Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
17
Abr 12
publicado por José Geraldo, às 22:00link do post | comentar

Mais um romance concluído, o terceiro de minha amadoríssima carreira. O Reino Esquecido é um romance que mescla vários elementos e personagens para contar a história de Raimundo Gomes e Jacques Erhardt, dois homens que, em momentos diferentes, se apaixonam pela enigmática Estela e pela saga complicada do minúsculo reino medieval da Alsácia-Sarre, de que nunca se ouvira falar.

Embora eu já o tenha dado como «terminado» hoje, ao finalmente alinhavar todos os elementos da história de dos três protagonistas e definir a trama básica, ainda tenho certas vontades ocasionais de dar mais vida a alguns dos personagens. Talvez o faça em uma continuação ou em um conto avulso, ou possivelmente em um capítulo.

Eis a galeria dos personagens:

Raimundo Gomes
Um desajustado rebelde sem causa que foge com um circo, encantado por uma «mulher tatuada», e acaba se tornando, muito mais tarde, um estudante de graduação de História com sonhos de grandeza.
Encarnación Perez
Artista de um circo argentino que se passa por russo. Atiradora de facas, engolidora de espadas e «mulher tatuada».
Jacques Erhardt
Um luxemburguês de classe média-baixa, filho de um imigrante alemão, que se gradua na prestigiada Universidade de Lovaina, mas tem sua reputação complicada por causa de uma pesquisa obscura sobre o misterioso reino medieval.
Phillipe du Plessis
Domador de leões, um sul-africano desertor do exército daquele país na época do apartheid (a história se passa ao longo dos anos setenta e oitenta e termina em 1992). Atormentado pelos fantasmas de seu passado, vicia-se em aguardente e em perigo.
Clarice Souza
Garota pobre e negra, bonita e bastante inteligente, que tenta seduzir Raimundo na época em que ele tenta se reconciliar com seu pai.
Estela Urzaiz
Mulher misteriosa e meio apátrida, nascida na Bélgica de mãe paraguaia e pai espanhol, ambos exilados das ditaduras de seus países natais. Educada em um lar de comunistas, enfrenta o dilema de tornar-se madame da sociedade decadente de um país periférico da América do Sul.
Henrique Gomes
O pai de Raimundo. Um comerciante de mentalidade estreita e temperamento autoritário, que a duras penas aprende a respeitar as idiossincrasias do filho.

Entre esses personagens há dois que particularmente me fascinam, Clarice e Phillipe. Inclusive eu tenho uma grande vontade de fazê-los encontrarem-se e viverem uma tórrida paixão. O difícil é que, na época em que Clarice poderia encontrá-lo, ela teria 25 anos mais ou menos, e ele seus 40 e tantos, já grisalho e meio careca. Ou eu redescrevo o Phillipe (e para isso terei que mudar um pouco sua história prévia), ou envelheço a Clarice (o que é uma covardia, já que mulheres bonitas deveriam ser eternamente jovens), ou desisto de uni-los.


19
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 11:53link do post | comentar

Prólogo para um romance de ficção científica iniciado em 1999, que eu nunca procurei terminar porque descobri que J.G. Ballard já havia escrito uma história parecida demais.

As ruas são perigosas. Sair de casa envolve sempre riscos. Por isso procuramos fortalezas, compartimentos isolados para nossos sonhos estanques. Moro em um edifício preparado para isso. Nele moram comigo cerca de mil pessoas, mais ou menos, todas em apartamentos parecidos, de duas ou três peças. Moramos aqui há mais de quinze anos e mesmo depois aqui ainda estão os que não moram mais: em uma necrópole subterrânea geometricamente organizada. Moramos aqui e mal saímos. Trabalho e lazer podem ser achados aqui mesmo: escritórios, ginástica, locadora de filmes, parque aquático coberto, salão de jogos, restaurante, lanchonete, bar dançante, café, salão de beleza, parquinho infantil, lojas de conveniência. São vários os tipos de empregos que podemos ter, graças à internet, trabalhando na segurança de nossos cubículos pessoais. As antenas que nos conectam ao mundo ficam num último andar tão fortificado que é mais fácil chegar nele de helicóptero do que por elevador ou pela escada. Obviamente nem todos têm a sorte de trabalhar dentro de casa: os que se dedicam a atividades braçais precisam sair, outros saem porque já não confiamos que os de fora entrem trazendo-nos entregas de comida, remédios ou outras coisas. Faz quinze anos que este prédio existe, investi nele economias de duas vidas: a minha e a de minha mulher. Tenho quarenta e seis anos, nenhum filho, um emprego péssimo.

Sou guarda de segurança. Agora sou guarda de segurança. Escolhi este emprego, talvez na espera de que o risco de morrer me faça querer viver melhor. Melhor, não mais. Saio de casa diariamente, quando o sol já está descendo pelo horizonte como uma bolha de ar em uma janela manchada de sangue, do sangue de Joana, do sangue que espirrou de seu peito. Joana, meu mais precioso tesouro, guardado devidamente numa urna de prata, selada com cera, no fundo de uma gaveta, no fundo de meu coração. Sou guarda de segurança, desde que não consegui proteger Joana.

Digo que «saio», mas não exatamente assim. Um túnel me conduz do térreo a uma estação de metrô. Vários túneis, vindos de outros grandes prédios, que se erguem como uma floresta de árvores sem galhos no planalto. Edifícios para assalariados, como o meu, não são mais construídos a torto e a direito, mas apenas onde chega a linha subterrânea, cada vez mais difícil de expandir. A estação quase nunca está cheia, raramente está deserta. Sei que todos os que nela aparecem são controlados e escolhidos, observados e medidos. Mas quando ela está vazia eu tenho medo de olhar no rosto de quem esteja lá comigo. Tenho medo porque o mal pode ser tanto um mendigo quanto um vizinho. Mendigos tem olhares perdidos e mentes amargas. Vizinhos têm armas.

O trem sai da estação e passa por um pátio ferroviário imenso, onde se encontram trilhos que vêm de outros lugares, levando gente como eu, e gente diferente. Os trilhos eletrificados com milhares de volts impedem que os fantasmas que perambulam pelos pátios, sob a luz cancerígena do sol, tentem entrar. Os trens têm anteparos de metal, desenhados para erguer e atirar para o lado os obstáculos que podem ficar sobre os trilhos. Só raramente vejo algum, quase sempre tenho pena.

Mendigos, prostitutas e marginais se aglomeram por ali, agitando bugigangas, braços e armas na esperança de fregueses, clientes, vítimas. Meu trem não para nestas estações externas, suas janelas à prova de bala estão sempre cerradas. Mas há os outros trens, vindos dos bairros pobres, com janelas quebradas, com a obrigação de parar em cada estação. Eles fornecem a razão de ser destas pessoas que se derretem sob o sol.

A cidade hoje é muito diferente do que era no século em que nasci. As largas avenidas não existem mais. O trânsito não funciona mais. O louco que tentasse utilizar um veículo de superfície pelas ruas não chegaria longe: ou seria vítima de uma colisão, pois já não há sinais nem regras, ou será atacado por facínoras. Não há mais um mercado para carros roubados, mas o motorista pode ter uma moeda no bolso, para justificar a bala que o bandido atira, e o metal da máquina vale algo para a reciclagem. Nem se comente o que pode acontecer a tal incauto se esbarrar em um dos milhares de pedestres que vagueiam por todo lado sem seguir a mais simples regra de bom senso: estranhos frutos pendem, às vezes, das raras árvores, frutos que frequentemente dão também em postes. Mesmo sobrevivente a todos esses contratempos, o infeliz que tente brincar de motorista não chegará ao fim da viagem na posse de todos os seus bens, quiçá nem de suas roupas. Então, tragédia maior, sem seus trajes cidadãos, seus documentos, seu cartão, seu crachá… Como poderá provar que pode entrar nas zonas reservadas, retornar à própria casa?

Os únicos veículos que andam pelas ruas pertencem à própria gente que nela ainda vive. O tráfego é irracional e os acidentes acontecem o tempo todo. Discussões e dúvidas se resolvem a bala ou a faca. Veículos inutilizados são abandonados pelas calçadas, depenados até os ossos de metal ficarem sob o sol, depois serrados aos pedaços, como a carcaça de um animal grande atacado por formigas carnívoras.

No passado a polícia ainda vinha buscar os raros e ousados criminosos que rompiam os sistemas de segurança. Mas isto foi ficando cada vez mais difícil, a ponto de cada agente ter que vir debaixo de uma armadura. Mesmo em grupos e portando armamento pesado era frequente que voltassem carregando um cadáver. Essa dificuldade de abordar o habitat dos bandidos levou à solução natural: cercas melhores e a ordem de matar quem não esteja autorizado a estar onde esteja. A ordem é que o bandido não chegue e voltar, assim não é preciso ir buscar.

Eu me lembro vagamente, quando ainda era uma criança, de uma época em que as casas tinham portas para as ruas e era possível chegar em todos os lugares. As pessoas costumavam usar bicicletas móveis como transporte: eu mesmo tinha uma prometida para quando meu pai ganhasse um aumento. Mas o agravamento da situação levou o governo a isolar certas áreas das outras, criando fortalezas cada vez mais densas. Compartimentos cada vez mais estanques. A única área livre onde se pode ainda ter a sensação de andar pelas ruas é o centro. Ele foi cercado por um muro alto de pedra, envolto por um campo minado, com guaritas de segurança e luzes fortes. No centro ainda se pode andar por ruas, mas não em bicicletas móveis: há muita gente que precisa andar, muito transporte. Não há espaço para isso, seria estranho perder pedalando um tempo que poderia ser cortado ao meio ao pegar a esteira certa e o elevador direto. Ninguém por lá anda a esmo: todos têm uma direção e cada um conhece o seu caminho, o seu restaurante. Mesmo no centro é relativamente perigoso andar à toa.

Mas se você for rico o bastante, poderá alugar um carro elétrico, com uma carroçaria que imita os antigos sedãs de luxo, e fazer um passeio, romântico ou familiar, pelos parques e praças. Alguns ao lado do centro, outros um pouco mais longe, mas unidos a ele por estreitas passagens por onde se pode ter a antiga sensação de dirigir em uma rodovia sob o sol. No parque ainda se pode tomar sorvete, pedalar no lago um barquinho em forma de cisne, sentar à sombra de uma árvore e desfrutar de minutos relativos de silêncio. Anualmente faço isso. No silêncio entre as árvores escuto a voz de Joana, lembro de quando nos conhecemos num parque desses, numa época em que ainda era aberto.

Pouca gente vive no centro. Somente alguns saudosos do passado, que querem ter a sensação de um jardim privado, de uma varanda para a rua ou da contemplação do trânsito. Custa caro, o conforto é menor que em qualquer apartamento, mas os que ainda insistem dizem que vale a pena. Eu pagaria o aluguel de uma dessas casas antigas se pudesse, para ter meu próprio carro elétrico na garagem, um canteiro de rosas na frente e uma churrasqueira no fundo para passar domingos em família. Pagaria se tivesse uma família. Nenhum aluguel seria caro para isso.

Em vez disso eu vivo nas entranhas de um edifício sem alma. Para onde volto cada noite em busca do fantasma de Joana. Volto, deito-me na cama sem fechar a janela e tento sentir o frio, deixo a luz acesa para dissipar a treva. Não sei aonde pode estar Joana, certamente não em meus sonhos. Trabalho com estranhos, minha tarefa atirar nos que tentam entrar. Tenho vergonha deles, tenho vergonha disso. Guardo meu uniforme num armário no serviço para que ninguém veja o que sou. O monstro que sou. Não salvei Joana, mas mato os sonhos de outras pessoas.

Não sei quanto tempo ainda vou aguentar. A alegria é uma bolha de ar que já chegou no parapeito da janela. O sangue de Joana escorre lentamente, me lembrando que em breve eu vou também, e não haverá nenhum Paraíso para mim, monstro que sou. Arrasto minha carcaça pelo mundo, por entre corações vazios e olhares gelados. Solitário. Essas pessoas me olham como quadros nas paredes. Mas seus olhares me seguem, às vezes, fazendo-me sentir que estou nos corredores de uma mansão mal assombrada. Um coração sem resposta, um homem sem filho, sozinho com suas lembranças. Talvez essas pessoas me reconheçam. E nenhuma sequer me odeia.


01
Out 11
publicado por José Geraldo, às 14:10link do post | comentar
Este texto continua a história iniciada em janeiro, aqui.

A reunião dos tripulantes durou preciosas horas, durante as quais Kenji permaneceu mais alerta às vaguidões do espaço — com seus perigos e desejos — do que aos sons contraditórios emitidos pelos aparelhos fonadores de tantos humanos confusos. Ouvir aquela algaravia não trazia-lhe nenhuma informação definida, diferentemente do vácuo, onde podia ver a dança dos planetas daquele sistema tão calmo, tão semelhante e ao mesmo tempo tão diferente em relação a um distante outro, que somente subsistia nos registros mais antigos de sua memória de autômato.

Enquanto seus sensores mais numerosos capturavam a dança dos astros, alguns percorriam, porém, os fios e dobras dos corredores construídos para as necessidades tão orgânicas dos seres vivos que funcionavam naquela nave. Notou então que, embora ele mesmo e alguns outros da manutenção estivessem livremente investigando, Andréa estava, com todos de sua classe, devidamente contida em um compartimento estanque. Mesmo toda a ferocidade da chave de segurança não lhe impediu de ter consciência disso. Estava presa.

Talvez os humanos não desejassem que os cibernéticos compartilhassem de decisões que certamente seriam tomadas. Todos eles, pensou Kenji, num esforço para subjugar a chave de segurança que tentava confundir seus processos, falham em perceber que alguns humanos já se tornaram meio autômatos, tanto quanto alguns autômatos já se aproximaram da humanidade. Com tanto tecido orgânico aplicado à máquina, com tanta parte mecânica implantada nos corpos.

A reunião terminou fatalmente. Tinha de terminar em algum momento. Elegeram um novo capitão. Embora a Tenente Xu tivesse tomado todas as iniciativas, havia alguma coisa a respeito dela que não inspirava confiança na maioria dos humanos presentes na nave, talvez a cor do cabelo ou o formato dos olhos ou o modo como articulava os fonemas. O novo capitão se chamava Brown e tinha os dentes amarelos e os olhos imersos em profundos círculos roxos. Era velho e triste, curvado pelo peso do dever durante as décadas em que se revezara no serviço desperto. Kenji sabia muito bem que era uma honra merecida. Brown tinha sacrificado a própria juventude, o próprio futuro reprodutivo e a possibilidade de colonizar o novo planeta — tudo isso pelo dever de vigiar a nave enquanto a maioria dormitava nos casulos. Mas apesar disso, estava antigo demais. Muitos achavam que Brown que ele não estava mais em condições de exercer o novo dever. Mesmo um autômato compreendia o conceito: sabia que entre os humanos não basta dar manutenção, pois algumas peças não são substituíveis. Mas Kenji também sabia que não tinha sido somente por uma questão de honra que a jovem Xu fora preterida. 

A Tenente Xu deixou a sala de reuniões e dirigiu-se a um dos cubículos reservados para habitação do oficialato desperto. Ali trancou-se, mas o autômato a pôde ver através dos monitores infravermelhos. Viu-a esmurrar a parede, ouviu as vibrações de sua voz durante vários minutos. Então ela tomou um banho, vestiu outro uniforme, limpo, do qual arrancou cuidadosamente sua insígnia, e dirigiu-se a algum lugar dentro da parte inferior da nave, na região onde trabalhavam os responsáveis pela manutenção.

Brown, enquanto isso, cercou-se de um grupo de influentes oficiais, recém-saídos de seus casulos de hibernação, e passou a deliberar o que fazer. Era preciso, inicialmente, que o propósito da missão não fosse perdido nunca de vista — mesmo porque não havia outro possível. Enquanto Kenji distraidamente calculava as órbitas dos astros, uma grave decisão foi finalmente tomada: iniciar a exploração do planeta e tentar manter os aspectos controversos disso ao alcance do menor número possível de pessoas. Era perfeitamente racional: hibernar de novo quantos fosse possível, assim economizar alimento. Menos pessoas despertas também significavam menos opiniões, menos discussões. E enquanto isso, quanto mais soubessem do planeta, melhor. Certas pessoas realmente não precisam saber de certas coisas. É perfeitamente racional.

Kenji sabia, e os humanos mais esclarecidos também, que não havia condições de segurança para simplesmente enviar uma nave de transporte. As nuvens que recobriam aquele planeta podiam ocultar mais perigos do que simplesmente radiação. Embora histórias de animais transformados em monstros pela radioatividade fossem tolices infantis, havia uma real possibilidade de vírus e bactérias não esterilizados na guerra nuclear. Estes minúsculos monstros seriam mais terríveis do que toupeiras carnívoras gigantes, ou que estranhas “colmeias” de baratas assassinas. Por tudo isso, ainda que a Chave de Segurança cortasse entre seus pensamentos como uma navalha, atrasando o processamento de suas conclusões, Kenji equacionou que deveriam enviar algum autômato, acompanhado de um dos cibernéticos. Era uma escolha natural: a parte orgânica deles reagiria ao meio ambiente tal como o corpo de um humano o faria, desta forma se poderia avaliar a possibilidade de sobrevivência no planeta cemitério que orbitavam.

Tenente Xu teria gostado de saber, se ainda estivesse pensando em decisões de comando, que Andréa se viu forçada a entrar no habitáculo do transporte, quase querendo oferecer resistência, como se fosse humana e tivesse livre arbítrio. Àquela altura a Chave de Segurança não conseguia mais subjugar, com suas ondas de dor artificial, a fervilhante computação que se processava em seus múltiplos circuitos, distribuídos pelos diversos gânglios de silício que conjugavam sua personalidade metálica, e Kenji compreendeu o sentido da ironia, de uma forma quase cruel.

Uma convocação eletrônica interrompeu seu escrutínio das órbitas: queriam-no no transporte também. A Chave de Segurança conseguiu confundi-lo novamente, e ele obedeceu, claudicante. Quando conseguiu acostumar-se ao nível 42, já estava próximo ao “bote” e qualquer reação teria despertado profunda apreensão nos humanos. De qualquer forma, ele não teria precisado da ação dos dispositivos de obediência: ele queria ir. Alguma coisa, que em nós poderia ser chamada de curiosidade, o impelia. E os robôs, inconscientes do significado da morte ou da dor, não a têm temperada por nenhum desses receios.

O transporte era não retornável. Os que haviam planejado a missão da “Epifania” não supunham que fosse jamais necessário “voltar”. Mesmo porque, Kenji sabia, não haveria para onde. O autômato aproximou-se dele, lentamente, analisando-o com atenção meticulosa. Sempre soubera da existência de tais botes, mas nunca se aproximara de nenhum: afinal, era um piloto, e não um reles faxineiro, para ficar perambulando por cada rego e desvão da imensa espaçonave. Tendo completado sua avaliação do bote, soube por onde entrar e como instalar-se em segurança. Conectou suas interfaces, sentiu o pulsar da fraca energia que a nave emprestava àquele precário transporte, fez o equivalente ao gesto humano de engolir em seco e entrou em modo de espera.

O transporte foi empurrado até uma das docas de saída. Enquanto as escotilhas eram preparadas, Kenji contemplou Andréa, que parecia desligada, tal como os humanos ocasionalmente ficam, mesmo quando fora de seus casulos. Algumas marcas na sua pele normalmente imaculada sugeriam algum acidente em que estivera recentemente envolvida. Mas os processos de cura eram rápidos e Chave de Segurança conseguia impedir que Kenji refletisse sobre quaisquer implicações.

A escotilha abriu e o transporte foi ejetado pelo espaço. Tão logo cruzou o limiar do casco, recebeu o jato potente do vento solar daquele astro ainda tão jovem. Os painéis coletaram essa energia e a armazenaram em suas baterias. Alguns motores quânticos foram acionados, em jorros breves, que corrigiam o curso e aproveitavam a inércia. E lá ia o transporte, num movimento quase inaparente, uma lentidão fantasmagórica sobre a densa camada de nuvens branco-acinzentadas. As interfaces pululavam com dados, mas a precariedade do processamento nativo impedia que eles chegassem até Kenji de uma forma coordenada. Em vez disso, as informações eram repassadas para seus poderosos cérebros, que as processavam rapidamente, ocupando totalmente sua atenção com tentativas de entender o que havia. Nesses momentos em que o êxtase da informação o levava a tal orgasmo eletrônico, ele não conseguiria ter noção de mais coisa alguma, mesmo uma que gritasse e esmurrasse no compartimento traseiro.

Romperam o teto de nuvens já com a fuselagem rubra do atrito de reentrada. Mas Kenji usou habilidosamente os motores para corrigir o curso e aliviar a queima. O transporte acionou várias vezes os retrofoguetes, manobrou pesadamente na escuridão do lado noturno do planeta, pairou paquidermicamente e, por fim, deixou-se pousar como um elefante sem asas em um platô qualquer, escolhido por Kenji a partir do processamento da floresta de dados confusos que pudera ler.

Os procedimentos de saída começaram, bem devagar. O rádio foi aberto, mas não houve nenhum sinal além da estática. Microfones exteriores só capturaram o uivo dos ventos. A cúpula de proteção do piloto destravou, deixando entrar o ar denso e frio do planeta. Para os autômatos puros, como Kenji, “frio” não era um dado significativo, a menos que interferisse no funcionamento dos sistemas. E duzentos e sessenta graus Kelvin não chegavam a tanto. Tratou de desconectar-se da quase inútil carcaça do transporte e, pela primeira vez em centenas de anos de existência, tocou com suas patas metálicas um “chão” que não era também feito de metal, experimentando uma gravidade que não era artificial e respirando uma atmosfera que não era sintética.

Andréa saiu de seu habitáculo tremendo curiosamente, envolta em tecidos pesados, que dificultavam os seus movimentos. Era realmente uma coisa frágil, pensou Kenji: com somente dois membros preênseis e tão pouca resistência ao ambiente. Mas os humanos sabiam bem porque precisavam de bonecas de carne como aquelas, e diante das circunstâncias da chegada, até que ela finalmente se revelava útil.

A atmosfera parecia opaca e anormalmente úmida, mas o isolamento dos mecanismos de Kenji era duplo e estava intacto. O autômato tateou receosamente por aquele ar leitoso e calmo, sentindo a excitação da novidade. A Chave de Segurança se transformara apenas nisso, no receio do novo, do diferente, do perigoso. Não se importava com Andréa, ela que ficasse no transporte se quisesse. Mas ele logo esfriaria e começaria a decompor-se, sem o auxílio precioso dos microrreparadores. Se havia alguma esperança para um ser tão estúpido, teria de ser ao lado da presença protetora dele, que já se sentia tão adaptado.

O transporte tinha pousado sobre uma espécie de platô não muito alto, coberto de neve muito rala e poeira muito fina. Estava ainda escuro, mas de um dos lados o céu se tingia de tons múltiplos de vermelho, roxo, violeta e amarelo. Um difuso globo tentava aparecer entre os braços agitados das nuvens. Aquele sol alienígena pareceria um comprimido efervescente no fundo de um copo de água — se Kenji jamais tivesse visto tal cena. Não havia vegetação à vista, somente raros galhos secos. Revistando os dados que tinha em registro, o autômato considerou que tal lugar havia sido justamente escolhido por ser deserto. Pousara deliberadamente em um lugar desabitado. Na possibilidade de ainda haver vida em tal planeta, a intenção fora de evitar qualquer interação prematura, qualquer contato antes de terem sido coletados conhecimentos suficientes.

Kenji vasculhava todas as baixas frequências de rádio. Povos primitivos as haviam utilizado desde muito cedo para transmitir dados. Tais frequencias teriam tido dificuldade para romper a camada de nuvens, vencer a ionosfera e chegar à “Epifania” em órbita. Teriam sido ignoradas, então. Mesmo estas, porém, mantinham o silêncio das sepulturas. Aquele planeta, se de fato possuía alguma forma de vida, estaria contemporaneamente limitado a formas pouco evoluídas tecnologicamente, ainda desconhecedoras do rádio, ou a formas tão evoluídas que haviam abandonado toda comunicação por esse meio — o que, obviamente, não fazia nenhum sentido.

Não que a atmosfera ajudasse, instável e cheia de radiação. Aquelas nuvens densas estavam pejadas de estática e tornavam faixas inteiras completamente inutilizáveis. Diante de tal quadro, se ainda existisse vida inteligente usando alta tecnologia, ela poderia comunicar-se por cabo. Não era essa, no entanto, a impressão que o autômato formava em seus circuitos: aquele planeta parecia mesmo estar, como temiam os humanos, esterilizado.


25
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 21:15link do post | comentar | ver comentários (3)

Antes de começar a efetivamente postar o texto de meu próximo romance aqui, vou fazer alguns comentários sobre a natureza da obra, seus objetivos, suas características e o modo como vou disponibilizá-la. Isto é necessário para que o leitor não caia de paraquedas no texto e fique perdido. Futuramente, ainda, esta página servirá de índice dos capítulos, tal como fiz na tradução da “Casa no Fim do Mundo” (título de que me arrependo: a versão definitiva, que vou fazer em e-book deverá se chamar “A Casa Sobre a Fronteira”).

“Serra da Estrela” é um romance do gênero fantástico que emprega os personagens e a imagística do folclore brasileiro (mais especificamente do estado de Minas Gerais) para tentar construir um efeito de “terror sobrenatural“ semelhante ao obtido por autores como H. P. Lovecraft, Stephen King e outros clássicos do terror americano. Contrariamente a outros projetos meus, “Serra da Estrela” foi concebido desde o começo como uma obra de intenções “comerciais”, no sentido de que ele procura atingir um público grande e jovem.1

A história está integralmente ambientada em um pequeno trecho do estado, entre as regiões da Zona da Mata Mineira e do Campo das Vertentes: dali se originam os personagens, ali se passa toda a ação “real” e ali se encontra o ponto de partida para a ação “surreal” — que de certa forma também se localiza ali. Quem quiser ter uma ideia geral do conceito, pode usar a mini-novela em três partes A Cabana ao Pé da Montanha como uma introdução. “Serra da Estrela” procura desenvolver o mesmo universo sobrenatural, com algumas adições e improvisos, e possivelmente recorrerá a um ou dois dos personagens que ali aparecem (mais provavelmente a mulher de negro) e certamente empregará um ou dois locais onde a ação deste conto se passa.2 Um outro conto que pode ser útil como introdução ao mesmo conceito é Inocência Assassina, de onde retirei a protagonista.3

Entre os personagens haverá pelo menos quatro de natureza sobrenatural: a mula-sem-cabeça, o lobisomem, a iara e um que eu mesmo inventei a partir do imaginário popular europeu, mas cuja existência eu não pude atestar no folclore mineiro. Dos quatro, a mula-sem-cabeça será o mais destacado, talvez até ganhando o status de “protagonista” da história, mas o lobisomem também terá seu valor. Para preparar-me para escrever sobre os dois eu fiz uma razoável pesquisa e cheguei a escrever dois breves ensaios sobre eles (as ligações que incluí).

Eu já tenho desenvolvida até agora a personalidade e os conflitos de pelo menos oito personagens (incluindo três capítulos inteiros inéditos), mas justamente me falta acabar de alinhavar as suas histórias. Digo isto porque, contrariamente aos meus dois primeiros romances, este será bem complexo. “Praia do Sossego” e “Amores Mortos” se caracterizavam por ter um personagem central, que mantinha sempre o foco da história. Um narrador em terceira pessoa não onisciente os acompanhava e os demais personagens só tinham vida à medida em que interagiam com o protagonista. Em “Serra da Estrela” não será assim. Acompanharei quatro as “vidas”4 de quatro mulheres diferentes até que se entrelacem (as vidas, não as mulheres, embora isso não esteja inteiramente descartado…) e durante a maior parte do tempo as quatro linhas serão independentes. Poderão eventualmente tocar-se (as vidas, não as mulheres, repito, mas isso não está fora de questão…), mas seguiram cursos independentes, possivelmente sem chegar a um final comum, pois o assunto central do romance não é um personagem e sua vida, mas um lugar e as coisas que nele acontecem.

Capítulo 1: Língua GeralCapítulo 2: Estrada Estreita, Trilho AntigoCapítulo 3: A Porteira do Mundo

Outro aspecto diferente em relação a este projeto é ele ser uma obra ainda grandemente aberta: ainda com menos de 20% do texto necessário para concluir o projeto (que deverá fechar com pelo menos 350/400 páginas). Isto significa que eu ainda acolherei sugestões e comentários que me pareçam interessantes, preferencialmente feitos por pessoas que vivam no interior de Minas Gerais5 ou que sejam especialistas em folclore.

1 A intenção comercial, no caso, se explica pelo desejo de sensibilizar a juventude de hoje para a viabilidade do imaginário nacional como fonte para a cultura pop, combatendo a americanização dos leitores que se formam hoje em dia lendo best seller.

2 No entanto, que fique bem claro que a ação de “A Cabana…” não tem nada a ver com a ação de “Serra da Estrela”. No máximo pode-se dize que a ação desta noveleta se passa posteriormente em relação aos fatos narrados no romance.

3 Ainda não sei como vou encaixar a ação deste conto no contexto do romance, mas eventualmente ele se tornará parte de “Serra da Estrela”, tal como “Memórias de um Cafajeste” se tornou parte de “Amores Mortos”, meu romance inédito.

4 Fica difícil usar literalmente o termo “vida” para os quatro casos, como o leitor eventualmente perceberá.

5 Estou muito interessado em histórias de fantasmas e criaturas legendárias do estado de Minas Gerais. Disposto até ao ponto de ir entrevistar pessoas que se dispunham a me contar suas histórias para eu escrevê-las.


10
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 10:15link do post | comentar | ver comentários (2)

Quando eu comecei a escrever o romance “Praia do Sossego” eu nem sabia que havia um lugar com esse nome, apenas imaginei que existiria e tratei de escrever a história de alguém em busca de paz que acabava indo para lá. Então um belo dia a minha então namorada me disse que uma amiga dela tinha uma casa em um lugar que tinha exatamente esse nome. Tive de ir lá, não apenas para passar uma semana sozinho e namorando à beira-mar, mas também para conhecer o lugar de nome tão mágico, a respeito do qual eu estava escrevendo o que, na época, eu ainda chamava de “romance espírita com pretensões artísticas” (não, amigo leitor, para o bem ou para o mal, a obra que finalmente publiquei não é uma obra espírita).

Voltei mais três vezes à Praia do Sossego real. Mais uma vez com a mesma namorada, meses depois. Uma vez com amigos, em uma excursão desastrosa. E uma vez com a minha esposa, meu irmão, minha cunhada e minhas filhas, desta vez um dos melhores passeios que fiz na vida. Além destas visitas físicas, foram incontáveis as visitas imaginárias, nas quais vivi ou revivi acontecimentos (reais ou imaginários) que foram incorporados ao romance (não, amigo leitor, não é um romance nem remotamente autobiográfico, embora duas das cenas nele narradas sejam baseadas em coisas que aconteceram, respectivamente, comigo e com uma outra ex-namorada).

Agora que o romance está saindo, imagino que as pessoas que vivem na verdadeira Praia do Sossego (e/ou arredores) gostarão de saber que meu livro realmente se refere à sua cidade. E quem não conhece, talvez queira conhecer por conta da obra. Então, em consideração ao povo hospitaleiro de lá, eu revelo a localização de minha história.

Praia do Sossego é uma das praias do município fluminense de São Francisco de Itabapoana, mais especificamente uma que se localiza no distrito de Santa Clara, ao lado de um canal que separa este distrito de um outro, chamado Guaxindiba. Você pode ver Praia do Sossego no Google Maps aqui.


08
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 19:07link do post | comentar | ver comentários (1)

A viagem entre Cataguases (minha cidade natal) e o local onde fica a Praia do Sossego (a verdadeira, que inspirou alguns dos episódios de meu romance deste nome) dura apenas algumas horas. Mas a viagem entre a concepção e a publicação de minha obra de estreia em livro demorou bem mais que isso: foram 11 anos!

Hoje finalmente recebi um email da editora confirmando que meu romance de 218 páginas, além dos cem exemplares que adquiri para noite de autógrafos e promoções várias, também está à venda no website. Este passo era psicologicamente muito importante para mim, pois somente desta forma posso finalmente saber que meu livro foi “publicado” (com todos os efes e erres que esta palavra não tem).

Agora convido a todos os amigos virtuais que fiz nesses quase seis anos de atividade nas redes sociais: conheçam este meu humilde trabalho, no qual coloquei muita inspiração, mas nem tanta transpiração, ao contrário do que os onze anos podem dar a entender, pois boa parte deste prazo foi perdida entre a concepção inicial e a revisão final, sem falar do ano e meio de negociações com a editora e com o meu orçamento…

Desde hoje já posso me considerar realizado. Sou um autor publicado, e não publiquei pouca porcaria não, é um livrinho grossinho o suficiente para parar em pé na estante.

Quanto aos amigos que residem na minha cidade natal, ou em Leopoldina, onde atualmente vivo, ou em qualquer cidadezinha das redondezas (incluindo Juiz de Fora, nosso distrito comercial…) dentro em breve organizarei um evento para marcar formalmente minha entrada, com casca e tudo, no mundo das letras.


19
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 19:59link do post | comentar

Estávamos conversando despreocupadamente entre uma cerveja e outra quando o meu amigo me olhou, pensativamente, e disse, com a gravidade de quem profere um aforisma de Nietzsche: 

— Acredito que você precisa começar a pensar em escrever a sua autobiografia.

A frase, assim dita, me pegou de surpresa. Nunca pensara em tal possibilidade, muito embora, na imaginação das pessoas da família e da maioria dos amigos, todas as histórias que escrevo são autobiográficas — o que prova que sou mesmo louco.

— Não posso, Flávio. A minha vida é desinteressante, não aconteceu tanta coisa assim, que mereça ser contada num livro.

— Acho que você está enganado. Para começo de conversa, nenhuma vida é totalmente desinteressante: tudo que você precisa é “dar um trato” nas partes mais confusas, cortar as partes chatas, estender os episódios picantes.

— Mas se eu fizer isso, vou estar falsificando a minha própria biografia.

— O que, convenhamos, é tão errado quanto roubar num jogo de paciência. Um crime sem vítimas, amigo falsário.

— Tenho as minhas dúvidas se é mesmo assim. Existe muita gente viva que me conhece, que pode me desmascarar. Sem falar que muita gente pode ficar ofendida por faltar na minha biografia.

— Ambos os problemas são bem fáceis de resolver. Você resolve os dois simplesmente apresentando a obra como se fosse um romance, de forma que somente quem leia tenha ideia de que se trata de um texto autobiográfico. Considerando o nível geral de leitura das pessoas desta cidade e redondezas, garanto que vai demorar duas décadas para que as pessoas percebam que estão faltando no seu texto porque, provavelmente, as pessoas que vão ler o livro dificilmente serão as mesmas que nele aparecem, ou deveriam aparecer. Mas, fora de toda dúvida, a melhor maneira de resolver este problema é deixar para publicar a sua autobiografia quando normalmente as autobiografias são publicadas, depois que você já estiver de caixão encomendado.

— Vou então escrevê-la agora para quê, meu amigo?

— Para quê, ora bolas! Pense, camarada, pense! O tempo haverá de passar, e você vai ao longo da vida esquecendo os detalhes de tudo que viveu. Na pior das hipóteses, você precisa começar a escrever para guardar registro, cara. O pior dos escritores, na pior das hipóteses, tem a obrigação de, pelo menos, ser um cronista de seu tempo. Se você não registrar o mundo em que viveu, você não terá cumprido sua principal missão.

Não acredito que tenha alguma “missão” específica nesse mundo (ou não acreditava), mas aquelas palavras me atingiram em um ponto sensível. Muito depois de terminar a conversa, pagar a conta e voltar para casa eu vim pensando. O pior dos escritores, na pior das hipóteses, tem a obrigação de, pelo menos, ser um cronista de seu tempo. É, parece que chegou a hora de começar a escrever o primeiro volume da minha autobiografia. Pode ser menos interessante do que eu pensava, mas sempre posso “siliconar” acrescentando um dragão ou dois, ou uma sociedade secreta, ou uma aparição de fantasma.


08
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 21:06link do post | comentar

Após uma gestação demorada e cheia de indas e vindas, finalmente está saindo, pela Editora Multifoco, o meu romance de estreia, Praia do Sossego. Escrito penosamente ao longo de onze anos (entre 1999 e 2010), este livro é importantíssimo para mim, quase um filho, pois ele contém trechos escritos em cada um desses onze anos (ainda que a revisão final seja entre 2009 e 2010). Trata-se de um verdadeiro testemunho de minha carreira literária, uma obra que contem todas as características básicas de minha ficção e de minha poesia de juventude, mesclando romantismo quase piegas com cenas picantes de sexo, citações existencialistas, ingenuidade juvenil, aventuras pelas estradas do Brasil e um cuidado quase gótico com o vocabulário.

Escrevê-lo foi praticamente uma Ilíada, uma aventura sem rumo e sem limites, que me custou muitas negativas mal educadas e muito desprezo por parte de pessoas que se acham escritores só porque pagam para publicar seus romances melosos e participam de movimentos inexpressivos. Por causa desse livro eu fui chamado de idiota, fui ridicularizado por trolls no Orkut e fui tachado de louco por membros da família que não conseguem acreditar que os escritores são capazes de escrever obras de ficção.

E eis que aí vem ele! A editora já me mandou o sinal verde, os livros estão na gráfica e começaram a ser-me entregues, sempre em lotes de trinta de cada vez, a partir do final do mês. Lançá-lo representa um momento de profunda realização, ainda que hoje eu tenha consciência de que teria escrito de forma diferente quase dois terços de suas páginas. Aliás, exatamente por isso. Se não o lançasse, eu o mutilaria de novo e perder-se-ia esse testemunho importante de minha juventude e de seus sonhos literários.

Começa agora a parte complicada: pôr para girar as engrenagens de minhas amizades, meus contatos com antigos professores, com as pessoas que acreditam em meu talento. Vou precisar gastar dinheiro e provavelmente não o recuperarei vendendo os exemplares. Mas ponho no mundo este livro, que me custou sangue e pele.

Mas de que se trata, exatamente, esse livro que tanto custou a sair?

Praia do Sossego é uma novela (gênero literário no Brasil muito confundido com o romance) sobre um jovem que atravessa uma depressão, causada principalmente pela morte precoce de sua amada. Não, eu não estou estragando a surpresa, isto está no Prólogo! A narrativa segue duas linhas convergentes, que se unem mais ou menos na metade do livro. A primeira linha segue o presente, no qual o protagonista, Ricardo, faz uma viagem a um lugar obscuro do qual apenas ouvira falar (a tal Praia do Sossego) para “respirar liberdade” e tentar distrair-se dos lugares que lhe lembravam a falecida Helena. Ao mesmo tempo, ele recapitula em flashbacks (intercalados como sonhos seus) todos os episódios de sua vida entre o momento em que conheceu Helena, no último ano do segundo grau, até o dia em que ela morreu, vítima de uma leucemia (a história se passa em algum momento do início dos anos 1990 e transplantes de medula ainda eram coisa de ficção científica). A linha presente é dinâmica e fortemente narrativa, acompanhando sua passagem por diversas cidades e encontrando vários personagens diferentes, com os quais ele, sempre tímido, quase nunca interage. Os flashbacks são fortemente metafóricos e poéticos, quase oníricos. No momento em que as duas linhas do argumento finalmente se encontram, a história se desata em outra direção, com outro estilo, rumo a um desfecho diferente do que Ricardo desejava.

Nesta obra tento manter a maior economia possível de personagens. Além de Ricardo, em torno do qual gira toda a história, só temos mais oito personagens vivos e o fantasma de Helena nos sonhos dele. Para um livro de cerca de 200 páginas isso parece pouco, mas é mais do que suficiente, se você considerar que a história que se conta não acontece “lá fora” em um mundo cheio de pessoas, mas “cá dentro” dos personagens, onde só coexistem as lembranças que eles escolhem conservar. A economia de personagens é fruto de um foco: originalmente havia mais, porém eu os fui “matando” ou simplesmente abandonando à medida em que fui revisando o livro. A morte de alguns personagens foi dolorosa: pela necessidade de eliminar um casal de personagens que parecia sobrar na maioria das cenas da Praia eu tive que limar uma magnífica cena romântica sob o luar que me custara um mês escrevendo. A cena se foi, relegada a um conto ainda inédito.

E assim eu cheguei ao conjunto que hoje perfaz este livro que me chegará as mãos nos próximos dias. Poucos personagens, vários cenários e uma ação mais concentrada em reações e reflexões do que em feitos e aventuras. Com esse conjunto lhes conto uma história que é essencialmente romântica, embora dotada de um certo “corte” enviesado que não é exatamente o das histórias românticas estilo Sabrina e Júlia. Essa é a história que eu vou convidar-lhes a conhecer quando lançar, em algum momento do mês de junho, o meu romance de estreia.

Um pós-escrito: cumprindo uma antiga aposta/promessa feita há muitos anos ao meu amigo Emerson “Toquinho” Teixeira Cardoso, poeta cataguasense e gente boa toda vida, não estou me desgastando para fazer um opúsculo, mas um livro que para em pé na estante… São mais de duzentas páginas, bicho!


22
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 10:10link do post | comentar | ver comentários (1)

À frente de Kenji está o sistema solar escolhido para segundo lar de sua raça, condenada pela lenta morte do planeta original. Kenji pilota sozinho a imensa nave de transporte, com orgulho e com senso de dever: ele controla o destino de milhares de almas. Mas Kenji não tem uma alma, é um autômato insetoide, metálico e desprovido de beleza. Foi construído para ser redundante, seguro, definitivo. E esse ser que não vive trará de volta à vida o precioso conteúdo dos frascos de suspensão, onde hibernam homens, mulheres e crianças.

A viagem de todo um povo, movida pela esperança de salvar-se da própria estupidez. “Nas crianças está a esperança” — diziam os líderes, mas na hora de partir elas não vieram sozinhas, pois os poderosos não aceitam morrer. Vinham hibernados em suas cápsulas para trazer o seu mal antigo ao novo mundo, restabelecendo estruturas que haviam causado a desgraça de uma esfera que Kenji nunca vira.

A viagem rigorosamente planejada durante séculos. Pelos que temiam a destruição que fatalmente viria. Kenji tinha todos os dados em sua mente de silício e carbono. Tinha consigo ferramentas e matéria para consertar-se e melhorar-se. Durante as décadas de duração do périplo estelar, tinha se esmerado em espandir-se, tornar-se mais perfeito, maior, mais poderoso. As crianças precisariam de sua ajuda para resistir à maldade dos homens quando chegassem.

O sistema a que chegavam era o mais promissor que o homem encontrara na busca vertiginosa por um novo lar: nove planetas, os rochosos próximos à estrela, os gasosos fora. Uma conveniente bolha de poeira estelar variada envolvendo o conjunto, até mesmo um espaço faltante referente a um planeta que nunca se formou. Praticamente um espelho do distante lar que Kenji nunca vira com olhos, apenas com dados de sensoriamento remoto e estatísticas.

O terceiro planeta, embora um pouco maior do que o necessário, e um pouco menos metálico do que o que seria apropriado, tinha uma atmosfera respirável. Infelizmente estava quase afogado em oceanos, com os blocos de terra ilhados por infinitudes de águas. Mas mesmo isso seria bom, afinal, pois na água poderia haver muita vida que se pudesse comer.

Kenji não entende muito bem o conceito de “comer”. Ele nunca foi humano e não possui parâmetros de prazer e nem de dor. Está ligado à energia da nave, o fluxo de elétrons é a coisa mais parecida com alimento que ele pode conceber, e a beleza de uma estrela, que irradia partículas que podem ser capturadas e consumidas… é a melhor semelhança de cornucópia que o robô imagina. Na mitologia dos robôs sencientes o paraíso deve ser a órbita de um sol jovem e forte, conectado a velas solares que recarregam seus duros maquinismos e que proporcionam movimento. Como insetos em volta de uma lâmpada. E Kenji, curiosamente, é um insetoide. É estranho que uma máquina apenas feita à semelhança de um ser vivo acabe por parecer-se com ela também no modo de “pensar” — se é que máquinas pensam, reflete, recursiva e filosoficamente, o calmo autômato.

A nave se aproxima preguiçosamente, os motores de empuxo reverso já estão desacelerando o imenso caixão de cerâmica e ligas leves. Enquanto contempla a beleza daquele sol laranja relativamente jovem, tão saudável em sua plenitude, Kenji se permite uma atitude ilógica: configura os sensores para trás, como quem olha no retrovisor — se jamais tivesse tido um carro. Nos dados atirados pelas interfaces vêm informações em desencontro: o sol original pode estar vivo, pode não estar, está tão longe, tão perdido entre milhares de outros. Custa a ser localizado. Kenji isola-o num tímido sinal de rádio entre outros. Ele continua cantando sua microfonia cósmica. Mas no terceiro pedregulho a partir dele já não canta mais ninguém, a não ser, talvez, degeneradas formas vivas de uma segunda gênese, estranha à herança que aquela nave leva, talvez nociva a ela.

O planeta de destino foi escolhido, por uma missão não tripulada, séculos antes de Kenji ter nascido de uma linha de montagem pilotada pelas frágeis mãos de moças bonitas e perfeccionistas. Para ele o paquiderme espacial se arrasta, segundo um programa escrito numa linguagem de máquina que nem Kenji chegou a conhecer. Ele se sente jovem ao pensar que Agnes, o computador de navegação, consegue entender as instruções deixadas naquele programa. Agnes, com quem jamais trocou informações. Sistemas diferentes demais, aplicações diferentes demais. Kenji suspeita que Agnes sequer saiba que ele a chama de Agnes, ou que haja humanos a bordo. Tudo que Agnes deve saber é que está indo para algum lugar desconhecido no fundo das trevas do espaço.

Para Kenji o tempo passa rapidamente. Foi programado para não se entendiar com as semanas. Sentiu a aproximação como se tivesse sido breve, mas na verdade durou anos. Anos de espirais em torno da estrela, em busca do melhor perigeu para orbitar. Quando sentiu Agnes estabilizando a nave na órbita, teve uma sensação que os humanos chamariam de medo, mas que para ele aparecia apenas como uma repetitiva computação dos passos a fazer, analisando cada variável.

Com a nave pronta, Agnes enviou pelo sistema uma notificação seca e simples, cujo significado somente os destinatários seriam capazes de entender, uma mera sequencia de caracteres em seu programa: “Órbita estabilizada no destino.” Para Agnes esta sequencia era apenas algo que devia “dizer” eletronicamente quando a viagem terminasse.

Ninguém precisava dizer a Kenji o que fazer. Ele tinha tudo predeterminado desde antes de ser posto em funcionamento. Iniciar a conexão dos sistemas de desembarque e ligar os analisadores de biosfera. Começava ali a fase final do projeto “Terra II”.

Se Kenji tivesse um aparelho respiratório teria suspirado naquele momento, se tivesse uma alma teria sentido algum tipo de emoção. Mas em vez disso, naquele momento tão importante para a humanidade, os passos decisivos do nascimento de um novo mundo eram dados por um artefato cego, cujas emoções eram apenas cálculos que oscilavam, abandonando probabilidades inadequadas.

Seguindo à risca a sequência estabelecida em seu cérebro inanimado, Kenji iniciou o lento, inexorável e irreversível processo de despertar das primeiras centenas de seres vivos, humanos que assumiriam o trabalho de tornar aquele mundo à sua imagem e semelhança. Consultando seus dados, quase com prazer, Kenji considerou o que seria dos pobres seres primitivos que ali viviam: em breve seriam usados pelos colonizadores, como ele próprio o era. Mas as chaves de segurança em seu programa o impediam de completar este cálculo. Os primeiros a despertar seriam os adultos, que teriam a função de ensinar às crianças valores fundamentais da civilização, como poder, ganância, preconceito, superstição, desconfiança e ódio. Dentro dos limites estreitos de sua programação, Kenji tinha lampejos de quase autoconsciência, nos quais ele lamentava o destino daquele planeta que recebia a infestação humana.

Um capitão e alguns oficiais emergiram das salas de descompressão. Ao vê-los, quase instantaneamente, Kenji ajustou sua percepção temporal a algo que tornaria possível acompanhar a existência daqueles seres tão rápidos, tão efêmeros.

O capitão apossou-se de seu lugar, inexpressivo em seu rosto militar, quase tão frio quanto as patas de aço de Kenji, que sustentavam suas toneladas de tentáculos e circuitos. Sua voz insípida deu um comando de voz, declamado ritualisticamente, como um jogral:

— Abrir visores.

Um a um foram aparecendo quadrados luminosos pelos painéis. Toda aquela energia esperdiçada apenas para exibir as informações em um formato que os humanos pudessem entender. A chave de segurança agiu novamente e Kenji passou a concentrar-se na superfície do mundo abaixo de si. Aproveitou para acionar os próprios analisadores de luz visível, para poder obter dados por este meio também.

— Capitão — disse a oficial, ainda incomodada com a lisura de seu crânio depilado — as leituras biológicas não conferem.

O capitão moveu os mecanismos de sua interface superior de uma forma que Kenji fora ensinado a reconhecer como “preocupação”, um conceito que ele quase não entendia. Kenji era permanentemente preocupado. Era assim que agia, em proteção aos sistemas embarcados, inclusive os sistemas biológicos. Por sorte, autômatos não sofrem de nervos.

— Tenente Xu, vamos refazer as leituras após uma recalibragem dos sensores, iniciando agora. Kenji, modo de segurança, urgente! Vamos verificar todos os receptores externos.

Kenji moveu-se para a retaguarda da cabina de comando que ocupara por séculos e dirigiu-se à escotilha para executar o trabalho de verificação externa.

Agarrado com suas várias patas ao casco da nave, Kenji dirigiu seus sensores locais ao planeta abaixo. Enquanto duas de suas patas verificavam a calibragem de espelhos e coletores de partículas, duas outras manipulavam os seus próprios sensores, que eram menos sensíveis e robustos, mas funcionavam, relativamente aos embarcados na nave, tão bem quanto um binóculo funciona em comparação com um telescópio espacial.

Havia, mesmo, algo errado com o planeta. A imagem que ele apresentava, na visão infravermelha de Kenji, era diferente da que fora gravada pela sonda, séculos antes. Estava, ou parecia estar, mais frio e mais calmo: grandes massas de nuvens o recobriam, uma bola de gude branca — se Kenji soubesse o que eram bolas de gude para conceber esta metáfora.

Terminou de circular por todos os sensores externos e esgueirou-se pelos corredores até a ponte de comando, onde estivera por séculos, e a chave de segurança o forçou novamente a mudar seus cálculos, impedindo-o de tomar o lugar que instintivamente buscara.

— Agnes, confirme nossa posição!

O capitão também sabia o nome de Agnes. Kenji computou rapidamente que isso significava que o nome pelo qual sempre chamara ao computador de navegação lhe teria sido ensinado, séculos antes. Por alguém que também o ensinara aos tripulantes. Provavelmente a todos. Todos conheciam Agnes. A chave de segurança agiu novamente. Para Kenji, cada acionamento era parecido com algo a que nós, humanos, chamaríamos de “dor”.

— Não entendo, capitão — disse a Tenente Xu, com seus olhos oblíquos arregalados numa expressão de medo — as coordenadas conferem, mas as características atmosféricas do planeta são diferentes.

— Confirme para mim os dados físicos: quero diâmetro, massa, posição relativa à primária.

O capitão acariciava a bola de bilhar que lhe tapava o pescoço, ainda incomodado com o rude tratamento de depilação a que os viajantes das estrelas eram submetidos, pelo menos os que viajavam vivos. Kenji teria tido prazer em lembrar, se compreendesse prazeres humanos, que era uma condição definitiva. A chave de segurança agiu novamente.

— Os dados conferem, Capitão.

— Então, minha querida, estamos fodidos.

— Capitão…

— Não vamos ainda contar para o resto da tripulação, enquanto eles acordam o resto, mas temos anos terríveis pela frente. Estamos fodidos, fodidos.

— O que terá acontecido, Capitão?

O capitão contemplava os dados que passeavam pelos econômicos visores monocromáticos. Pensava, coisa que Kenji não sabia ou não precisava saber.

— Provavelmente temos um cenário de apocalipse, Tenente. Alguma das espécies detectadas por nossa sonda há séculos, alguma das malditas espécies que a sonda viu rastejando pelos pastos e pântanos e charnecas desse mundo primitivo. Certamente alguma teria inteligência, mesmo rudimentar, provavelmente bem rudimentar. Mas conseguiu inventar coisas, desenvolver armas — a primeira coisa que as inteligências primitivas querem inventar — e deram azar de inventar rápido demais os brinquedos perigosos.

Andréa entrou na ponte de comando. Era da mais absoluta confiança de Capitão, era uma gimnoide hedonística, mas que também tinha conhecimentos de ecologia e música. Ninguém nem nada naquela nave podia se dar ao luxo de uma função só — nem a “boneca inflável” do Capitão, como a Tenente Xu a chamava.

Kenji deu-se conta, subitamente, de que certos dados aleatórios que fora percebendo e acumulando durante décadas e décadas eram os sonhos dos homens e mulheres em seus invólucros estáticos. Tenente Xu não gostava de Andréa e Kenji não sabia para que serviam gimnoides, mas simpatizava com aquele ser que imitava a aparência dos humanos. Simpatizava porque ele próprio era diferente, porque ele não tinha uma aparência agradável aos humanos — e talvez tampouco a Andréa. A chave de segurança parecia não desligar nunca mais.

— Capitão — disse a boneca inflável — os dados que coletei são realmente condizentes com um inverno nuclear.

— Estimativa de tempo?

— Considerando a meia vida dos elementos transurânicos detectados, Agnes calculou em prováveis cinquenta anos.

— Isso é muito tempo? — perguntou o Capitão, como se a inteligência fosse para ele a força de Sansão. Estaria arrancando cabelos se os tivesse. A tensão era visível e Kenji deu-se subitamente conta de que sabia o que era “tensão” e a chave de segurança, mesmo funcionando a todo vapor, não conseguia impedir que ele soubesse isso.

— Alguma área menos afetada?

— Nenhuma. O planeta está coberto de densas nuvens e a radiação choveu mais ou menos uniformemente sobre a crosta. A Idade do Gelo parece estar começando, para piorar as coisas.

— Idade do Gelo… — as palavras do capitão soavam vazias — eu preciso me recolher, para pensar a sós.

— Volte logo, capitão. Temos que decidir o que fazer.

O capitão acenou a Kenji, que o seguiu, como um cão.

— Kenji, ensinaram-lhe a falar?

Kenji produziu uma série de ruídos percutidos, mais ou menos como a conversa das aranhas, que batem os seus palpos para enviar sinais umas às outras. O capitão tinha conhecimento do CCCP1 e compreendeu que sim.

O capitão levou Kenji à porta de um recinto hermético:

— Quando me procurarem, diga que fui.

No instante seguinte, dentro do recinto, ouviu-se um silvo longo, do tipo que irritaria ouvidos humanos. Kenji quis saber do que se tratava e destravou a porta. Lá dentro estava o capitão, ou pelo menos a parte dele que não pensava. A cabeça, esta tinha se espalhado em muitos pedaços. Não compreendia como alguém teria a ideia de voltar contra si mesmo uma pistola de arrebites. Talvez faltasse um parafuso ao capitão, e ele tivesse tentado consertar do jeito errado. Bateu os palpos na parede, esperando que o torso contorcido respondesse. Kenji não sabia que mortos não falam.

A tripulação o viu ali, logo viram o acontecido, instalou-se o pânico. Andréa chegou com a Tenente Xu, ambas atabalhoadas. A colmeia humana continuava despertando, milhares de bocas logo quereriam comer, e abaixo deles estava um planeta morto, envolto em nuvens tóxicas e coberto de uma neve venenosa.

“Há momentos na vida em que é preciso ser homem”, dizia o bilhete encontrado no bolso do Capitão. Ele terminava com uma longa lista de nomes a quem ele pedia perdão por não ter sido.

Os estoques de alimentos da nave eram suficientes para alguns meses, ou anos, dependendo de quantos fossem despertados, de quanto cada um estivesse disposto a engordar. Eventualmente, em última necessidade, o estoque poderia ser prolongado um pouco mais, desde que alguns casulos nunca fossem despertados. Mas a comida fatalmente acabaria se não fosse possível descer em algum lugar e semear a vida.

A Tenente Xu agiu de uma maneira surpreendentemente prática diante das circunstâncias. Tendo compreendido o significado do que o capitão se fizera, Kenji se sentiu atraído pela precisão matemática dos comandos tomados pela segunda em comando. No lugar dela, teria agido de forma semelhante, apenas não tinha, por ser autômato, a permissão de tomar qualquer atitude que envolvesse vidas humanas, não sem a insistente chave de segurança embaralhar os seus circuitos e apagar os dados processados, tornando-o confuso. A primeira coisa que ela fez foi ordenar que os pequenos droides de faxina limpassem a cabina e atirassem a sujeira por uma escotilha funerária. Involuntariamente o Capitão dava início à semeadura daquele planeta esterilizado. Mas semeadura com morte, em vez de vida. Belo início para uma nova civilização.

Os humanos mais graduados se reuniram na ponte de comando, com as luzes desligadas. Falavam em voz baixa, talvez por medo de que Agnes os ouvisse. Kenji não se importou com isso. Seu sistema de comunicação através de batidas dependia da detecção de vibrações. Por isso ele se especializara em detectar a fala dos humanos através de vibrações, não de sons, e conseguia captar muito da conversa que eles tentavam esconder. A reunião era para traçar estratégias. Uma delas, particularmente defendida pela Tenente Xu, envolvia descerem com dois autômatos à superfície destruída do planeta. Os dois autômatos seriam Andréa, a gimnoide, e Kenji.

Mesmo sendo um autômato, ele não gostava da ideia. A chave de segurança zunia em seus circuitos, mas ele ainda acha ilógica a escolha de mandar para a superfície de um mundo morto justamente o piloto. Ainda demoraria algum tempo para que ele percebesse que não havia necessidade de piloto porque não havia para onde ir.


30
Set 10
publicado por José Geraldo, às 00:06link do post | comentar

Terminei agora há pouco a revisão gramatical e ortográfica de meu segundo romance. Amores Mortos é a biografia sentimental de um homem assombrado pelos fantasmas de amores perdidos. Por exigência das regras do concurso em que o inscreverei hoje, dia 30, ele está digitado em 221 páginas de A4, com fonte Times New Roman tamanho 12 e espaçamento duplo entre linhas.

O processo de criação de Amores Mortos foi bem menos complicado do que o de Praia do Sossego, a minha primeira obra do gênero. Em vez de levar nove anos para ser terminado, custou-me menos de nove semanas, incluindo três revisões. Em parte esta rapidez se deve à abordagem pelo «método quebra-cabeças», em vez do «método cebola», que usei para escrever o primeiro romance.

Amores Mortos e Praia do Sossego são duas obras muito diferentes no aspecto formal, embora tenham muitas semelhanças no tema e na filosofia de vida dos personagens. Não vou me alongar sobre eles, apenas direi que o mais antigo deles é uma obra mais próxima da poesia e mais voltada para a exploração psicológica dos personagens, com muitos trechos que transitam para o poema em prosa. Enquanto isso, o mais recente é uma obra de estilo mais direto e que emprega um ritmo narrativo mais claro (apesar de a história fazer mais ziguezagues do que em Praia do Sossego).

Se não obtiver sucesso enviando-o ao Prêmio SESC, vou enviá-la a outros concursos futuros, ao menos enquanto nenhuma editora se interessar.

SINOPSE:

Oswaldo narra alguns episódios de sua vida amorosa a um amigo nunca identificado, tentando explicar-lhe alguns traços mais polêmicos de sua personalidade, culminando em uma epifania de Jesus Cristo, durante a qual ele revira suas prioridades e tomara uma decisão que modificaria sua vida. As suas aventuras, ocorridas em seis diferentes cidades de uma Zona da Mata Mineira disfarçada por nomes falsos, incluem vários tipos de experiências afetivas e sexuais, que vão de paixões platônicas a sexo grupal, de atos de violência a gestos de desapego, de canalhices a episódios de altruísmo. Alguns, mais obcecados com auto-ajuda, identificarão uma importante «mensagem» no livro, apesar do teor fortemente erótico de algumas passagens, mas ele vai além disso, trazendo reflexões menos religiosas e mais filosóficas sobre a vida, sem necessariamente procurar ajudar ou ensinar coisa alguma.

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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
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