sei bem do que eu vivo, o leite que tiro mal dá para comer. Tenho a herança de uma tia rica, o ódio de uma mulher que me deixou. Faz muito tempo que não tenho medo, muito tempo que não sentia nada mau. Tinha aprendido a conviver com esta terra, deixar crescer o mato, receber a chuva, proteger a ave, abrigar o bicho. Dizem na cidade que eu também virei meio bicho, só porque não consegui cortar a árvore que nasceu debaixo do Mustang que ficava na garagem. Garagem que já caiu de podre porque não a uso: por que me enjaular entre dobras de ferro e produzir fumaça ruidosa pelo mundo? Vou a pé aonde vou, e sempre é perto. Dizem na cidade que a lucidez também me deixou.

Os Gonçalves eram meus últimos amigos. Catarina a última mulher que não me achava louco. Teria sido minha esposa se eu quisesse, me ajudaria a cuidar de meus coqueiros, meus horta, minhas laranjeiras, de todos esses pássaros que pousam na varando cada silenciosa tarde. Eles me dão uma música melhor que qualquer rádio.

Ficará um buraco em forma de Catarina em minha vida. Um buraco na forma de cada amigo que vai embora, na forma de deus que nunca vi, na forma de cada alegria irrepetida que nunca descobri.

Então esta tarde veio o homem de longe, com cabelos penteados, camisa branca de riscado roxo. Enverga botinas pontiagudas, sem esporas, porque sua montaria é dessas de que não gosto.

Ele me falou de coisas que não entendo — como dinheiro, eucaliptos e carros. Fala em derrubar estas espertas, angicos, paineiras, jenipapos, imbaúbas e ipês. No lugar de todas estas cores e perfumes diferentes, uma árvore apenas há de imperar, com sua resina roxa, seu aroma doce.

“Apenas oito anos”, ele diz, “e pode-se vender a um preço exorbitante. Tão exorbitante, aliás, que eu estou disposto a contratar agora a venda, para protegê-lo da possibilidade de que em oito anos tanta gente tenha plantado que o preço nem seja mais exorbitante. Aproveite esta oportunidade única na vida, está na hora de ganhar dinheiro outra vez, sacudir a poeira desta terra adormecida.”

Eram palavras bonitas, mas eu só consegui me fixar nas listras roxas de sua camisa, pensar nas folhas roxas da praga que matou o gado dos Gonçalves e vai levando embora Catarina. Nada de bonito pode vir de alguém que usa roxo. Cor de morte, cor de hematoma, cor de luto de homem, pois homem não se veste de viúva.

“Uma terra tão grande normalmente a gente oferece em parceria, mas se o senhor preferir podemos fazer-lhe um preço muito bom por seus cento e vinte alqueires.”

Não, não venderei a terra, nem plantarei eucaliptos. Tenho trinta anos e ainda tenho alguns mognos para ajudar a crescer. Espero um dia estender minha rede entre os dois jacarandás que plantei na entrada do terreiro, como sentinelas a bloquear a entrada de qualquer carro.

“Sua propriedade vai ficar isolada entre todas as outras, única ilha de mato e pasto sujo num mar de montanhas verdejantes de reflorestamento.”

Que seja, mas há uma beleza nas ilhas. As únicas que eu conheço são as que existem no rio, que eu costumo contemplar quando vou à cidade receber alguma venda, verificar a renda que me legou a minha tia e fazer minhas compras. São pedaços bonitos de terra que resistem no meio do rio, deixando a água passar ao largo, a turbulência ir embora. Resistem à enchente até. Que seja, minha fazenda será uma ilha. E eu o habitante feliz, Robinson Crusoé eternamente a espera de que não me resgatem dela. Espero viver muito, tenho de me cuidar. Enquanto estiver vivo talvez consiga proteger o trinca-ferro, o mão pelada e a preá.

Que sopre o vento o quanto quiser. Que leve embora as folhas doentes das árvores. Pode ser o tempo de colheita delas, mas as folhas vivas, que ainda bebem a seiva da terra, estas não vão ser arrancadas pelo primeiro vento.

Quando ele foi embora eu senti a escuridão mais perto do que nunca. Senti uma presença estranha aqui por perto. Estava perto da noitinha, mas eu não tinha medo. Faz muito tempo que não acontece nada estranho, esta terra nunca me fez mal. Nunca fizera mal aos índios que ficaram, os que a entenderam.

Mas o calafrio continuou, uma sensação de algo forte caminhando entre os galhos emaranhados, algo acinzentado, peludo e frio. Não tenho medo, mas não saio à noite quando pressinto isso. Fico na varanda contemplando o escuro, e o escuro me contemplando com seus olhos amarelos, que às vezes piscam. Acho que o estranho não deveria ter sido tão ousado, não a ponto de vir aqui em carro conversível.

Os grunhidos que ouvia longe, contidos, pareceram mais perto. Os olhos não estavam me olhando enquanto eles estalavam na noite. Ouvi o motor de um carro acelerar ao máximo, bater contra a minha porteira com a força de quebrá-la, mas por felicidade desapareceu pela estrada aos poucos. Pude ouvir o motor um longo tempo, como se a distância não aliviasse o pé do estranho de camisa roxa. Que nunca mais voltou, nem voltaria sob a mira de uma espingarda.

Ele talvez não saiba, mas não deveria ter falado comigo tão ríspido. Todos me chamam de louco, mas ninguém me incomoda. Não desde que o filho do Gracindo, aquele idiota, veio tentar caçar minhas capivaras. Eu o proibi, adverti, implorei, mas ele me estapeou, abusando de sua força e me chamando de maricas. Entrou na mata e não voltou. Sua mãe só o viu de novo embrulhado em plástico preto, uma fotografia ampliada colada no lugar do rosto.

Tentaram me acusar, mas não havia como associar minhas mãos com aquelas marcas, meus dentes com aqueles nacos de carne arrancada. Mataram uma pobre onça nestas redondezas e deram o caso por terminado. Isso é o que a polícia diz, mas ninguém nunca mais entrou na minha terra pensando em caçar. O povo daqui é mais esperto que esses polícias que vem de Ubá ou Muriaé, e não entendem a língua da terra. A diferença é que eu, diferente do povo, não tenho medo. Não vou me deixar levar.

Os Gonçalves foram embora hoje. Estava lá na despedida, barbeado pela primeira vez em meses. Uma cena de fazer chorar, os pobres homens, despossuídos de suas vidas, condenados a vagar no mundo conduzindo máquinas, a maldição da terra. Catarina estava entre eles, parecia mais triste que todo mundo. Não fui o único a notar que lhe haviam dado remédio outra vez, e amarrado suas mãos e pés.

Voltei para casa triste, sentindo a vida me escapar. Sentei na varanda olhando a noite, ouvindo os curiangos no terreiro, e sentindo falta dos olhos amarelos que me acompanhavam nestas solidões frequentes.

Então ouvi de novo o grunhido, e tampouco tive medo. Tanto faz à vida, se a gente morre tarde ou cedo. Mas a fera não tentou morder, nem veio junto a mim. Apareceram os seus olhos, amarelos, na penumbra do terreiro. E no dia seguinte eu encontrei na horta um lenço arrebentado, como se tivesse amarrado os punhos de alguém.

05
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 10:24link do post | comentar
Este texto é um trecho avulso do romance «Amores Mortos», que está em fase final de revisão. A história se passa entre 1984 e 2000 e neste trecho em especial está situada em 1994, pouco após o Plano Real. Oswaldo (variadamente referido pelos diversos personagens do livro como Vado, Vadico, Vadinho ou Valdo) é um sujeito que migra de emprego em emprego, por diversas cidades da Zona da Mata Mineira, geralmente trabalhando como representante comercial, vendedor de seguros ou funções assemelhadas. A história acompanha, de forma não linear, a sua vida amorosa, que incluiu mulheres de várias cores, idades e tem­pe­ra­mentos, e a sua busca pela paz interior, através de duas ou três religiões dife­rentes, inclusive atuando como pastor de uma pequena igreja em certa época e tendo um «papo sério» com Jesus no momento mais tenso de sua vida.
Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.

A certeza acelerou o coração, fez amargar a boca, causou aquele aperto por den­tro que acontece nos momentos de grandes escolhas. Ainda poderia simples­mente ligar o carro e ir embora, depois ligar de volta dizendo que… sei lá, qual­quer coisa. Porém, se o fizesse, levaria meses ou anos ou vidas martirizando-se pela falta de ousadia. Decidiu que levaria a coisa toda até o fim.
Tudo começara semanas antes, quando começara a conversar por telefone com Mar­lene, que trabalhava no escritório de alguma das muitas lojas a que vendia. Gos­tara da voz, quisera conhecer o rosto, encontrara-o dentro de um envelope, dese­jara o corpo, deixara o emprego, mas levara o número e chegava então à casa onde ela o esperava. Marlene, auxiliar de escritório em alguma loja pequena, de uma cidade razoavelmente grande para oferecer anonimato, bastante perto para possibilitar aquela aventura.

Lamentou que os telefones celulares ainda fosssem tão caros, ou poderia ter um no porta-luvas para discretamente chamar-lhe e perguntar alguma coisa antes de descer. Ouvir a voz dela o ajudaria a ter mais coragem, ajudaria a borrar um pouco a imagem de Cândida de sua memória.

Por fim desceu, mesmo sem coragem e com as pernas bambas. Atravessou a rua depressa, com as costas queimando como se milhares de olhares mapeassem cada passo. Tocou a campainha e refugiou-se na sombra da soleira esperando que nem todas as pessoas daquele bairro, daquela cidade, do estado, do país, do mundo, do universo, tivessem visto, tivessem notado, tivessem anotado sua presença.

Ouviu passos, pés arrastados no chão. Calcanhar de chinelo batendo. Passos de velha, ou passos também tremendo. A porta se abriu e lá estava ela, a mesma Marlene da foto, ou quase ela. Os cabelos eram mais curtos, o rosto mais estreito, um cheiro que a mulher fotografada não tinha. Marlene sorriu-lhe dentes bonitos, sempre o grande medo que tinha nos primeiros encontros. E começou a destrancar os múltiplos cadeados que protegiam a entrada.

— Tanta tranca — perguntou-lhe — é seguro deixar meu carro na rua aqui nesse bairro?

— Provavelmente — ela disse com uma voz que mal lembrava a do telefone — eu é que sou meio desconfiada.

Aberto o portão, pisou pela primeira vez a casa dela. Piso frio, paredes manchadas pelo uso, um cheiro suave de lavanda, os móveis simples, sofá coberto por uma capa de tecido liso.

— Aceita um copo de água?

— Obrigado, claro, é… foi uma viagem longa.

Ela lhe indicou que se sentasse no sofá, o que ele fez com cuidado, escorregando como se aquele assento o rejeitasse. Ela veio com o copo de água e sentou-se ao seu lado, sorrindo sem jeito às vezes. Tomou a iniciativa de pegar suas mãos, estavam frias, eram magras, eram duras, terminando em unhas pintadas de vermelho escuro, que combinava tão bem com o tom moreno da pele.

— Você veio mesmo.

— Duvidava que eu viesse?

— Claro. Por que você viria?

Fez-lhe uma carícia no rosto macio, apesar de macilento.

— Porque lhe disse que queria vir, é suficiente.

Ela sorriu outra vez, olhando obliquamente para algum canto da sala que ficava em outro universo:

— É suficiente.

E deixou-se escorregar até mais perto dele, até suas coxas se encostarem, separadas pelo brim das calças. Oswaldo se sentia com dezessete anos, como sem­pre se sentia quando surpreso na vida. E a vida vivia a surprender-lhe.

Olhou de novo para o rosto de Marlene: era bonita, mas a sua expressão sofrida o desarmava.

Então ouviu uma terceira voz na casa. Arrepiou-se, fez menção de se levantar. Ela o segurou pela mão e surrou-lhe ao ouvido:

— Calma, é só a minha prima que veio pegar uns discos emprestados. Ela já está indo embora.

Oswaldo não se sentiu seguro com esse consolo, mas não tinha a chave da porta. Sentia-se um coelho pego numa armadilha. Da sala não podia ir a nenhum lugar, nenhum esconderijo a não ser suas mãos. Ouvia os passos da prima que vinha de dentro da casa com passos parecidos com os de Marlene e pensava se não poderia, talvez, desaparecer como um vampiro na fumaça. Não pôde. Ela veio, deu boa noite e dirigiu-se à cozinha, seguida de Marlene, saindo pela outra porta, que foi trancada depois.

— Pronto, querido — disse ainda a meia voz — agora estamos sós.

E sentou-se ao seu lado, oferecendo a segurança que tinha fugido dele ao ouvir a voz da prima. Beijou-o com lábios firmes, olhos fechados e a alma faminta. Oswaldo, então, relaxou e abraçou. Não dirigira quase cem quilômetros desde Juiz de Fora para acovardar-se facilmente. Qualquer coisa que tivesse de dar errado, já daria sem que pudesse evitar.

— Espero que sua prima seja péssima fisionomista — comentou, cedendo pela última vez à covardia.

— Você se preocupa demais, ninguém o conhece aqui na cidade, como você mesmo me disse. Sua mulher nunca vai saber.

Beijou-a por sua vez. Apertou-a num abraço que revelou quão pouca carne havia sobre seus ossos. Então ela o chamou:

— Vem.

Levantou-se do sofá e a seguiu pela casa, rumo ao quarto. Pelo caminho conhe­ceu onde habitava a voz doce que conhecera pelo telefone: um pequeno quarto com beliche, certamente o das crianças, um banheiro pequeno onde ele mal cabe­ria, um quarto abarrotado de roupas e espalhadas pelo chão, contendo uma máquina de costura, um quarto maior, de janela única, com um roupeiro imenso, uma cama que parecia feita para alguém muito maior que Marlene, tão miu­dinha.

— Quer tirar a camisa para não amarrotar?

— Não precisa.

Tão logo ele o disse, Marlene tirou as mãos de seu colarinho e as levou à própria cin­tura, tratando de abaixar as calças rapidamente, revelando-se para ele sem ceri­mônia. Oswaldo se sentiu ridiculamente tímido e foi tratando de desabotoar a camisa, o que só terminou de fezer quando ela já havia pendurado toda a roupa no cabide junto à porta, e ainda não acabara de despir-se e ela já estava toda nua, de pé com seus cento e sessenta centímetros de ousadia. Quando final­mente se desvencilhou das meias, última cobertura de sua carne, abriu-lhe os braços, envergonhado, como um frango exposto no balcão do supermercado.

— Espero que você não se decepcione — comentou, pensando nas próprias per­nas finas, na barriguinha de cerveja que começava a crescer e no tamanho do próprio pênis, que ela poderia julgar insuficiente, considerando toda a fami­li­a­ridade que parecia ter com essas coisas.

— Nem um pouco — ela respondeu, lançando-se contra seu corpo.

O contato com uma carne estranha o fez estremecer. Mas não dirigira por quase cem quilômetros para falhar tão cedo. Abraçou-a quase como se ela fosse uma criança, apesar de seus trinta anos, e a pôs de pé sobre a cama, a uma altura que per­mitia que suas cabeças estivessem no mesmo nível.

— Então, vamos com calma, que ainda é cedo esta noite.

— Mas é tarde na vida — ela respondeu, filósofa.

15
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:44link do post | comentar

O ganso grasnou na neblina leitosa e Janaína chegou à janela para ver os raios infantis de sol nas teias de aranha que punham um véu nas folhagens úmidas, o orvalho parecia um salpico de perolazinhas: não havia maior troféu no mundo que estar viva e ver aquilo!

Dona Gertrudes trouxe uma bandeja de torradas com manteiga, café de rapadura e queijo. Tudo cheiroso como na infância soterrada pelo tempo. Há momentos na vida que parecem durar eternidades, mesmo sendo poucas semanas. E Janaína ouvia os ecos da infância como se tivessem sido numa era anterior, quase inimaginável. Estava de volta à cidade pequena e à casa da mãe. Nada era mais surpreendente do que isto. Depois que a mãe saiu num passo abatido, suspirou e começou a morder o desjejum enquanto contemplava o mundo, tão distraída que talvez não notasse um tiro de canhão.

Havia um pé de girassol além da cerca, algo melancólico de se ver, todos os dias, aquele movimento inconsciente da flor, aquela vitalidade vazia de planta… Nem as aranhas são tão desesperadas: fazem teias por instinto, mas não parece que ficam tão presas a um ciclo. Ao contrário dos girassóis elas podem pular de árvore em árvore. E tantas pessoas parecem girassóis. E tantas querem ser aranhas.

Quando deu por si mastigava o resto do queijo, que rangia gostoso na boca. Mal notou quando a mãe tirou a bandeja, resignada.

Afastou-se da janela com o cuidado que se precisa e foi ler outro capítulo do livro de Miguelito. O rapaz era atencioso, trazia-lhe livros e gastava horas preciosas de sua vida dando-lha atenção. Adorava Miguelito, ingênua e desesperada, mesmo sendo tão bonito — era um sonho inconsequente e necessário.

Dessa vez lhe trouxera um romance. Finalmente ela o convencera a parar com obras espirituais: “Não preciso me agarrar tanto a Jesus, pobrezinho. Se ficar o tempo todo falando em seu ouvido ele vai cansar e talvez não me ouça quando eu precisar”.

Miguelito se ofendera com a ideia. Sugerira, ácido, que Janaína “não aprendera nada”. Mas trouxe um livro que não era de orações nem exemplos edificantes. Demorou, porém, deixando-a com medo de ter perdido o amigo. Mas ele voltou, parecendo querer voltar — e isso importava muito.

Logo cansou do livro e preferiu pensar no amigo. Ele tinha uma pele morena muito uniforme, como se jamais tivesse sido agredido pelo sol, um tom moreno de nascença, de herença atávica. Seus olhos eram pretos, completamente pretos, como botões. Olhos que brilhavam, líquidos, quando a contemplavam. E tinha cabelos escorridos, cabelos de índio, grossos e saudáveis. Gostava de pensar nele, mas pensava melhor sob as cobertas.

Aproximou-se da cama com cuidado e com toda a energia que lhe sobrava nos braços. Ainda estava aprendendo muita coisa, ainda estava adquirindo força e delicadeza. Deixou a cadeira de rodas e passou para o leito. Enrolada nas cobertas, pensando nele, voltou a explorar restos de sensações na pele, mapeando-se, descobrindo onde ainda o sentia, imaginando o que poderia oferecer-lhe. Pois Miguelito merecia mais que seus sorrisos.


14
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 19:37link do post | comentar
O velho relógio bate nove e quinze no peitosorrindo para um piano que tocou meu lábiocomo o som áspero da morte que vem perto.Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto,procuro um desvio que retarde a sorte certaque aguarda os relógios, lábios e pianos.Quando achar um caminho errado destes,escondo minutos da espera que não quero.Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa,a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.

15
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 17:12link do post | comentar | ver comentários (2)

Comecei tendo os primeiros sintomas quando era ainda estudante. Vivia longe da família numa cidade distante e demorei a me enturmar com os meus colegas da faculdade: eles zombavam de meu dialeto, me chamavam de caipira e não compreendiam os meus valores. Isto me afastava das festas das repúblicas e progressivamente me empurrou para longe da vida social: aluguei um apartamento no centro da cidade e tinha um emprego de meia jornada.

Posteriormente eu me formei e o meu chefe me ofereceu o emprego em tempo integral, com um aumento de três vezes no salário. Eu fiquei na cidade e todos os meus antigos colegas voltaram para suas casas distantes, entre eles a única namorada que eu tive durante cinco anos de estudos. Meus pais continuaram vivendo em Santa Rita do Sul, a duzentos e vinte quilômetros de distância. Tentei várias vezes retornar, mas nunca consegui perto de casa um emprego que me pagasse tão bem. Era 1999 e eu já ganhava 920 reais por mês, administrando a contabilidade da empresa.

Nos fins de semana os estudantes sempre iam embora, deixando a cidade vazia como um cenário de filme. Eu sentava na escadaria do adro da igreja no sábado à tarde, com um lanchinho posto em forma de piquenique. Lá do alto do morro eu me sentia isolado, desconectado, como se a Matriz existisse em outro universo. Quando passava algum carro lá embaixo, na rua, eu quase nem o ouvia: o calçamento de pedregulhos fazia os motoristas acelerarem pouco, não chegando a romper a calmaria.

Não havia nada no sábado à noite, a não ser os bailes da Terceira Idade. A cidade não tinha rádio, não tinha discoteca, não tinha exposição. Tinha uma infinidade de casas que sediavam repúblicas, casas que ficavam vazias como mausoléus quando chegava o fim de semana. Os colegas de trabalho eram quase todos vinte anos mais velhos do que eu, ou então garotos que viviam em cidades próximas e voltavam de ônibus para casa no final da manhã de sábado. Somente eu ficava, vagando pela cidade como uma alma penada no cemitério.

Quando finalmente comprei o carro e consegui aprender a dirigir, já havia me acostumado tanto com a solidão que tinha dificuldades para saber aonde ir. Dirigia até o trevo na saída da cidade, estacionava em um terreno baldio e olhava, intimidado, para os destinos múltiplos, para as placas verdes que indicavam lugares distantes. Tinha medo da estrada, medo do trevo, medo da vida.

Demorou muito tempo, porém, para que eu percebesse que estava doente. Inicialmente eu pensei que tinha algum tipo de problema do espírito e somente depois do fracasso da fé entendi que não era nada disso. Mas continuava sozinho.

Havia alguma coisa errada comigo, isso eu sabia. Alguma coisa de muito errada, alguma coisa que me afastava das pessoas, que me podava o caminho da felicidade. Mas em vez de reagir a isso eu me trancava, eu comprava cortinas escuras para as janelas, instalava filme escuro nos vidros do carro, mandava porem cortiça nos batentes das portas para isolar os ruídos de fora.

Conheci o Doutor Aristides no clube. Eu tinha comprado uma quota, mesmo sabendo que lá só encontraria senectude e solidões. Mas o Doutor Aristides era diferente. Tinha uma jovialidade estranha para os seus setenta anos de idade, mesmo sem pintar os cabelos. Sua fala era firme como a de um locutor, seus dedos manuseavam o baralho com a segurança de um mágico. Tinha sido médico da Marinha por muitos anos e se acostumara a tratar todo tipo de “esquisitices”.

Convidou-me ao seu consultório, com a promessa de curar-me. Não prometeu rapidez, no entanto. Era um “psicólogo homeopata”, e acreditava que a cura seria um processo a depender do próprio indivíduo, em vez de um efeito de medicamentos.

— Eu poderia receitar-lhe química maravilhosa, que interferiria com o seu cérebro e o faria sorrir. Mas eu não consigo enxergar dentro dos sorrisos das pessoas que usam essas substâncias, não sei se estou realmente fazendo-lhes bem ou prendendo suas almas dentro de sorrisos rígidos. Por isso eu estou desenvolvendo um novo tratamento, que estou chamando de “psicologia homeopática”. Claro que não é um tratamento aceito ou recomendado pelo CRP, mas eu posso me dar ao luxo de fazer estas extravagâncias agora. Estou aposentado e nada mais tenho a perder no mundo, se resolverem me cassar esta carteirinha preta com essa bela letra grega em dourado. Tenho bastante dinheiro para ser louco e tenho bastante loucos dispostos a tudo para salvar-se de seus demônios.

— Estou louco, doutor?

— Todos estamos, meu amigo — ele dizia.

Não me cobrava pelas consultas. Dizia que já tinha cobrado suficiente ao longo da vida para ter a casa e seu consultório.

— Mas não estou fazendo caridade, entenda. A não ser, talvez, comigo mesmo.

Demorou muito tempo até que eu entendesse o que o Doutor Aristides quisera dizer com esta observação.

O tratamento que ele propunha se baseava nos princípios de Hahnemann: simila similibus curantur.

— Para tratar-se de teu mal, o que precisas é de pequenas doses controladas deste próprio mal. Assim como amor com amor se cura, solidão se curará com solidão.

— De que forma eu posso ter doses controladas de solidão?

— Uma das coisas curiosas a respeito dos solitários é que frequentemente eles são interrompidos naquilo que fazem em suas horas de solidão. Desta forma, mesmo não tendo companhia real, eles não conseguem usufruir plenamente de sua solidão. Então é preciso que desenvolva métodos e rituais que lhe assegurem que os seus momentos de solidão sejam de solidão verdadeira. Que não sejam interrompidos por um imbecil cobrando-lhe a conta do condomínio ou por um boçal tocando música em uma festinha de aniversário.

Por isso eu gostava de fazer piquenique no adro da igreja: ali eu estava imerso em meus próprios pensamentos e ninguém aparecia para interromper!

— Mas, Doutor. Não existe o risco de continuar sozinho o tempo todo?

— Sim, claro. Como ai dizendo. A falta de fruição completa da solidão nos momentos que deveriam ser-lhe dedicados faz com que o indivíduo acabe tendo vontade de estar só nos momentos em que deveria buscar companhia. É mais ou menos como a fome que se tem durante a tarde quando o almoço é insuficiente. Mas você não deve comer entre as refeições, porque isso o tornaria gordo e lerdo com o passar do tempo. Da mesma forma, procurar ficar sozinho em outros momentos em que não deveria estar, fará com que se torne arredio e socialmente inapto.

— E em que consiste o seu tratamento, Doutor?

— Basicamente em duas coisas: assegurar a solidão perfeita e satisfatória nos momentos em que for necessário que o indivíduo esteja sozinho e, por outro lado, procurar impedir totalmente que a solidão se manifeste em todos os demais momentos de sua vida. Acredito que se conseguirmos um grau elevado de preservação destes dois momentos distintos, isolando-os entre si, a doença da solidão pode ser controlada ou, talvez, até mesmo curada. Estou iniciando o cadastramento de um grupo de voluntários para submetê-los a este tratamento que concebi. Se desejar participar, eis meu cartão.

— Não tenho dinheiro para um tratamento psicológico longo, Doutor. Ganho bem, mas não tão bem assim. A menos que o senhor tenha convênio com o meu plano de saúde.

— Não diga isso. Eu não lhe cobrarei nada. O senhor é que deveria ser pago por dispor-se a ajudar no progresso da ciência.

Peguei o cartão enquanto nos despedíamos depois de outra tarde de carteado e fui para casa determinado a ligar. Resolvi, no entanto, que tendo o Doutor me dado uma descrição tão completa e funcional de seu método, não era necessário que eu o procurasse: poderia automedicar-me, conduzir eu mesmo o tratamento, obtendo minha melhora sem o constrangimento de ter de frequentar um consultório de psicólogo.

Por isso, acabei ligando para o Doutor Aristides e comecei na segunda feira seguinte o tratamento. Reservei e cronometrei estritamente as horas de minha vida em que deveria passar estritamente só, sem a possibilidade de que me interrompessem. Durante estas horas, segundo o Doutor, eu deveria mergulhar o mais profundamente possível em meus próprios pensamentos e ideias, em meus sonhos frustrados de infância, em meus projetos pequenos de futuro.

Mas não funcionou. Embora eu tivesse algum sucesso em isolar-me melhor nos momentos de solidão, continuava sendo extremamente difícil impedir que a solidão pervagasse como uma sombra todos os demais momentos de minha vida. Impedir isso se mostrou muito cedo uma coisa impossível, acima das capacidades de um indivíduo.

O Doutor Aristides me recebeu sem questionar a demora. Ao lhe indagar a tolerância ele admitiu que a maioria das pessoas nunca aparecia:

— O ser humano parece acreditar que pode curar-se da solidão sozinho.

Eu já conhecia a essência do método, só não estava a par de sua implementação. Surpreendeu-me a longa sequencia de perguntas que o médico me fez. Quando terminamos todos aqueles testes, aquelas perguntas de livre associação, aqueles cartazes com borrões e outras coisas curiosas; ele me olhou nos olhos e decretou:

— O tratamento para a solidão consiste em um tipo de terapia de grupo.

— Algo como os alcoólicos anônimos? Aquela coisa de reuniões em torno de um grande círculo e filmes educativos e preces a Deus, etc.?

— Não, absolutamente nada disso. Você não tem um vício, você não é um pecador, você não comete crime algum. Você não precisa de perdão e nem de reedificação moral. Você é um doente que precisa de um tratamento. Só que o único tratamento possível é de uma natureza tal que se torna impossível levá-lo adiante sem ajuda.

Ele abriu um armário cheio de caixas de remédios atravessadas por tarjas pretas. Aqueles frascos diabólicos bem poderiam estar estampados com caveiras em vez dos logotipos ameaçadores de laboratórios mágicos localizados em cidades míticas.

— Eu poderia lhe receitar alguns desses. Aliás, pegue os que quiser no caso de querer ter uma viagem, eu lhe receito as doses seguras.

Afastei-me do armário como se ele contivesse feitiços poderosos.

— Mas estas substâncias não o curariam. Elas o fariam sorrir, certamente. Elas o fariam perder a vergonha e o fariam sonhar melhor. Todas essas coisas são boas, mas eu não acho bom tomar remédios para elas porque isso aí — ele apontou os frascos com o beiço — é como antitérmico para pacientes tuberculosos. Você quer ficar sem febre? Pode tomar alguns comprimidinhos. Mas a infecção está lá dentro, roendo a sua vida. Quer rir? Este daqui é ótimo — ele exibiu um frasco de Prozac — para isso e para outras coisas mais. Mas de que adianta rir com a boca e com a mente consciente se as causas de sua tristeza estão lá dentro enterradas, prontas para germinar no dia em que a dose falhar ou seu dinheiro para comprar outra caixa tiver acabado? É por isso que eu não acredito em remédios. Não nos da minha especialidade.

— Então eu não vou tomar remédios, doutor?

— Claro que não. A menos que se sinta mais confortável com a ideia de tomar alguma coisa que cause alguns efeitos colaterais. As pessoas costumam gostar de efeitos colaterais. “É o remédio agindo, você tem que suportar isso para melhorar depois”.

Demos juntos uma boa risada.

— De vez em quando, filho. De vez em quando você precisa de algumas pílulas do demônio para poder enfrentar isso aí — ele indicou a janela e o grande mundo lá fora com o seu queixo mal barbeado. A principal função dos psicólogos é dar as doses certas, demarcar o limite entre sonhos felizes e o paciente ficar catatônico e babando.

— Do jeito que o senhor fala, até parece que algum dia poderá me receitar um ácido.

— E por que não? Veneno por veneno… Eu já estou velho demais para acreditar em poções, meu filho. Se te faz bem, então tome uma dose segura depois de contratar alguém para limpar a bosta que vai cagar na calça durante a viagem…

— O que vamos fazer agora?

— É neste ponto que o método de tratamento passa a precisar da cooperação de todos os que estão se tratando, e do próprio terapeuta. Você precisa encontrar compromissos, mesmo que fúteis, para impedir que a solidão esteja presente nos outros momentos de sua vida. Da mesma forma como durante um tratamento existem momentos em que você está “tomando o remédio” e outros nos quais você “não está tomando o remédio”; e estes segundos são a maioria. Assim, você deverá “estar sozinho” durante certo tempo, mas não poderá estar sozinho durante o resto do tempo ou estaria tomando o remédio o tempo todo.

— O que me levaria a uma overdose?

— Não, meu amigo. Overdose é um termo alopático. Ele não se aplica nesse caso. Na verdade, quanto mais remédio você tomar para o seu mal, menor será o efeito. Se você permitir que a solidão esteja presente em todos os momentos, mesmo que marginalmente, então você nunca se curará. É preciso, em vez disso, reduzir a dose do remédio de forma progressiva até que ela se torne infinitesimal. Somente assim ele se tornará tão potente que eliminará a doença de sua alma.

Tendo feito estas observações, ele me apresentou ao programa de tratamento. Os demais pacientes, seis ao todo, eram um grupo aleatório de pessoas da cidade. Alguns nascidos lá, a maioria pessoas vindas de fora. Pessoas de todas as idades, mas a maioria residindo na casa mística dos trinta.

Maria Helena Fontes era uma dessas matriarcas do interior que apreciam casa cheia de netos aos domingos e muitos parentes que vêm de longe com histórias. Infelizmente ela tinha ficado viúva e perdido seu único filho em um acidente de automóvel, quinze anos antes. Não se casara de novo porque não conseguia se recuperar do amor imenso que tivera pelo marido, cujas fotos ainda enchiam a casa. Mesmo que se tivesse casado, porém, não teria tido filhos aos quarenta e cinco anos. A família do marido se afastara dela, a própria família morria aos poucos, deixando-a sozinha em uma casa enorme, cuja criadagem ela quase já não podia pagar.

Isabel era professora de educação artística em uma escola pública. Era bonita, embora o viço já lhe tivesse abandonado. Vivia sozinha em uma casinha herdada do pai, cercada por um jardim e por uma horta, cultivados ambos por suas mãos que viviam calejadas e sujas da tinta dos quadros que ela ainda insistia em pintar, embora raramente alguém comprasse.

Aderbal era um comerciante detestado pelos seus empregados devido a muitos erros cometidos no passado. A mulher o abandonara por causa de uma crise de ciúmes que lhe custara dois dentes. Aderbal vivia sob constante supervisão da polícia e o efeito de vários medicamentos de tarja preta. Seus filhos nunca o visitavam.

Artur era empregado de uma loja de material de construção. Era pequeno, feio e dentuço, embora dono de voz afinada e de um raro talento com o violão. Infelizmente, voz e violão não importam mais neste mundo que precisa de belos rostos: o máximo que lhe propuseram como carreira artística fora emprestar talento para um rosto adequado, em troca de um salário que seria uma percentagem pequena. Reagira indignado e abortara a carreira. Agora vendia material de construção e cantava em bares nos fins de semana. Ganhava pouco e vivia em um apartamento pequeno, de quarto e sala.

Dagmar era enfermeira no Hospital Municipal. Anda sempre maquiada e com as unhas impecáveis, mas nunca sorria. Na cidade tinha a fama de ser uma sádica, do tipo que fazia questão que a injeção sempre doesse, que o ponto da cirurgia sempre ficasse um pouquinho mais apertado que o necessário ou que o tapa nas nádegas da criança recém-nascida fosse um pouco mais forte. Colara grau em uma época em que mulher com diploma ainda era um bicho esquisito no interior. Nunca namorara e provavelmente era virgem aos quarenta e dois anos.

Julieta era uma adolescente gorda e que usava maquiagem pesada. Vestia-se pesadamente, tudo nela passava a impressão de peso, de morte, de tristeza. Comia compulsivamente e sentia-se imensamente feia, baleia. Não tinha amigos, não tinha namorado. Seus pais a mandavam de um médico para outro, de um regime para outro. Queriam pagar-lhe uma cara cirurgia em São Paulo. Não suportavam mais, queriam consertar a filha gorda a qualquer preço. Mas ela sempre passava em casa as noites solitárias de sábado, as horríveis manhãs de domingo, cada horrível dia da semana, especialmente os de escola.

Eles foram os primeiros que eu conheci: depois foram vindo outros, saindo outros.

— Vocês devem organizar-se de forma a suprimir a solidão da vida dos demais nos momentos em que eles não estejam se tratando. Mas apenas nesses momentos. Devem organizar-se de forma que cada um esteja longe dos demais durante certas horas, mas ao mesmo tempo esteja com alguém no resto do tempo, para limitar a aplicação do tratamento aos momentos designados. Como vão fazer isso é irrelevante, mas o importante é limitar a dose.

Organizamo-nos de diversas maneiras. A senhora Fontes fazia bolos e nos convidava para tomar o café da manhã de domingo em sua casa. O Aderbal tinha uma chácara onde sempre organizava almoços de domingo à beira da piscina. O Artur nos convidava para estudar com ele para o concurso dos correios. A Isabel nos levava às suas aulas de pintura no campo. E assim cada um ajudava a todos os demais no difícil controle da solidão.

Difícil porque, mesmo em companhia, havia momentos em que a solidão tentava se inserir, como uma cunha, o que poderia destruir a eficácia da aplicação. Era preciso então que alguém se aproximasse e interrompesse a reflexão solitária do paciente que se estivesse desgarrando. Manter a solidão sob controle, limitada aos momentos em que deveria estar ser parte do tratamento, acabava sendo uma tarefa tão complexa que nossas vidas começaram a girar em torno disso.

Éramos um grupo pequeno e difuso, formado por pessoas de temperamentos díspares e histórias de vida que vinham e iam por estradas que nunca ou raramente se encontrariam de outro modo. Mas todos éramos solitários, cobaias do revolucionário tratamento homeopático proposto pelo Doutor Aristides. E por sermos parte daquilo de forma que se tornava cada vez mais obrigatória, acabamos convivendo à força uns com os outros, criando vínculos de amizade ou de afeto.

O tratamento inteiro durou oito meses para mim. Durante este tempo presenciei várias pessoas que se disseram curadas e vários pacientes que chegaram, em momentos distintos. Também houve alguns abandonaram o tratamento por razões de força maior, como o Artur, que passou no concurso e foi embora, levando sua solidão ainda. Ou como a Isabel, que se matou devido ao pensamento fixo de que o tratamento não adiantaria. Foi uma grande perda. Isabel era bonita, eu gostava dela. A maioria, porém, melhorou ou permaneceu em tratamento depois que eu mesmo saí.

A minha saída, aliás, foi gradual. Acredito que lá pelo quinto mês eu já estava “saindo” sem o perceber. Foi preciso que o Doutor Aristides me fizesse ver que eu já estava fora. Nas primeiras semanas do tratamento havia pouca

A cura aconteceu, para mim, de uma forma aleatória. O Doutor Aristides me telefonou no fim de semana. Eu estava na praia, em companhia da Eva, minha namorada.

— Meus parabéns, você está estabilizado. Gostaria que viesse ao meu consultório durante a próxima semana para termos uma conversa.

Apareci no consultório tão logo voltei. Logo ao entrar fiz a pergunta obrigatória:

— Estabilizado ou curado?

— Eu prefiro dizer que está estabilizado. Não existe cura real para a solidão. Mas tenho analisado a sua progressão e posso dizer que você já não precisa do tratamento intensivo. Estou lhe dando alta do grupo de trabalho.

Foi como se removessem o chão sob meus pés.

— Por que diz isso? Como assim? Eu não vou mais participar do grupo? Fiz algo de errado?

— Calma, rapaz. Examine a sua própria vida e entenderá. Isso não é uma punição.

— Mas eu ainda me sinto tão só às vezes.

— Sempre se sentirá. “Sentir-se só” é uma coisa que acontece com os seres humanos de vez em quando. “Sentir-se triste” também. Não existe nenhum pecado nisso, não é crime isso.

— Quer dizer que voltarei a me sentir mal?

— Claro que sim, e muitas vezes. A vida tem dessas coisas: dias bons e dias ruins. As pessoas às vezes se esquecem disso porque nós vivemos em um mundo que parece querer que todos estejam rindo o tempo todo, que todos estejam permanentemente prontos para o sexo, festejando a vida maravilhosa. Mas isso é ilusão, nós dois sabemos que esse mundo é uma merda, que todas as pessoas têm seus dias tortos e que é uma sorte quando o seu santo e o da sua mulher estão em sintonia para uma boa trepada.

— É meio frustrante sair do tratamento assim.

— Exatamente por isso que você precisa sair.

— Hem?

— Uma premissa do tratamento homeopático, mesmo desse tipo estranho de “homeopatia” que eu ando praticando, é que o remédio só funciona enquanto existe doença. A partir do momento em que a doença deixa de existir o remédio passa a causá-la. Sua frustração é resultado de sua participação no grupo de terapia, e não de deixá-lo. Desapegue-se, garoto. Bata suas asas e viva sua vida. Aquilo lá não é mais para você.

— Mas… e os meus amigos?

— Caso não tenha notado, a maioria dos amigos que fez já saíram do grupo. Procure-os. E a propósito, pague-me o resto dos dois mil reais.

Naquele instante eu me dei conta do quanto fora eficaz o tratamento. A convivência com todas aquelas pessoas diferentes me apresentara a figuras paternais, como a Senhora Fontes ou o próprio doutor, a amigos de verdade, como o Aderbal, uma espécie de afilhada, como a Julieta e até uma namorada, a Eva, com quem planejava me casar.

— O objetivo do tratamento — disse-me o doutor indicando-me a saída — não é torná-lo feliz porque isso é impossível nesse mundo. Eu me contendo em tratar a solidão das pessoas. Acredito que você é mais um de meus casos de sucesso, e sem precisar receitar nada do maldito armário.

Na saída do consultório passei o cartão de crédito com a secretária e deixei o prédio me sentindo como quem acaba de montar um quebra-cabeças de duas mil peças, mas descobriu que a figura não fazia nenhum sentido. As palavras do Doutor Aristides eram coerentes, mas eu as ouvia como se elas fossem de madeira. Elas faziam ruído em meus ouvidos e não entravam em minha cabeça. Eu só conseguia continuar me perguntando de que forma o Doutor Aristides merecera os dois mil reais.

Quando perguntei para Eva, no entanto, ela foi pragmática:

— Você não precisa saber como, querido. Basta você aceitar que ele os mereceu muito.

Um mês e meio depois nos casamos. O Doutor Aristides não aceitou de maneira alguma o meu convite para padrinho de casamento. Na hora da cerimônia, porém, o motivo ficou claro: aparentemente não se chamava Aristides o risonho cavalheiro que entrou na igreja levando Eva pelo braço, envergando um rigoroso uniforme de médico da Marinha.


12
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:51link do post | comentar

Ela se foi e eu fiquei sozinho o resto da noite naquela casinha de pedras no meio do nada. Não tive, porém, tempo para sonhos loucos ou terrores noturnos: apesar do breve sono da tarde, eu estava cansado demais pelos três ou quatro dias de estrada para negar-me a dormir na cama macia e segura, apesar de suja.

Acordei na manhã seguinte com um sobressalto: nos últimos estertores do sono eu havia encontrado uma abertura para ter um pesadelo e lembrei da misteriosa mulher que se jogara no abismo.

Ao me levantar, deparei-me com o fogo aceso e com a mesa posta para o desjejum. Era curioso que isso acontecesse, visto que eu fora dormir sozinho naquela cabana. Mas sobre a mesa estava um envelope rústico contendo um bilhete numa caligrafia que parecia saída de um manuscrito medieval:

Tente não demorar muito nessa casa: ela não o salvará de si mesmo, e o exporá a muitos perigos que você não conhece. Não deixe que minha irmã Lua o engane.

O caderno que eu subtraíra da suicida estava dentro do envelope: sua capa de couro marrom estava úmida, como se manchada de sangue, do sangue dela. Mas não estivera assim quando o pegara. O cheiro dele era quase insuportável, como se o seu texto revelasse horrendos e imemoriais segredos. Coloquei-o na mochila pensando em tentar ler depois.

Tomei do amargo café e comi dos pães duros, untados de manteiga rançosa, e fui ver o que havia do lado de fora. O cavalo da desconhecida estava pastando no relvado próximo à cabana, e pareceu dócil à minha aproximação. Abracei-o carinhosamente, lembrando a pele áspera, mas feminina, de sua dona morta. O cavalo me olhou profundamente, como se tivesse inteligência em vez de ser apenas uma besta de carga.

Selei e montei aquele animal com o respeito que merecem os cavalos, pelo menos no mundo estranho em que eu tão de repente me perdera. Saímos pelas estradas

A estrada era larga, maltratada e pedregosa. Um cavalo poderia facilmente derrapar e cair naquele chão traiçoeiro. Ninguém seguia no rumo oposto, ou no mesmo, e o silêncio da paisagem conspirava como se todo o mundo se tivesse desabitado de seres humanos e das trevas o mal me espreitasse. Cavalgava por horas sem destino, observando cada traço da paisagem, sempre buscando alguma indicação de rumo.

Quando o sol estava alto no céu, parei à sombra de um imenso pau-ferro à margem da estrada e roí algum pão enquanto observava as estranhas runas do caderno. À luz do sol elas pareciam bem menos misteriosas, dava para ver que estavam em alguma língua humana, embora talvez antiga demais para que eu a reconhecesse. Montei novamente e segui meu rumo sem sentido.

Ao cruzar a crista de um morro bastante íngreme, entrei em um território onde parecia ter chovido recentemente. As folhas estavam tão viçosas que dava vontade de fazer-lhes carícias, e os grilos por toda parte se preparavam para a noite que em breve cairia.

Todo o meu dia foi passado em uma estrada interminável, serpenteando por entre montanhas e vales e matas e rochas. Nenhuma casa, nenhuma viva alma, nenhuma encruzilhada. Mas quando já começava a cair à noite, num raro trecho de vargem à beira de um rio largo, limpo e tão silencioso quanto um lago cheio de sapos, eis que achei a primeira bifurcação da estrada desde que entrara naquele mundo. Lembrei-me dela imediatamente, pois fora através dela que eu entrara naquele lugar.

Contemplar aquele lugar me fez sentir firmeza novamente: ali estava o elo que me levaria de volta aos lugares conhecidos, onde as coisas todas têm explicação. Bastava guinar o cavalo à direita e subir aquele morro baixo e triste, tão cheio de feridas avermelhadas. Do outro lado, salvo engano, haveria a cachoeira onde eu me banhara pouco após sair do cemitério da cidade sem nome.

Porém não havia força no universo capaz de me forçar a tomar aquele caminho. Por ele certamente eu retornava ao mundo conhecido, mas por ele eu igualmente retornava ao mundo no qual havia homens cruéis determinados a me conduzir à presença da lei arbitrária que me enquadrava como um facínora. Permanecer naquele mundo estranho era permanecer longe do pau de arara e da cadeira do dragão.

Por isso não tomei nenhuma atitude, apenas deixei que o cavalo, preguiçosamente, seguisse o caminho do menor esforço, o caminho através do qual eu continuaria margeando o rio e me dirigindo à noite que nascia com a lua entre duas montanhas redondas como seios.

Não demorou que começassem a surgir outras encruzilhadas. Estas, porém, eu não conhecia. Cada uma delas poderia ter me levado de volta, ou ainda para mais longe. Mas nelas eu não tive de deixar que apenas o meu livre arbítrio me guiasse.

Logo na primeira delas havia um lenço dependurado em um galho de goiabeira. Poderia ter sido uma indicação, ou poderia ter sido apenas um pedaço de roupa rasgado quando um cavaleiro passara em disparada. Aquele alvo pedaço de pano já estava tão úmido pelo tempo que não guardava traço algum do perfume ou da catinga de quem o usara um dia.

Na encruzilhada seguinte havia uma pedra grande. De cada lado havia uma fratura que se assemelhava a um assento. Mas somente em um dos lados havia algo diferente: um livro, também mostrando sinais de ter sofrido com a chuva. Apeei e fui buscá-lo, pensando nas informações que ele poderia ter, mas era somente um daqueles livros baratos com histórias para moças.

A noite começava a se desdobrar, como um vestido escuro cobrindo a linda nudez da paisagem. O livro tinha a capa arrancada, indício de que fora talvez comprado a quilo em um encalhe de banca de jornal. Mas ao folheá-lho percebi que a sua presença ali poderia não ser casual: havia frases sublinhadas, palavras isoladas marcadas a tinta. Concatenando os trechos soltos parecia haver uma mensagem, mas ela fazia pouco sentido:

Vivendo em uma linda casa … morrendo por … isso a … enganara … pensava talvez em fugir … enfeitiçar … quem vier …

Segui pelo caminho sugerido por aquele livro. Notei sem espanto que ali a noite caía silenciosa, nenhuma viva alma passava, nenhum pássaro piava. Uma negra solidão foi me envolvendo ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de fazer amor outra vez, com a misteriosa morta.

Na virada do morro seguinte se descortinava um vale desolado, um amontoado de construções de pedra muito mal acabadas com um ar mais de fortaleza que de residência. Uma alta torre encimada por uma cruz inscrita dentro de um círculo predominava sobre as demais construções, mais baixas, indicando que aquele lugar, em algum momento perdido de um passado, fora consagrado. Ao lado da enorme e negra igreja de pedra nua, coberta de trepadeiras, um mar de cruzes quebradas e lápides gastas indicava que aquelas colinas cobertas de touças altas de capim haviam sido, num passado distante, uma aldeia populosa.

Mas quando me aproximei eu vi que todas as covas haviam sido escavadas, sabe Deus quando, e que os antigos residentes delas tinham sido levados, somente Ele sabe para onde. O cavalo trotava com familiaridade por aquele terreno, como se tivesse sido apascentado ali desde que fora um potrilho. Depois de passar pelo cemitério o caminho passava a ser calçado de lajotas irregulares de pedra calcária, muito gastas pela chuva de séculos e por cascos e pés de todas as espécies. Detrás da igreja aparecia uma construção que destoava do resto: baixa, clara, geométrica e aparentando modernidade. Estava silenciosa como tudo, e escura também. Outra construção, um imenso paralelepípedo negro com janelas, repousava na parte mais baixa, já perto de um regato que quase não murmurava. Uma luz acesa ali indicava que alguém vivia, ou vegetava, naquele lugar.

Mal podendo imaginar o que me aguardava, em vez disso agradecendo a sorte de um pouso — e talvez até de um lugar onde ficar pelo tempo que fosse preciso — eu me dirigi à porta daquela medonha habitação. A sua porta alta indicava uma construção totalmente fora dos padrões de hoje, com um pé-direito de três metros ou mais. A pesada madeira nem se moveu quando a toquei, nem pareceu sentir quando a pesada aldrava de ferro soou.

Um homem veio atender, macérrimo e pálido. Tinha a fisionomia desolada e os lábios finos. As suas unhas estavam crescidas e as suas costas eram curvadas. Ele poderia ter oitenta anos ou mais.

— O que deseja?

— Encontrei o cavalo por aí venho saber se não pertence a esta propriedade.

— Não criamos cavalos — ele respondeu secamente.

— E nem ao menos pode me dizer de onde é o animal?

O homem deu dois passos para fora e olhou o triste cavalo em que eu viera. Ao vê-lo a besta curvou a cabeça e soltou um relincho de reconhecimento. O homem resmungou alguma coisa que eu não entendi, acariciou o cavalo com uma doçura surpreendente e tirou do bolso algo que lhe deu. Mas quando se voltou tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Então o cavalo é daqui?! — eu devolvi secamente.

Ele permaneceu ainda em silêncio por um tempo. Por fim acenou com a cabeça.

— Reconheço a criatura, mas ela não pertence a nenhum proprietário das redondezas.

— Não compreendo.

— O que lhe importa, com mil demônios?! Pode deixá-lo comigo. Quanto à recompensa, receberá do diabo.

— Sua falta de educação finalmente me irritou. Com que então eu tenho a boa vontade de trazer um animal perdido e o senhor me manda buscar recompensa com o demo! Vá à merda e que ele o leve!

A intensidade da minha rudeza surpreendeu-me. Nunca antes me imaginara sendo tão agressivo com alguém, especialmente com alguém que parecia estar visivelmente assustado e agindo contra sua vontade. Mas era bom exercer minha prepotência depois de tantos dias humilhado na estrada, mesmo que ela me atirasse de volta ao desamparo.

— Você não sabe o que diz!

Ele respondeu com um desprezo e uma expressão de desolação tão profunda no rosto que por um momento eu quase me arrependi. Mas logo recompus minha dureza. Nesse momento, uma voz familiar gritou de cima perguntando quem era e simplesmente ao ouvi-la eu retomei minha firmeza absoluta. Uma chuva fina e fria começara a cair, um vento cortante assobiava nas árvores e uma mulher apareceu à porta, com uma expressão gelada no rosto, como se jamais me houvesse conhecido. Ela era loura bela, como a jovem grisalha que eu vira na descida da montanha fatal.

— Jorge!?

— Ele trouxe o cavalo — disse num fio de voz o Jorge.

— Muito obrigada — disse a mulher, estendendo-me a mão com um sorriso — serás recompensado. Jorge, não vamos deixar que este homem siga viagem sob esta chuva cruel e este frio que vem com a noite, faça-o entrar e lhe prepare um quarto de visitas.

— Realmente, senhora, não é de bom-tom deixar que ele atravesse esta noite inclemente a pé…

E me fez entrar.

A aparência interna do lugar não era melhor que seu exterior desolado. Os móveis eram todos muito grandes e de desenho bruto, o chão era de lajotas enceradas e as paredes caiadas não ostentavam nenhum ornamento. Prepararam-me uma mesa na cozinha e comi alimento recém-preparado pela primeira vez em muitas semanas. Jorge e sua mulher, uma criatura gorda e sorridente, eram os únicos empregados daquela imensa casa.

Depois de terminar, me conduziram escada acima até um pequenino quarto de hóspedes localizado logo à direita, antes de um imenso portão de ferro trancado com um cadeado maior que a minha cabeça. Além do portão um longo corredor com várias portas. Seguramente aquele edifício fora um convento e aquelas eram as celas em que dormiam solitariamente os frades ou as freiras do lugar.

Depois que me fez entrar em meu quarto, pude ouvi-lo girar a chave na fechadura e tive medo pela primeira vez em muito tempo. Segurei a maçaneta, mas já era tarde: Estava trancado! O quarto, uma das celas do antigo monastério, era grande o bastante para caber um guarda-roupa, uma cama e uma mesa de cabeceira. Para mais nada, porém. Havia uma única janela vazando as paredes muito grossas que davam para o exterior. Apesar de estreita, era larga o bastante para que eu pudesse debruçar-me nela e contemplar a noite de lua crescente sobre os campos.

Um ar pesado soprava do norte, como se alguma coisa horrível estivesse vindo. A janela, localizada do lado que dava para o riacho, se abria sobre uma escuridão difícil de avaliar. A luz da lua não chegava até ali porque as montanhas e as construções mais altas se interpunham obliquamente no caminho do luar.

Apesar disso, dispus-me a dormir. Mesmo porque não havia remédio. Despi-me parcialmente e me estendi na pequena cama de colchão duro. Quando estava semi-adormecido, apesar do nervosismo, ouvi uma janela batendo, senti o frio da madrugada beijando meu rosto e levantei-me para ver o que era. Minha janela estava aberta. Enquanto imaginava como pudera ela abrir-se, senti uma presença familiar atrás de mim e me voltei.

— Que bom que vieste…

Era a mulher loura que me recebera à porta. Olhei-a de alto a baixo, apreciando cada detalhe de seu corpo entrevisto através da camisola diáfana que usava. Ela sorriu-me e desprendeu-a de seus ombros, fazendo-a cair e deixar diante de mim uma nudez fulgurante. Então abriu os braços e me chamou ao seu seio e fizemos amor com uma intensidade maior que a da vida.

Em dado momento, ouvimos um ruído ecoar pelos campos, um ruído de tiro. Os olhos dela se iluminaram.

— Ei-lo que chega!

A cancela da entrada rangeu e minhas pernas amoleceram. Suei frio e ergui-me num sobressalto. Um ríspido diálogo se travou embaixo na cozinha:

— De quem o cavalo? — pergunta uma voz estrondosa.

— Não sabemos, um cavalheiro chegou nele, dizendo tê-lo encontrado pelos campos. Veio perguntar pelo dono porque quer a sua recompensa. — Respondeu servilmente Jorge.

— E por que pousou aqui em minha casa este estranho?

— Choveu depois que ele chegou e ficamos constrangidos de ordenar-lhe que seguisse viagem sob tão cruel tempo.

Uma torrente de palavrões ribombou pelo salão, simultânea a dois tiros. Catarina, que até então estivera radiante, rompeu em pranto convulso, levantou-se da cama e atirou-se pela janela antes que eu a pudesse impedir! Pesa segunda vez ela me escapava! Assustado, vesti-me rapidamente e, instintivamente, abri o armário. Lá encontrei, por obra de Deus ou de Satanás, não sei, um rifle carregado!

Enquanto o engatilhava ouvi os passos pesados do recém-chegado logo além da porta e o chocalhar de chaves. Apaguei a única vela que havia no quarto e cerrei a cortina. A escuridão mais completa se fez. Apontei a arma para a porta e aguardei que ela se abrisse para atirar duas vezes no peito do desconhecido, antes que ele tivesse tempo de me ver.

O homem arregalou os olhos, deixou cair a pesada carabina que carregava e tombou pesadamente para trás. Fui até seu cadáver e, reacendendo a mesma vela do castiçal ao lado da cama, pus-me a mirar-lhe. Era uma criatura formidável aquele homem: teria mais de dois metros de altura e uma musculatura firme e poderosa. Seu rosto estava tomado por uma cicatriz que lhe dava um ar cruel e os seus dentes eram bastante ruins. Vestia uma espécie de hábito de tecido rústico, bem pouco suficiente para abrigar-lhe do frio que fazia naquela noite. Toquei-lhe a fronte para certificar-me de seu falecimento e, comprovado este fato, desci as escadas.

No salão estava o pobre Jorge com a cabeça aberta pelo rombo do único tiro que levara. A arma usada para isso teria matado um elefante. A sua pobre mulher fora atingida no meio das costas, mas ainda respirava. Aproximei-me dela e dei-lhe a mão. Ela olhou-me nos olhos, lacrimejando de medo na presença do frio do Juízo próximo e disse:

— Maldito seja ele, maldito!

Eu não tinha nada que fazer por aquela pobre criatura. Apenas acariciei o seu rosto com ternura. Ao sentir a sinceridade de meu toque ela me disse:

— Cuida de Inês.

Imaginei imediatamente que este seria o verdadeiro nome da loura e, não desejando aumentar a tristeza da agonizante, informei que Inês estava bem e que eu cuidaria dela. A mulher cuspia sangue pela boca, indicando que seus pulmões haviam sido atingidos. Num último esforço, olhou-me e disse “pobre coitado de ti!”, vindo a morrer em seguida.

Saí em busca de Inês logo em seguida — e não a encontrei. Não havia nenhum corpo abaixo das janelas daquela construção sinistra, nenhum sinal que indicasse qualquer coisa semelhante à remoção de um cadáver. Para mais estranheza ainda, a provável janela de meu quarto era sobre uma horta, cujas alfaces intactas eram ainda mais intrigantes que o formato barroco daquela lua que parecia uma gargalhada no céu.

Pela manhã, sepultei Jorge e sua esposa em duas das covas vazias do cemitério. As armas, eu achei prudente enterrar no solo fofo do fundo da horta, a fim de que aquela noite ficasse esquecida. E tendo feito isso, enquanto tomava da salobra água do único poço que servia à casa, me perguntei o que deveria fazer em seguida. O sol me respondeu que era preciso descansar. Mas descansar não me parecia nada sábio, diante das circunstâncias.


11
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:40link do post | comentar

As gotas de chuva eram pouco para vencer o calor que se empoçara na cidade prematuramente em nosso agosto, subia um vapor queixoso e sibilante dos canteiros ainda não inteiramente encharcados e Berenice cruzava a praça sem guarda-chuva.

Eu estava em um ponto de ônibus, recém-saído de meu dia de trabalho e não me confortava nada a certeza de que aquela chuva de sexta-feira prometia durar a noite toda. Ela chegou ao meu abrigo com o corpo suado, chuva escorrendo pelos cabelos e o lindo rosto moreno brilhando de calor. Percebeu a insistência com que eu observava e entre dois sorrisos lamentou a chuva depois de toda uma semana seca e opressiva de calor. Eu comentei a minha teoria particular de que estatisticamente chove mais entre a tarde de sexta-feira e a manhã de domingo do que durante todo o resto da semana, acrescentado a possível conspiração do mundo contra a possibilidade de eu vir a ter um fim-de-semana perfeito.

Finalmente ela desarmou-me apresentando a sua teoria particular de que os homens se dividiriam em duas categorias: os de manteiga — que não saem de casa quando está quente — e os de açúcar — que não saem quando está chovendo. Quando eu tentei abrir a boca para tentar criar algum conhecimento entre nós, ela interrompeu-me dizendo que seu ônibus chegara e entrou nele tão depressa que eu mal tive tempo de dizer-lhe um “tchau” tão tímido que ela nem ouviu.

À noite eu a vi, por imenso acaso, sentada com outras pessoas em um bar, de dentro do meu carro ouvindo o tamborilar das gotas grossas eu pensei por tempo demais se deveria retornar àquela rua e tentar entrar na vida dela: quando tomei a decisão era já tarde demais e não estavam mais lá. Sem o que fazer, sentei-me ao balcão com um chope e uma nódoa de solidão no sorriso que eu distribuía tão barato aos poucos conhecidos que passavam. Enquanto aguardava que o destino, ou alguma outra forma de inspiração, caísse sobre mim; a chuva foi descendo o seu peso e a cidade foi morrendo outra noite.

Na agitação das pessoas que se aglomeravam no único local abrigado eu me senti tolhido, solitário no meio duma multidão que me ignorava e espremia. Pude vê-la passar pela avenida dentro de um Passat cinza, mirei-a com olhos famintos mas ela não recebeu minha transmissão de pensamento e nem soube onde eu estava. Abri caminho por um oceano de braços e copos de cerveja afora até romper na calçada vazia, o carro estava parado em frente ao bar seguinte. Corri até lá rabiscando na capa de meu talão de cheques o número do meu telefone, mas antes que eu chegasse a alcançar a janela o carro saiu, jogando água em mim.

E o sábado foi uma flor amarga que nasceu.

Publicado em 1999 na Revista da Associação Nacional de Escritores, é um dos pontos altos de minha primeira fase depressiva e pessimista (1994–1998) e deve ter sido, provavelmente, escrito em começos de 1998.


09
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 09:47link do post | comentar

O que estou prestes a contar pode parecer sem pé e nem cabeça a você que me lê (porque a mim mesmo parece), mas sinto algo que me pressiona a falar e não posso desviar-me da missão de te dizer as coisas que vivi naqueles dias.

cabana de madeira

Às vezes tenho a impressão de que, na verdade, tenho sonhado isto que parece ser minha vida — e ainda não consegui acordar. Depois de haver guardado nas gavetas do esquecimento os traços deste pesadelo por muitas semanas, ele volta a me perseguir. Não dá mais para carregar este peso nos ombros, espero que você me ajude a pousá-lo no chão.

Contar essa memória que não me abandona é dividir esta saca pesada de medos e angústia para que, talvez por um breve momento que seja, eu possa tentar reorganizar meus sentimentos e livrar-me dessas imagens intermitentes e insanas.

Em um dia quente e desesperado eu me achei caminhando por uma estrada empoeirada sob um sol abrasador. Nem pássaros ousavam cantar diante da pressão que o ar exercia sobre as montanhas desbotadas.

Às minhas costas eu levava uma mochila pesada de culpas e projetos, alguns já malogrados em broto. Estava fugindo nem me lembro mais de que e temia que todos os meus amigos estivessem mortos ou presos. Tempos depois tive a certeza. Ou será que nunca, de verdade, tive amigos?

Para não ter de enfrentar nenhum dos doidos destinos que se me apresentavam eu saí de casa no meio da noite, furtando apenas roupas, comida para dias e uma Bíblia.

A comida se esgotara rápido, e já eram três dias que eu passava a roer-me de fome, tendo de roubar de comer.

As roupas, não podia trocar porque estava imundo, suado e coberto de pó e a comarca estéril em que estava vagando padecia de seca e infelicidade.

A Bíblia eu trocara por um pão com salame.

Depois de mais alguns dias de caminhada sem rumo pelos lugares aonde ninguém nunca vai, eu já estava exausto e bastante desesperado para fazer qualquer coisa. Mas só havia frutas murchas da estação fracassada nos galhos despojados das raríssimas propriedades habitadas.

Certa noite cheguei a uma cidade cujo nome não se dava a conhecer em nenhuma placa, em nenhuma saudação, em nenhum monumento. Um lugar pequeno, afastado das estradas principais e de Deus, incrustado numa encosta de morro onde não havia nenhum aspecto de beleza a ser ressaltado.

Uma cidade feia e cinzenta, com cerâmica industrial barata cobrindo as paredes das casas, ornadas com estéreis motivos geométricos, parecidas com monumentos funerários. Havia casas abandonadas e decadentes até mesmo nas ruas principais, ruínas ao lado da prefeitura, calçamento revirado na própria praça da matriz. As luzes estavam apagadas para economizar o gerador porque todos dormitam tranquilamente, seguros dentro de suas edificações residenciais sem vida.

Passeei pelo deserto urbano como um fantasma através de uma cerimônia, invisível e suave. E em nenhuma parte vi hotel, lugar nenhum em que se desse pouso a quem se perdesse por lá. Meus últimos trocados lamentaram de dentro do bolso não poderem dar para uma boa cama e um banho tépido, capaz de atravessar as teias de vertigem e o cansaço do tédio.

Com ossos doloridos de um longo dia e ainda por cima faminto, imaginava meios de dormir. Havia bancos na praça, mas me recusei a entregar-me ao nível dos pedintes reles. A dignidade vociferava em mim e me obrigou buscar onde ao menos pudesse ocultar a situação em que estava, e foi no cemitério que vi um lugar perfeito para terminar aquele dia de pesadelo.

Não me pareceu provável que o lugar fosse visitado durante a noite, ou mesmo pela manhã, já que era afastado e mal cuidado. Além do fato óbvio de ser um cemitério de uma cidade que parecia estar morrendo em vez de crescer. Apenas corujas piavam na escuridão e não havia sequer uma vela acesa em túmulo algum.

Buscando um lugar para deitar, encontrei no fim da alameda mais larga um mausoléu imponente cujo portão de ferro estava apenas encostado. Dentro, algumas velas ali postas a arder anos antes e muita, muita poeira e teias de aranha. Apesar disso, não podia negar que era um dos lugares melhores para deixar-me dormir e me rendi a uma grande mesa de mármore junto à entrada, usando minha mochila como travesseiro, e dormi sem pesadelos e nem esperanças.

Despertei com o sol agraciando meu rosto e sentindo a brisa leve e fresca. Pus às costas a mochila e saí pelo mundo para ver onde estava.

As cidades, a dos mortos e a dos que morriam, estavam em um morro um pouco mais ou menos alto do que os outros em torno. Todos morros redondos, pastos nus e salpicados de feridas avermelhadas, inteiramente desprovidos de árvores e imersos na cinza tristeza do outono-inverno, essa espécie de devastação que acomete o interior de Minas Gerais todos os anos a partir de abril.

O cemitério estava fora dos limites, cerca de uns quinhentos metros acima da última rua e apenas um muro baixo o isolava da terra secular. Temeroso de que alguém testemunhasse a minha vergonha apressei-me a sair e continuar a caminhada.

Tendo caminhado cerca de três quilômetros para além, pude ouvir o estrondo de água em pedras e me dei subitamente conta da delícia de poder lavar-me após… quantos dias?

Um segundo depois sorri ao dar-me conta de que minha vida de andarilho me estava devolvendo a sensibilidade aos ouvidos, podia ouvir os grilos no capim, as aves piando a uma distância considerável e o rumor do mundo em movimento. Mesmo na desgraça o ser humano tem motivos para sorrir.

Desci a encosta em direção a um fundo de vale arborizado onde havia a água que criava aquele som familiar. Seguindo a direção do ruído, encontrei uma pequena maravilha à minha espera: uma cascata de uns dois metros de altura que caía sobre um poço com fundo de areia, em meio a árvores que pareciam ter estado ali durante muitos milênios.

Despi-me e brinquei alegre como criança durante algum tempo, finalmente abri o sabonete que trazia de casa e me dei um banho como poucas vezes. Depois de escovar os dentes pela primeira vez em dias e de usar desodorante pela primeira vez desde que saíra de casa eu vesti uma roupa limpa, mesmo calçando os mesmos surrados sapatos e olhei para mim mesmo com um pouco mais de orgulho. Apenas a fome atentava contra a minha auto-estima.

Com tristeza deixei o pequeno pedaço de paraíso onde, apesar da beleza, não havia alimento e voltei ao caminho. Devagar para não suar muito, tão sem destino quanto antes, mas sentindo-me mais limpo e mais leve. Nisso ouvi um cauteloso trotar de cavalo atrás de mim e me virei para averiguar quem caía em meu mundo.

Uma mulher, montando um cavalo castanho e usando um vestido e um chapéu. Bela mulher. Aparentemente apenas o vestido e o chapéu denunciavam alguma irregularidade. Teria trinta anos mais ou menos, mas logo percebi que não era uma das mulheres comuns da região. As mulheres do interior não têm no olhar aquela malícia e nem no semblante aquela firmeza indômita e algo cruel. “Também não usam roupas desse jeito e nem um chapéu assim”. Toda ela me pareceu recuada do tempo, alheia ao mesmo mundo meu. Dominava o cavalo com displicência, mantendo um silêncio ardoroso em seus gestos. Quando me viu, me chamou com um sorriso e fez diminuir o andar do animal, audácia que me chocou.

“Senhora, boa tarde”, eu disse, com palavras que me soaram raras depois que saíram de minha boca porque não pareceram minhas, mas a fala de um personagem de uma lenda antiga.

Ela respondeu com um aceno aberto mostrando dentes claros de padrão algo feroz. Ela continuou e me mantive entre envergonhado e excitado até que finalmente resolvi segui-la.

Ela não olhava para trás, mas para os lados, fingindo ver a paisagem, como para certificar-se de que a estava seguindo. Naquele momento em que a inspiração me faltava e meu olhar vacilava, eu era capaz de dizer qualquer besteira, mas não disse.

Ela não deixou o cavalo parar e nem esperou que eu a alcançasse. Sem o que dizer, eu apressei o passo, vendo que o cavalo soprava com ansiedade, tentando ir mais rápido.

Os passos do animal eram contidos por uma mão mais firme que a minha e por olhos que viam aonde eu não sabia. Mas lentamente estas mãos meticulosas libertaram o trote e tive de cada vez ir mais rápido para não ficar para trás.

A rapidez cada vez maior de meus pés pareceu cancelar as precauções que eu devia ter em minha mente. Logo eu já me havia esquecido de meus pensamentos e até de onde andava. Era como se não enxergasse nada à esquerda ou à direita. Depois de meia hora de perseguição eu estava suado, ofegante, desidratado e com cada músculo esvaído e doendo demais.

Então ela se embrenhou por uma trilha à esquerda, uma que se abria quase imperceptível na parede de galhos que orlava o caminho. Entrei após, pisando folhas e arbustos. Meus passos estalam nos gravetos e ecoavam no ar vazio como se o mundo inteiro estivesse dentro de uma redoma.

Acordei horas depois de um sono impreciso que tive. Estava nu, deitado sobre um gramado pontilhado de flores amarelas à beira de um riacho. Ao meu lado, também nua, a mulher que eu perseguira, adormecida e indefesa.

Olhei em torno num relance e nada reconheci. O murmúrio da água parecia renovar a minha sonolência e eu não conseguia ter noção do tempo — a não ser que, talvez, estivesse terminando o dia; pela brisa fresca que soprava lá.

Não consigo imaginar como cheguei a esse lugar estranho e nem porque subitamente aquela mulher, cujo nome eu ainda não sei, jazia nua ao meu lado, salpicada de pétalas amarelas e com o sol da tarde fazendo luzirem as gotas de suor em sua pele (como se muito recentemente tivesse terminado um grandes esforço! Um esforço comparável ao do amor!).

Quis fugir dali! Mas como? Olhei outra vez em torno e não vi montanhas no horizonte. A clareira estava cercada de escuras paredes de árvores e trepadeiras e eu nem mesmo imaginei por onde deveria tentar sair para estar de volta… À estrada que seguia sozinho e sem saber para onde ir?! Sufoquei-me pensando que não havia nenhum motivo para fugir, nenhuma alternativa que me convencesse de que vale a pena fugir da presença daquela mulher, que de resto era tão bela.

Não consegui senão render-me à contemplação de sua nudez tão bela e simples. Uma sensualidade clássica e farta, com pernas grossas, braços roliços, seios bem feitos e cintura larga. O rosto de uma Vênus de Rubens com mãos maltratadas de serviços, unhas roídas e irregulares, nódoas nos dedos. O seu sexo era coberto de uma penugem macia que parecia não haver sido jamais raspada de tão suave e curta. O seu corpo era de uma cor que parecia não ter jamais tomado sol. De uma cor que não existe mais.

Enquanto eu permaneci atônito a contemplá-la, esqueci o tempo e não vi se anoiteceu ou não (deveria?). Foi com muda surpresa que a vi acordar e espreguiçar-se.

Ela olhou em torno, viu-se e me viu. Cobriu-se subitamente envergonhada e me atingiu:

— Que fizeste, bandido?!

— Nada que eu saiba. Diz-me tu que fizeste comigo?!

— Nada que ferisse. Agora responde que fizeste comigo!

— Nada que te acordasse.

Ela se pôs a chorar, acusando-me de ter tirado proveito do sono que a rendera. Embora certo de minha inocência, não tentei abrir a boca para dizer coisa alguma, ao mesmo tempo em que me embebedava em sua beleza.

Depois de lamentar por um tempo, ela se levantou, tomou as suas roupas e se vestiu  vagarosamente. Assobiou e o cavalo pareceu aparecer do nada. Manso e arreado. Veio pacatamente receber de suas mãos um carinho e um “venha, menino”.

— Você não devia ter tentado me interromper.

— Mas não tentei fazer nada!

— Não pense que isso mudou alguma coisa. Só vai trazer-lhe mais

sofrimento.

— Quem é você, e onde estamos?

Ela montou sem me responder e cavalgou, muda, rumo ao riacho. O animal não hesitou em achar uma travessia através dos bancos de areia enquanto eu me ocupava em vestir-me tão rápido quanto podia para poder tentar acompanhá-la ainda. Sabia que onde estava não podia continuar e que voltar era impossível.

Após o rio e além da primeira curva se erguia uma casa de pedras com teto de folhas de sapé, que eu apenas observei de passagem. Dentro da casa algumas pessoas pareciam ocupadas em talvez um tipo de piquenique.

Passada a curva e seguindo a segunda estrada pelo morro acima, terminei numa clareira ampla entre árvores, com mesinhas de pedra, próprias para piqueniques ou bruxaria. Uma longa escada de lajes de pedra dispostas através da encosta permitia que se subisse ao topo da montanha coberta de relva verdejante (“nessa época do ano? Estranho!”). É pela escada que ela subia a pé — e eu a segui.

Não a tempo de conseguir impedir que chegasse ao alto do mirante antes de mim. Ela olhou para trás, viu que eu estava chegando, disse alto algo que não ouvi, me acenou um gesto que não reconheci… e se deixou cair!

Eu gritei mas não acordei porque não estava dormindo. Eu corri, mas não pude chegar lá a tempo porque não era sonho. O mirante se abria sobre um abismo imenso, cujo fundo era de pedra viva. Lá estava, ensanguentado, o cadáver da mulher que eu seguira e amara sem nem saber por que.

Havia uma escadinha perigosa esculpida na parede de granito. Movido sei lá por que mórbida curiosidade eu a desci em direção ao poço, que fedia a sangue de muitos corpos e a culpas de muitas almas. Noto que havia muitos ossos, mas raramente alguma joia ou coisa de valor.

A misteriosa estava morta. Vasculhei seu corpo e percebi que não trazia brincos, nem pulseiras, nem relógio, nem cordões, nem tatuagens, nem obturações, nem nada de ouro ou prata. Não trazia bolsa e nem dinheiro.

Sua roupa era um vestido negro e largo, por baixo umas anáguas rendadas em branco. O único objeto que portava era um pequeno envelope pardo. Continha um pequeno livro em papel tão fino e letras tão miúdas que mal daria para tentar ler, ainda que fosse escrito em nossa língua. Em vez de uma carta contendo explicações ou qualquer outra coisa, eu encontrei uma escrita estranha e angulosa (ou será que neste sonho ou vida era analfabeto?).

Havia também uma espécie de talismã costurado em couro, com alguma coisa macia por dentro e pendente de um cordãozinho trançado em palha. Tomei aqueles objetos na mão e olhei para cima. A Lua ia alta no céu, embora ainda não fosse escuro.

Pus o conteúdo todo do envelope em meu bolso. Olhei em volta e me vi mais perdido do que jamais antes estivera. Não havia nenhum sentido em estar ali entre aqueles mortos.

“Que diabos vim fazer aqui? Por que raios eu saí de casa?” Deixei a estranha morta lá entre aqueles outros cadáveres mais antigos. Lá onde esperaria as chuvas que o decomporiam e purificariam sua alma de seu gesto.

E subi outra vez, cuidadosamente, pela perigosa escada na pedra. No alto do mirante me dei conta de que estava anoitecendo ainda. Gastei mais uns minutos olhando a paisagem, como se lembrá-la valesse a pena depois e desci de volta ao vale entre as árvores, pensando em que fazer de minha vida a partir de então.

No meio da descida encontrei seu cavalo. Ele pastava tranquilamente e, aparentemente, não me rejeitava enquanto eu me aproximava. Tomei-o pelas rédeas e continuei a descer.

Os que faziam piquenique já haviam ido todos embora. Restava apenas uma jovem de cabelos grisalhos.

“Que estranha essa mulher também!” Ela tinha olhos que pareciam uvas, tão escuros e brilhantes mas ao mesmo tempo cheios de uma luz azulada ou roxa. Usava um vestido semelhante ao da morta e também subia. Sem cavalo.

Olhou-me com uma expressão de espanto no rosto:

— O que está fazendo? Por que está descendo esta montanha e de quem é esse cavalo?

— Boas perguntas. Eu estava atrás de alguém que pudesse me salvar, mas esta pessoa queria se matar. Estou descendo a montanha porque não quero morrer e nem ficar entre os mortos. E esse cavalo ficou sem dono, portanto pode ser meu.

— Que audácia a sua vir até aqui! Você não sabe o que está acontecendo! Aliás você nem devia ter conseguido encontrar esse lugar! Quem o trouxe?

— Eu já contei a verdade. Creia se quiser. Mas não me ofenda porque não sou um ladrão e nem profanador de corpos.

— Este cavalo não poderá nunca ser seu!

— Tudo bem. Então fique com ele se quiser, mas eu peço, por favor me ajude! Eu estou perdido!

— Muito mais perdido do que imagina!

Por um momento um pouco de doçura veio a seus olhos.

Então um certo sentimento de culpa passou em mim. Abri meu bolso e lhe entreguei o envelope:

— Desculpe-me, acho que menti ao dizer que não sou um profanador de corpos. Tirei isso do cadáver da estranha.

— Você nem tem ideia do que é isso, tem?

— Está em alguma língua estranha. Nem é útil para mim. Trouxe porque pensei que poderia obter alguma resposta.

— Querer respostas não é sempre uma boa ideia.

— Mas é melhor uma resposta que continuar vagando sem rumo pelo mundo.

Ela me olhou pensativa:

— Eu posso te oferecer umas respostas, mas isso vai ter um preço. E o preço é que deverás viver aqui entre nós.

— “Nós”?

— Só posso dizer se concordas com o que cobramos.

Lembrei-me dos agentes do governo que queriam o meu sangue e até confesso que senti certa tranquilidade. Tendo alimento, saúde e paz; diante das circunstâncias; eu achei que podia me dar por feliz.

— Está bem.

— Então vamos subir de volta.

Lá do alto, sob o luar estranho que nos banhava, ela me mostrou um horizonte muito largo, sem nenhuma luz que denunciasse a presença da humanidade. Muito profundo era o silêncio daquela noite e muito pesado o cicio dos pássaros e o cricri dos grilos.

De repente, sem que ela precisasse me dizer coisa alguma, eu comecei a perceber.

— Por isso temos este lugar. Nem todos são fortes.

— Eu a tentei salvar!

— Eu li isto em você. Talvez isso me tenha convencido.

Descemos de volta à casa. Ela me mostrou um quarto e me disse que eu deveria viver ali por algum tempo.

— E alguém virá — continuou.

— Quanto tempo?

— Não se sabe. O que for necessário.

— Tenho medo.

— Todos temos.


07
Out 10
publicado por José Geraldo, às 19:32link do post | comentar
Quando provei de tua boca,o que caiu foi clarocomo calmo ar sob o solnuma manhã tontaespremida entre um sonho e outro.Espargi palavras sem sentido,algumas atingiram teu ouvido.Contive-me, contudo, considerando minha covardia.Mudo, sonhava tua nudez.Quando eu senti tua presença,o perfume perto, o hálito denso,o toque tépido de dedos dóceis,a falsa frieza de uma carne aflita;o que pensei foi puro, foi místicoe pousou como um pensamento antigo.Folhas secas farfalhando no silêncio,a ventania evitável ressecando o olhoe um abraço sem maldade nem mordida;e estive quieto como quem espera a morte.O ato agressivo atingiu-nos,a carne e suas intempéries, seus hormônioso cumprimento doloroso de um deverque espanta o espírito e espalha o afeto.Não resistimos, é verdade, mas era imperiosonaufragar na agonia cármica do ato que se completa num alívio que esvazia.A carne atrevida, aos poucos, aceitavao perigo e o abismo que existe na entrega.Ambos agora, dominados pela ilusão,são o brinquedo que jogamos.

Escrito originalmente em 1999.


26
Set 10
publicado por José Geraldo, às 11:44link do post | comentar
O amor de Noêmia é súbito e simples,alívio de dívidas e dúvidas que doem.Espera que açoitemos sua carne rudecom nossas vontades incultas e cruas.Sua passagem aromática pela praçatraz promessas e segredos aos jovense somos expostos ao beijos que esparge,complexas gotas de trevas que escapamde seu sorriso assimétrico e rígidoe escorrem por suas carnes estreitaspelas descontinuidades e curvas.O amor de Noêmia é nota de amargoe seu sorriso, incensado e insincero.Nota-se desespero no cálculo segurode suas mãos que nunca tremem,de seus olhos que estão sempre duros.O amor de Noêmia espalha lacunase lemos léguas de frio em sua pele.O seu corpo habita um claro na noite,ela brilha com vontade, habita na luzcom sua calça vermelha e seus olhos.Floresce em súbitas cores, Noêmiaa mulher que voeja pelos escuros.Olhos rasos, líquidos, atípicos, oblíquosque nos miram duramente, e prometem.O amor de Noêmia tem consigobem no centro de algum lugar perdidouma culpa que esmaga, uma dor que ardesomente nela, nunca nos que a tentam.Mas quando ela passa, trazendo certezaé como uma aurora que rompe, um portona noite imensa, em meio a imagensquebradas e armazéns, todos vazios.

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