Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
10
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 17:46link do post | comentar | ver comentários (1)
Não é preciso, absolutamente, discorrer sobre as virtudes de nosso sistema educacional. Mesmo porque, tal discurso não seria suficiente para preencher uma postagem. Suficiente para botar a Indonésia no chinelo e galgando um honroso 36º lugar mundial, graças ao fato de não haver dados sobre a maioria dos países, a nossa educação goza de um status de praga do Egito, apesar de, segundo nosso governo, estar «no caminho certo». Com alguma boa vontade, querendo crer que ele tem razão, eu diria que demos os primeiros passos, os primeiros dois passos, de uma jornada equivalente à conquista da Índia por Alexandre, com a esperança de que dará certo, ao contrário do famoso episódio histórico. Alexandre pelo menos sabia onde ficava a Índia, receio, porém, que as pessoas que gerem nosso sistema educacional tenham apenas uma vaga ideia.

É com certa vergonha que esclareço isso, mas dado o nível médio de analfabetização do público neste país (75% de pessoas sem suficiente domínio da leitura), é sempre bom alertar que, no parágrafo acima, a Índia é empregada uma vez como metáfora.

Tal como o índio ficava fascinado por espelhos e imaginava virtudes para o pequeno objeto luminoso que não compreendia, nós, como verdadeiros botocudos, continuamos querendo soluções mágicas para nossos problemas, e gostamos mais das que brilham do que das que funcionam. Damos mais valor a espelhos e contas do que a facas. E agora o Ministério da Educação descobriu outra fórmula mágica.

Nosso sistema educacional é tão absurdo que eu duvido que ele tenha chegado a este ponto por uma evolução natural das coisas. Ele só pode ser defeituoso de propósito, porque não faltaram, em nossa história, iniciativas grandes que poderiam nos ter feito avançar muito. A ditadura de Vargas criou o sistema público de ensino, excelente, mas não se deu prosseguimento com a implantação de escolas modelo pelo país. Se uma quantidade suficiente delas tivesse sido criada, a massa crítica de pessoas esclarecidas que sairiam delas teria tido um efeito a impulsionar por mais estruturas semelhantes. O MoBrAl dos militares, apesar dos ranços ideológicos, poderia ter erradicado o analfabetismo e dado ensino primário a quase toda a população. Às favas com as ideologias, muitos países do mundo só erradicaram o analfabetismo sob o tacão de ditas, duras ou brandas (Turquia de Atatürk, URSS, Alemanha de Bismarck, China de Mao, Vietnã comunista, Cuba castrista). Mesmo que os militares tivessem as piores intenções, se o MoBrAl cumprisse seu fim esse país seria outro, porque não há nada mais revolucionário do que alfabetizar um povo (leiam MacLuhan).

Então é evidente que todas as iniciativas educacionais no Brasil sempre foram sabotadas, especialmente quando pareciam «no caminho certo». Para cada passo à frente, um ou dois para os lados, ou para trás. E quando surgia alguma voz iluminada trazendo ideias originais (ó, o horror!) vinha a seguir uma onda de idolatria cega de modelos importados. Tivemos Paulo Freire pouco antes de importarmos o sistema americano de «high school» (devidamente tropicalizado com a remoção de suas virtudes, como o período integral, as aulas de artes, a educação física e o ônibus escolar amarelo).

Em uma coisa, porém, todos os idealizadores de nosso sistema educacional sempre tiveram em comum: é uma excelente ideia reformar. Nem bem você começa a se acostumar com a divisão do sistema educacional em primário, admissão, secundário e terciário vem uma reforma e cria o primeiro grau e o segundo. E quando já estavamos acostuados a contar oito séries e mais três surge o segundo grau técnico, com primeiro ano básico, fazendo o secundário ter quatro anos. Ao longo de todo esse tempo, enquanto os intelectuais se ocupavam fazendo reformas e tentando reconectar fios nas cabeças dos alunos, vicejou a indústria do cursinho, que ensinava aos egressos dessas escolas-laboratório o mínimo necessário para entrarem numa faculdade e se manterem lá.

A ideia de reformar faz sentido, se você quer proteger o próprio traseiro. Se nada está funcionando, vão procurar demitir primeiro quem «não está fazendo nada», então pareça ocupado andando de um lado para outro com uma planilha de dados na mão e dando marteladas a esmo, de vez em quando propondo demolir uma parede ou comprar um mesa nova. Essa faina dá a impressão de que você tem um projeto, um propósito. Mais que isso, dá a impressão de que você é útil para o funcinoamento da coisa, enquanto o faz-nada que só fica tentando entender o que não está funcionando é um câncer do sistema que precisa ser logo operado.

E dá-lhe reforma educacional. Foram cinco durante a República Velha, quatro durante a ditadura de Vargas, quinze anos de debates até se chegar à primeira Lei de Diretrizes e Bases (1961), três reformas durante o regime militar, e pelo menos duas (três ou quatro, dependendo de como você conte) desde a redemocratização. Quinze reformas educacionais em 123 anos de República. Uma média de uma reforma educacional a cada oito anos. Praticamente ninguém nesse país se formou sem «sofrer» uma reforma educacional. E eu nem mencionei as mudanças que não foram implementadas através de reformas constitucionais ou leis ordinárias. Se formos contar as mudanças efetivadas através de portarias do Ministério da Educação (e seus equivalentes passados) a gente chega ao absurdo número de 52 mudanças estruturais na nossa educação em 123 anos de República. E os nossos alunos tiram notas ruins porque são burros, não é mesmo? Aham…

Há momentos em que eu começo a pensar que não importa muito se estamos mesmo indo na direção certa. Eu gostaria que simplesmente fôssemos por tempo suficiente em alguma direção, qualquer direção, para termos como saber se é a direção certa. A impressão que tenho, ao estudar a história de nossa educação, é que ficamos rodopiando no mesmo lugar, babando para qualquer novidade surgida nos Estados Unidos, na Alemanha, na França, no Japão, na URSS ou na puta-que-o-pariu. E dá-lhe ensino técnico, método Kumon, construtivismo, escola nova, ginásios, vestibulares, interdisciplinaridade, behaviorismo etc. Queremos ser tudo, ter tudo. Queremos que a nossa educação empregue todas as teorias educacionais do mundo. O que equivale a querermos que nosso carro seja ao mesmo tempo pick-up, perua, carro de passeio, esportivo e compacto.

Quando é que vamos parar com essa mania de ficar mexendo na máquina? Quanto tempo até algum iluminado ter a ideia de que, talvez, quem sabe, possivelmente, o nosso sistema educacional, seja ele qual for, funcionaria se simplesmente os professores pudessem trabalhar em paz? Não precisa ficar reinventando a roda, mudando a distribuição de séries, criando nomenclaturas. Vamos simplesmente dar formação sólida aos mestres escola, pagar-lhes salários razoáveis, oferecer-lhes cursos de reciclagem periodicamente, dar segurança e estrutura às escolas. Depois que tivermos feito isso por uns dez ou vinte anos, no mínimo, e esgotado o potencial de crescimento orgânico de nosso sistema, tosco que seja, vamos pensar em aperfeiçoamentos metodológicos. Vamos primeiro consertar o motor e lanternar direito esse calhambeque, depois a gente compra bancos de couro, pneus radiais e, quem sabe, turbine a máquina.

23
Set 12
publicado por José Geraldo, às 21:31link do post | comentar
Um poema satírico inspirado por uma postagem de minha amiga Ana Feijó da Cruz no Facebook.

Eu juro
Sou de um tempo passado,
em que cupcake se chamava bolinho,
blush se chamava ruge,
van era furgão
sale era liquidação.

Nunca me ocorreu
chamar meu amor de love,
nem referência de benchmark,
nem interessado em stakeholder,
nem artigo de paper
e nem discurso de keynote.

Hoje vivo perdido
comendo cigarrette em vez de enroladinho.
Nunca mais vi jogarem bola ao cesto
e nem futebol de salão.

Acho estranho quando chamam
stickers de adesivos e
entrega em domicílio de delivery.
Especialmente se houver alguma coisa free
nos cookies que compro no shopping.

01
Abr 12
publicado por José Geraldo, às 12:12link do post | comentar | ver comentários (2)

Depois de doze longos meses trabalhando na surdina, está perto de sair, pela Aleph, o meu romance «Pedras no Caminho», que tende a ser um marco de minha carreira literária, sinalizando minha estreia no gênero da ficção de auto ajuda, consagrado nacional e internacionalmente pelo nosso grande mestre e acadêmico, Paulo Coelho. Trata-se da história de um jovem interiorano em busca de uma nova identidade na cidade grande, após a perda de seus pais em um acidente de ônibus. Focando nos desafios que enfrenta, e na importância da fé cristã para renovar as energias diante de grandes obstáculos, o romance tem tudo para agradar os fãs do gênero. Aliás, sairá bem recomendado por um prefácio de Augusto Cury e uma orelha escrita por Zibia Gasparetto.

Aguardem para breve as novidades.


11
Set 11
publicado por José Geraldo, às 21:17link do post | comentar | ver comentários (5)

O sucesso não é algo que cai do céu, não é algo imponderável, não é um privilégio para escolhidos. Existe uma fórmula para chegar até ele e obter o que você deseja só depende de você. Para isso você precisa seguir os passos de quem já chegou lá, de preferência os de quem está chegando lá atualmente. Aprenda a ser bom, seguindo os melhores.

Este texto não pretende ser infalível, mas contém dicas seguras para você que não vê a hora de ter seu livro nas prateleiras das grandes livrarias e sua história adaptada para o cinema ou, modestamente, em uma mini série da Globo. O Prêmio Jabuti e um convite para a FLIP podem estar ao seu alcance, basta querer.

A dica mais importante é a que já está escrita um pouco acima: junte-se aos bons para ser um deles. Como se diz popularmente: quem se mistura aos porcos, come lavagem. Você não quer lavagem, você quer caviar de esturjão do Mar Cáspio acompanhado por Romanée Conti.

Quando você vai construir uma casa, podendo escolher, você não vai fazê-la no brejo, nem na beira do rio, nem em um barranco pedregoso e nem no meio do nada. Sua obra literária é a sua “casa” no mundo das letras, construa-a no melhor terreno que puder. E o melhor “terreno” é aquele que fica nos melhores bairros, vizinho dos bons nomes. A seguir temos uma lista de excelentes temas para o seu trabalho. Muita gente está ganhando dinheiro nesses “ramos”, então você não tem como errar.

Vampiros
Por razões óbvias
Lobisomens
Você provavelmente os incluirá se tiver escolhido o item anterior, mas eles também podem funcionar muito bem sozinhos, ou acompanhados de outros personagens
Uma garota solitária que convive com garotos bonitos
Idealmente essa garota terá passado por alguma circunstância triste, que a obrigou a viver em um lugar onde há tantos garotos bonitos
O cara mais bonito da escola se apaixona pela garota esquisita e/ou impopular
Possivelmente ela pertence a uma minoria étnica, tem algum tipo de relação com magia, é uma espiã alienígena ou então possui algum tipo de raro defeito físico ou dote
Um homem e uma mulher que se odeiam mas são forçados a permanecer juntos por um certo tempo e acabam se apaixonando
O motivo de ficarem juntos pode ser uma aposta, um naufrágio, uma catástrofe natural, uma invasão alienígena ou, idealmente, um feitiço
O clássico conto de fadas da princesa
No qual o príncipe se apaixona por uma garota plebeia inteligente, bonita, simpática, cheia de personalidade mas “comum” demais para os padrões da família real
Encontros amorosos em hospitais, necrotérios, cemitérios, igrejas, castelos abandonados, necrópoles arruinadas ou lugares assombrados
Afinal, nada é mais romântico do que a proximidade com doença, morte, sujeira, germes e… fantasmas, bruxas, duendes, lobisomens!
O amor do aluno pela professora, ou da aluna pelo professor (ou vice-versa)
Apenas tenha o cuidado de evitar uma diferença de idade maior que dez anos (isso seria bléargh!) e ambos têm de ser bonitos (afinal, professores são quase todos jovens e bonitos)
O amor por um fantasma
Além de todas as vantagens da história romântica tradicional, esta ainda tem um plus: devido à impossibilidade de contato físico entre os pombinhos, a história será considerada “segura para todas as idades”
A paixão da vítima pelo sequestrador
Isso não é uma condição psicológica e nem uma estratégia de sobrevivência, é amor do mais puro e verdadeiro
A paixão súbita entre dois amigos
Essas coisas acontecem o tempo todo, então ninguém vai achar estranho. Mas para dar mais realismo à história os dois têm que ser bonitos, bem resolvidos e sem preconceitos. Um deles ser famoso ajuda a tornar a história mais quente.
Super poderes
Nada mais interessante do que ler sobre pessoas comuns que ganham super poderes e resolvem todos os problemas do mundo. Isso inclui garotos sofridos que descobrem que são especiais em um universo paralelo ou garotas sofridas que descobrem ter o poder de matar ou destruir com as suas palavras
Cartas de amor
Pessoas apaixonadas escrevem cartas o tempo todo (e guardam cópias para futura publicação)
Fan fiction
Não são só os fãs da sua série de mangá favorita que vão se interessa em ler os “episódios perdidos” que você criou: todo mundo vai querer ler
Casamentos arranjados
Mas cuidado: no decorrer da história os noivos devem apaixonar-se de verdade e enfrentar uma série de inimigos que vão tentar separá-los. Um desses inimigos será o homem por quem a mocinha pensava estar apaixonada antes de casar-se. O noivo em hipótese alguma forçará a noiva a consumar o casamento, mas será paciente e atencioso até cativá-la
Escrever textos de auto ajuda ensinando os outros a fazer coisas
Porque o mundo está cheio de pessoas que gostam de seguir o que os outros fazem ou mandam fazer

Caso a sua obra não se baseie em nenhuma destas histórias você precisará se acostumar com a ideia de que será pouco lido e receberá poucos comentários. Também ganhará pouco com os cliques no AdSense e dificilmente receberá uma carta de uma grande editora estrangeira se oferecendo para traduzir e publicar sua heptalogia mediante um adiantamento de quinhentos mil dólares pelos direitos do livro um e mais 250 mil a cada novo livro completado.


10
Set 11
publicado por José Geraldo, às 16:41link do post | comentar | ver comentários (1)

Jó era um homem justo. Na velha terra de Uz não havia ninguém tão querido e nem tão invejado. Era rico, mas a riqueza não o havia estragado, em vez disso, fazia dela um instrumento para ajudar o próximo — e era justamente por isso que o tinham em tão alto apreço.

Tinha sete filhos e três filhas, de sua única e amada mulher. Todos já casados e com as respectivas famílias bem encaminhadas. Viver entre os filhos e netos, isso era o que tornava Jó um homem realmente feliz, a riqueza era algo com que ele contava de uma forma quase natural.

A riqueza de Jó havia sido herdada, em grande parte, de seu falecido pai, mas ele a havia aumentado com seu trabalho duro. Tornar-se rico ficara especialmente mais fácil depois que os filhos cresceram, pois passaram, também eles, a contribuir para o crescimento da propriedade. Desta forma, Jó possuía extensos rebanhos de gado, que pastavam pelos campos sob o cuidado de centenas de empregados, com seus cães. Estes animais, entre os quais muitos escravos, como era costume na época, eram saudáveis e bem tratados. Comprar uma rês de Jó era negócio bom sempre — e essa reputação só ajudava a torná-lo um homem mais bem-sucedido.

Por tudo isso, evidentemente, Jó era grato a seu deus. Prestava seu culto doméstico de forma minuciosa e, por via das dúvidas, sempre sacrificava em nome dos filhos, para o caso de algum deles esquecer-se. Desta forma ficava garantida a satisfação do deus, diante de qualquer eventualidade.

Não havia, portanto, aos olhos do povo de Uz, nenhum defeito de caráter que pudesse ser imputado a Jó. Ele era tão perfeito que só poderia mesmo existir como um personagem literário. Mas a vida de Jó estava para mudar, para pior, graças ao seu deus.

O deus de Jó era dado a bravatas e apostas, além de ter o péssimo hábito de ter entre seus servidores celestiais criaturas de caráter duvidoso. Esses defeitos o tornavam propenso a cometer erros, ou melhor, atos que aos olhos dos comuns mortais parecem erros mas que, nas palavras do deus, reveladas a profetas, seriam “parte de um grande plano”.

Um belo dia estava Jeová — esse era o nome do deus de Jó — fazendo aquilo que se faz lá no céu quando os anjos apareceram para fazer o que os anjos fazem na presença de deus, quando Satanás — um servidor celestial particularmente capcioso — apareceu no meio eles, aparentemente de forma costumeira. Digo isso porque Jeová o reconheceu, cumprimentou e chamou de lado para uma conversinha amigável:

— E então, Satã, o que tem feito, meu filho?

— Velho, o Senhor sabe como é, estive andando lá pela terra, de um lado para o outro, só azarando…

— Ah, então deve ter visto o Jó…

— Jó, Jó… — engasgou Satanás sem se lembrar do nome.

— Ora, Satã, está ficando gagá antes de seu pai? Jó, aquele cara lá da terra de Uz que gosta de mim mais do que a minha mãe!

— Mas o Senhor não disse para a gente que não teve mãe, que sempre existiu, essas coisas?

— Bem, eu não tive mãe ainda, mas isso é complicado demais para vocês anjinhos entenderem. O que importa é que esse Jó é o maior dos meus fãs, um amigo meu de toda confiança, homem da mais estrita fidelidade. Eu dormiria pelado com ele numa cama sem medo de nada.

— Olha, pai… não fica falando essas coisas que Baal e Marduk reparam. Você nem imaginam a fofoca que esses dois arrumaram sobre os deuses gregos, por muito menos.

— Qué é isso, moleque? Está me estranhando? Sou espada! Espada de fogo!

— Ah, então `tá. Mas o Senhor me falava de um tal Jó…

— Sim, o Jó. Duvido que haja alguém no mundo que tenha tanto amor por mim quanto ele!

— Pai, que é isso!? O Senhor está se gabando do amor de um homem?

— Meu filho, tal como você que é anjo, não tenho sexo. Estou falando de amor espiritual! Você não entende?

— Claro que não, Pai. O Senhor me criou para desconfiar de tudo, para discordar de tudo, para encher o saco de todo mundo. Sou cricri desse jeito porque o Senhor me fez assim.

— É mesmo, da próxima vez que eu for criar um universo não vou brincar de novo dessa história de bem e mal, livre arbítrio etc. Vai todo mundo me obedecer, e pronto!

Satanás ficou quieto. Quando Jeová começava a divagar sobre seus planos para o “próximo universo” o céu inteiro tinha medo. Afinal, para criar um novo universo seria preciso acabar com o primeiro, incluindo todos os anjos, santos e alminhas pagãs.

— Mas o Senhor falava do Jó, e eu não acreditava que ele pudesse ser tão santo.

— Está duvidando de mim, filho? Eu sei tudo!

— Todo pai diz isso — sussurrou Satanás.

— O que foi que você disse? — trovejou Jeová.

— “Todo poderoso Pai do Céu”.

— Ah, bom. Mas se você duvida de mim, aposto com você como a fé do Jó é inabalável. Olha lá!

Jeová mostrou Jó e sua casa através de um “mar de bronze” que havia diante do trono. Estavam todos celebrando uma festa familiar, ao redor de uma farta mesa. Satanás olhou com interesse aquela cena, tentando identificar pecados para cutucar e, depois de alguns minutos, atalhou:

— Que fé coisa nenhuma, ele gosta do Senhor porque é rico. Veja como a mesa dele é farta, veja as roupas de lã alvíssima, a casa de pedra em que vive! Nenhum rico amaldiçoa a Deus, mas aposto que se o Senhor o fizer ficar pobre ele o xingará.

— `Tá apostado! Se eu ganhar você me devolve sua beleza?

Esta foi a primeira aposta feita por Jeová naquele “dia”, mas não a primeira. Satanás sabia muito bem que ele não sabia perder, mas fora criado com uma insaciável ambição. Por isso engoliu em seco, hesitando topar, mas tinha tanta certeza de que humanos, especialmente os do Antigo Oriente Médio, eram umas bestas que topou:

— Se eu ganhar eu quero um terço das estrelas do céu.

— Fechado. Mas não tire a vida e nem a saúde de ninguém, somente riquezas. Você disse que ele me amaldiçoaria se ficasse pobre!

Satanás desceu do céu com a missão de acabar com a riqueza de Jó e fazê-lo blasfemar. Começou a trabalhar logo que chegou a Uz. Arranjou uns capangas barra-pesada que atacaram os campos de Jó, roubando as reses e degolando os empregados. Depois uns anjos vingadores que eram amigos seus reuniram umas nuvens e trouxeram granizos e coriscos para matar as ovelhas e cabras. Estas deram um trabalhão, pois esse bicho ruim não morre fácil: foi preciso um meteorito de meia tonelada no meio da testa de cada uma, mas finalmente morreram, bicho ruim de morrer que é cabra! Por fim as caravanas de Jó foram atacadas e saqueadas por caldeus.

O pobre homem ficou mais pobre que Jó, digo, ficou pobre! Vocês entenderam. Mas continuou tranqüilo, ao lado da mulher e dos filhos. Satanás ficou fulo, mas não tinha mais nada a fazer, porque Jeová já estava com seu Olho-Que-Tudo-Vê bisbilhotando para ver se ele não trapaceava. Voltou ao Céu e teve de entregar sua beleza ao bondoso e onipotente Deus-Pai. Como resultado, virou um bicho esquisito com uma pelagem que parecia de rato, asas que pareciam de morcego, cabeça que parecia de cabra e todo torto. Os anjinhos lourinhos riam dele (como são maus os inocentes anjinhos lourinhos e como Satanás desejou empalar cada um deles e pôr para assar numa fogueira). Enquanto chorava de raiva, Jeová se gabava:

— Tá vendo como Jó é cheio de fé!?

Satanás vociferou entre dentes que haviam ficado fedidos e pontiagudos:

— Mas também… Riquezas vêm e vão e, se ele tem fé, talvez imagine que um dia ganhará de novo. Mas se ele perder a família, que é algo que não se ganha de novo, daí ele ficará triste e vai xingar o Senhor.

— Aposto que não!

— Então tá, eu quero ter um rabo gordo e com uma ponta de flecha no fim se ele não te xingar quando eu matar todo mundo da casa dele!

— Tá feito! Se você ganhar, ficará com um terço das estrelas do céu, embora isso não tenha valor algum porque nós dois sabemos que o céu é só uma abóbada sobre a terra e as estrelas são faisquinhas sem graça que eu pus lá brilhando.

E assim Satanás desceu do Céu pela segunda vez, cheio de ódio, disposto a foder com Jó como pudesse para fazer aquele palerma blasfemar logo. E para não ter trabalho, assim que Jó saiu de casa para trabalhar (em sua nova rotina, trabalhava de 7 às 17 para sustentar a casa), mandou um terremoto que fez a casa cair e matou os seus filhos, genros, noras, netos e também um ricardão que andava por lá. Sobraram apenas Jó e sua mulher, que já era uma senhora de meia-idade.

Com esta catástrofe muitos teriam blasfemado, mas Jó era um sujeito muito zen (ainda que vivesse milhares de anos antes da existência do Japão). Deu um grande suspiro, chorou, chorou, mas não amaldiçoou a Deus.

Satanás, é claro, ficou “pluriputo” da vida, mas nada podia fazer. Pensou em fugir e se esconder debaixo de uma pedra em Plutão, mas Jeová já o tinha visto. Veio chegando, arrastando a sandália na areia, com as mãos para trás, todo irônico, falando com um curioso sotaque mineiro:

— Pois é, Satã. Ó só, o home num xingou não…

Satanás exalou um suspiro de auto-piedade e Jeová, num gesto rápido, puxou um pêlo da bunda do ex-anjo e criou uma cauda longa, grossa, molenga, vermelha e com uma ponta-de-flecha no fim.

Humilhado e sedento de vingança, Satanás soltou os cachorros:

— Mas também você fica trapaceando! Não pode tocar no Jó! Não pode! Puta merda! Enquanto aquele £¢³¬{¢{%@ estiver com saúde vai tolerar tudo! Olha só, ele virou o guru daquela gente! Todo mundo acha que ele é santo porque aguenta tudo calado! Ainda lhe resta saúde e dignidade e isso é suficiente. Se bobear ele vira profeta até! Mas retire sua saúde e faça o povo perder o respeito por ele que ele vai xingar o Senhor e todas as hostes do céu!

— Você acha?

— Acho!

— Aposto que não!

— Aposto que sim, mas só se você me der poderes quase iguais aos seus e me deixar dominar a Terra para sempre! Quero ser Senhor do mundo inteiro!

Num ato indigno de um ser onisciente (e ainda menos digno de um ser sumamente bom), Jeová consentiu que Satanás sacaneasse Jó pela terceira vez, apostando contra a fé de Jó a sorte de todo um planeta e de todas as futuras gerações de pessoas e animais.

E assim Satanás desceu do céu com a missão de acabar com todo o respeito de que o pobre Jó ainda gozava. Fez com que ele adoecesse de uma moléstia que causava bolhas fedorentas e urticária pela pele, além de purgar pelos cantos dos olhos. Coçava tanto que ele só conseguia ficar nu se raspando com um caco de telha. Para aliviar a coceira, ele chafurdava numa poça de lama como um porco. Seus cabelos caíram e, como ficava nu, todo mundo percebeu que ele tinha um bilau pequeno.

As pessoas começaram a achar que ele estava doido ou, pior, que ele tinha secretamente cometido um imenso sacrilégio para que os deuses o ferissem tanto. Assim ele perdeu todo o respeito e os seus discípulos e amigos o abandonaram. As crianças riam dele. Sua mulher fugiu de casa com um entregador de kebab. Mas não antes de humilhá-lo publicamente dizendo:

— Veja só o que aconteceu, caro Jó. Perdeste fortuna, família, amigos, saúde e até o respeito de teus semelhantes. Olha que vida miserável estás levando neste poço de lama. Ninguém merece viver assim, nem o pior dos criminosos. E tudo isso foi teu Deus maluco que causou, ou deixou que alguém causasse. Amaldiçoa esse tirano ingrato para ele te mandar um corisco na moleira e te matar, porque só morrendo para ficar livre desse seu Deus.

Jó se recusou a amaldiçoar a Jeová, mesmo porque isso não impediria que sua esposa o abandonasse. E assim perdeu a última pessoa que tinha ao seu lado.

Somente três amigos permaneceram fiéis. Compadecidos da desgraça de Jó, foram conversar com ele. Ao ver o estado em que o amigo estava os três ficaram tão chocados que levaram sete dias tentando criar coragem para chegar perto e puxar assunto.

Mas ele resistiu longamente às ponderações dos seus três melhores amigos, por mais sete proverbiais dias, até que, por fim, com a cabeça confusa de tanto argumento para lá e para cá — e também um tanto oca pela fome e pelo sofrimento — acabou cometendo uma blasfêmia “técnica”, que é algo mais ou menos como um “jogo perigoso” do futebol. Deus viu o seu pé alto e não gostou.

Sim, ele blasfemou por causa de um deslize com as palavras. Não xingou a Deus, mas duvidou de sua bondade, dizendo que não poderia ser por própria culpa que sofria:

— Ó Deus, foste tu que me atiraste aqui nesta lama, e não me ouves quando te peço piedade. Não posso fazer nada contra o teu poder, mas por que tu atacas a um pobre mortal como eu? Terei cometido algum pecado grave sem o perceber? Mas se é contra mim que diriges sua ira, por que mataste meus filhos e meus empregados?

Do céu Jeová contemplava tudo com um interesse de voyeur. Quando Jó blasfemou, Satanás, que estava ao lado do Senhor dos Exércitos, caiu naquela gargalhada que seria imortalizada pelo cinema:

— Uauhahahahaha!

Jeová ficou vermelho-roxo-verde-abóbora.

— Pague a aposta, Pai!

Diante dos milhares de anjos que o olhavam, Jeová não teve como fugir. Cedeu a Satanás um terço de seu próprio poder.

— Muito bem, e agora vou lhe fazer “Senhor do mundo”.

Satanás saltitou sobre seus cascos de bode, todo feliz, achando que tinha ganhado, mas Jeová o agarrou pelos chifres e o atirou no mundo com tanta força que destruiu a Atlântida. E do alto do céu lhe gritou:

— Você queria tanto o mundo! Pois bem, vais ficar preso nele para toda a eternidade, Surfista de Prata!

Sangrando e ainda tentando curar suas muitas fraturas e dentes caídos, Satanás olhou para cima e perguntou:

— Quem?!

Jeová mordeu a língua:

— Desculpe, o incompetente do escritor confundiu as historinhas.

Tendo feito isso, resolveu tentar limpar a cagada toda que tinha feito. Desceu do firmamento a bordo de uma tempestade das mais tonitroantes e foi parar no Oriente Médio, vociferando:

— Vou mostrar a essa cambada quem manda no pedaço!

Chegou na terra de Uz ainda quente de raiva. Jogava coriscos para todo lado, relampejava, esbravejava e fazia chover como nunca chovera lá. De fato, quase nunca chovia lá. Para completar, causou uma erupção vulcânica e derrubou um meteoro. Depois de meter medo até nas pedras e fazer com que as pessoas fugissem para suas casas ou se entocassem em cavernas, assumiu uma forma apresentavelmente humana—apesar dos cabelos de fogo, dos olhos chamejantes, do tamanho descomunal e de uma nuvem escura para esconder sua face—e apareceu diante de Jó e seus amigos, que estavam acovardados como coelhinhos num canil.

— E então, fiquei sabendo que havia uns carinhas por aqui duvidando de minha sabedoria, onipotência, justiça e blá-blá-blá…

Três sorrisos amarelos cumprimentaram o avatar de Jeová:

— Quê é isso, Senhor. Imagina… Vossa magnanimidade é reconhecida pelos quatro cantos da terra. Vós brilhais com justiça e…

— Calem a boca, seus puxa-sacos falsos!

Fez um silêncio total na galáxia.

— Vocês se acham inteligentes? Quem vocês pensam que são para acharem que sabem alguma coisa, suas amebas? Por acaso já contaram as estrelas do céu e os grãos de areia da praia? Hem? Hem? Hem? Pois é, fui eu quem criou a terra, enchi os rios, fiz a serra e não deixei nada faltar! Eu sei de tudo, eu sou quem sou, eu sou o oni-plus-ultra. E vocês são nada! Vocês são uns macacos pelados que ainda nem saíram da Idade do Ferro! Como ousam querer entender os meus desígnios secretos?

Tendo assim exibido sua pirotecnia e feito todo mundo sair cagando de medo, completou:

— Muito bem, Jó. Para lhe provar que eu sou-quem-sou, que eu mando e desmando, faço e desfaço. Vou desfazer tudo o que lhe fiz!

— Ó Senhor dos Exércitos! Vós sois mui justo e mui amável! Magnânimo! Ave!

— Tá, pára! Eu já sei que você só diz isso porque eu estou te pagando!

Jó calou a boca, para evitar que Jeová se enfezasse e mudasse de ideia. Depois de se ajeitar na nuvem, começou a arrumar as coisas.

— Fica saudável!

Jó ficou imediatamente curado de suas pústulas, de um princípio de cirrose que desenvolvera no tempo das vacas gordas entupindo a cara de vinho e cerveja e ainda ficou livre de umas cáries e gengivites. Sua pele ficou mais fresca que uma casca de pêssego.

Jeová olhou para Jó e acrescentou:

— Fica limpo também que você está fedendo mais que um porco suado!

Imediatamente apareceram uns anjinhos que lavaram e perfumaram tanto o pobre Jó que a Terra de Uz ficou cheirando a Jó por cinco séculos.

Jeová olhou de novo, pensou um pouco, olhou para um lado e para o outro para ver se não tinha ninguém olhando e fez o pinto do Jó crescer seis centímetros. Vendo isso Jó caiu no chão de Joelhos dizendo:

— O Senhor, eu não sou digno de tanta bondade!

— Se não parar de me bajular eu o deixo careca!

Jó imediatamente calou-se.

— Pois bem, aparece aí um cabelo… louro… liso…

— Muito bem. Terminei com você!

— Mas Senhor! Vai me deixar pelado aqui no meio do povo? Isso não é pecado?

— Humpf!

E ao resmungar isso, Jeová fez com que Jó se tornasse não apenas o homem mais bem-vestido do Oriente Médio, mas também o mais sortudo para ganhar dinheiro.

— Agora, Jó, vamos trazer de volta a sua família.

Depois de fazer Jó ficar jovem, bonito, louro e rico, Jeová começou a caçar um jeito de trazer de volta da morte os filhos, filhas, escravos, camelos, ovelhas e cabras do Jó—enfim, todos os seus bens materiais. Mas não se lembrava de jeito nenhum de como fazer. Pediu licença a Jó um minutinho e foi até sua nuvem, pegou seu celular e ligou para Satanás:

— Satã. Eu estou achando que eu lhe passei por engano o meu poder de trazer os mortos à vida… Dá para você me devolver? Eu vou precisar dele para cumprir a promessa que fiz aos judeus… sabe como é…

Satanás gargalhou de novo e desligou. Então Jeová voltou da nuvem meio sem jeito e disse a Jó:

—  O negócio é o seguinte, Jó. para deus nada é impossível, mas ao mesmo tempo é contra as minhas regras trazer alguém de volta da morte. Isto só será possível no Juízo Final, entende?

O pobre Jó, que já estava sentindo o gosto de ter de volta seus queridos filhos e filhas, começou a chorar.

— Ora, o que é isso, Jó. Eu vou te compensar. Você vai ser sete vezes mais rico do que antes, os seus novos filhos e filhas serão mais bonitos que os primeiros…

Jó não estava nem um pouco preocupado com isso:

— Senhor, eles não tinham culpa de serem feios, eu os amava mesmo assim!

Então Jeová se lembrou que não passara a Satanás um poder para o qual nunca dera grande importância. A um gesto de seu dedo, ele “secou todo pranto e toda lágrima” de Jó, fazendo-o esquecer de sua mulher infiel e dos filhos mortos.

— Agora, Jó, você vai voltar ao convívio dos homens, vai encontrar uma mulher mais nova e mais bonita e vai ter outra penca de filhos.

E o Jó, o Zumbi feliz desceu para a cidade de Pasárgada cantando aleluias e lá pôde ter a mulher que quis na cama que escolheu.


13
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 15:32link do post | comentar | ver comentários (3)

“Severo Snape” (nome fictício) era proprietário de uma empresa que ia razoavelmente bem. Era, no entanto, dotado de um ego maior do que sua grandeza e de uma insegurança que lhe obrigava a reinar sozinho. Por isso tratava de aproveitar-se do poder de todas as formas, submetendo seus empregados a um regime de intimidação e represálias, cuja principal finalidade era impedir que algum deles se destacasse mais que o proprietário. Era também amante de três funcionárias (e supostamente de um funcionário também). Seus relacionamentos se misturavam ao serviço, pois dava privilégios a quem lhe dava e distribuía todo tipo de benesses e influências e aumentos de forma a privilegiar seus protegidos.

Como o clima na empresa era ruim, a rotatividade dos funcionários era alta. Toda semana havia alguém que não aguentava e se demitia ou não suportava mais e era demitido. Toda semana chegavam novos funcionários e a empresa ia seguindo. Não crescia, mas continuava. Ela era grande o bastante para ser atraente e havia sempre jovens ingênuos dispostos a entrar. Não perdia dinheiro, mas faturava menos do que poderia.

Um dia Severo desapareceu. Surgiram boatos de que teria sido forçado a vender a empresa para pagar dívidas. Reapareceu dias depois, usando o humilde uniforme dos auxiliares de escritório, para espanto de todo mundo. Que obra do destino obrigara o antigo ogro a arranjar um emprego reles na própria empresa que um dia fora sua?

Os primeiros dias foram de incredulidade. Ninguém acreditava que fosse verdade. Na surdina todos comentavam com cem por cento de certeza informações de que tudo não passava de uma farsa. Mas à medida em que foram se acostumando com a situação, os empregados começaram a se sentir mais à vontade. Mesmo os mais céticos passaram a duvidar do ceticismo. Por fim, algumas das vítimas do tirano caído aproveitaram para ir à forra do, xingando-lhe de nomes ou armando-lhe arapucas diversas. As suas amantes se recusaram: sem o dinheiro o homem está reduzido à sua idade e à sua feiúra. Seus poucos amigos, embora inicialmente fieis, começaram a ficar incomodados com o fato de que, mesmo empobrecido, ainda esperava ser tratado com a mesma deferência de antes, chegando ao cúmulo do “você sabe com quem está falando?”. Como antes, quando obtinha o respeito pelo terror.

Depois de nove dias o clima na empresa era de balbúrdia. Todas as regras um dia estabelecidas por Severo eram ativamente quebradas. A disciplina tinha desaparecido. Para tentar defender a empresa os diretores amigos de Severo tiveram que tomar atitudes com as quais ele não poderia concordar, uma delas dizer que se ele não se enquadrasse como empregado e fizesse o seu serviço teria de ser demitido.

Foi outra semana de caos generalizado. Mas, enfim, as coisas pareciam encaminhar-se para uma solução. Então, subitamente, ele apareceu na cadeira da presidência de novo.

Começou a caça às bruxas. Demissões em massa. A linha de montagem ficou paralisada por falta de braços enquanto eram contratados novos empregados, ou treinaods em suas funções. Diretores foram escorraçados simplesmente porque não haviam sido subservientes ao auxiliar de escritório Severo durante as três semanas.

«Eu fiz tudo isso para testar quem seria fiel a mim na adversidade — ele dizia — e descobri que ninguém foi.»

Sozinho em sua sala, sem amantes e sem amigos, Severo voltou a tiranizar a empresa, sem se importar se isso era bom ou não para os negócios. Na sua solidão a própria sobrevivência do negócio se tornava secundária. A conjuntura não lhe dizia nada, apenas acreditava que tudo ficaria bem no fim:

«Meu negócio cresce sozinho. Essa empresa ganha dinheiro praticamente sem precisar fazer nada.»

Ao fim de dois anos a empresa hoje possui imensos estoques de produtos que ninguém quer comprar, a sede está cada vez mais arruinada e pouca gente aparece para realmente trabalhar. Severo não vai à linha de produção, apenas crê que os milhares de empregados registrados estão fazendo bons produtos e os novos diretores, raramente presentes, estão sempre em viagem de negócios, fazendo preciosos contatos.

Alguém lhe recomendou que usasse óculos, ele finalmente acreditou que poderia estar enxergando errado, e saiu pela porta da fábrica um dia, grisalho e tateante, em busca da visão perdida, deixando para trás o deserto de um antigo sonho, as ruínas de coisas que poderiam ter sido.

Requiescat in pacem, Severus.


30
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 00:30link do post | comentar

Para autores, em sete lições

  1. Não os escreva.
  2. Se porventura acabar escrevendo algum, jogue-o fora.
  3. Se por razões pessoais não conseguir jogá-lo fora, esconda-o.
  4. Se tiver de publicar, não faça de seus amigos os seus fregueses. Amizade e negócios não combinam.
  5. Se vender a amigos e eles elogiarem, não peça detalhes. Evite a decepção de descobrir que estão elogiando porque são amigos, mas nem leram.
  6. Somente se pedir detalhes (oh, ousadia!) e eles disserem coisas que fazem sentido, suspeite que o livro seja mesmo bom.
  7. Nesse caso, chore os que jogou fora.

Para leitores, em dez lições.

  1. Leia a sinopse. Se a sinopse já é um ruim, imagine o livro.
  2. Não ligue para o prefácio. Prefácios são escritos por amigos, ou por alguém pago para isso.
  3. Desconfie dos livros que têm longas introduções e apêndices, a menos que o nome do autor seja John Ronald Reuel Tolkien. Se precisam de muita explicação, é porque não conseguem explicar-se por si mesmos.
  4. Antes de ler um livro de setecentas páginas escrito por um desconhecido, escreva aquele livrinho de cem páginas que ele também escreveu. Quem escreve mal um livro de cem páginas, dificilmente se sairá melhor num outro mais longo.
  5. Evite livros que tentam atingir vários públicos ao mesmo tempo. Imagine um automóvel ao mesmo tempo econômico, compacto, fora-de-estrada, familiar, de luxo e esportivo.
  6. Desconfie de livros ambientados em lugares inventados: é um truque fácil para esconder a preguiça de pesquisar sobre lugares reais ou a falta de vivência real do autor.
  7. Quando o autor diz ostensivamente que o livro é resultado de anos de trabalho, ele está implorando que você goste.
  8. Desconfie de apelos emocionais (livros que falam de algum lugar pobre, da guerra que está na moda ou de lugares recentemente focados pela “caridade” internacional.
  9. Fuja de livros que têm muitos erros de ortografia. Se a editora não corrige o que é mais fácil de detectar, então esqueça revisão estilística, aconselhamento editorial ou uma política de seleção focada na qualidade.
  10. Nenhum livro de auto-ajuda presta. Eu disse “nenhum”. Isto inclui este em que você está pensando e também aquele que mudou a sua vida, e também aquele que todo mundo leu. Se acha que presta, talvez seja hora de variar suas leituras. Quem só come arroz provavelmente não imagina o gosto que feijão tem.

22
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 23:08link do post | comentar

Para mais aforismas, cliquem na categoria “aforismas”…

  • Não há maneira controlada de fazer uma grande mudança. Saia batendo a porta, queime a ponte depois de cruzar o rio e só depois pense no caminho. De muito juízo o inferno da inércia está bem alimentado.
  • O dinheiro compra tudo, mas quem faz a lista é você.
  • A lógica do mercado de trabalho moderno se baseia no simples princípio milenar a que um romano clássico chamaria Lex silvestris. Em essência funciona assim: existe algo a ser feito e pessoas que devem fazê-lo. Alguns que terão contratempos e outros que não os terão. Os primeiros concluirão o trabalho e os segundos e para os segundos não há esperança: o mundo é de quem realiza e não de quem teve os motivos mais justos do mundo para ficar a 1% de realizar.
  • Existem homens neste país ganhando salários superiores a dez vezes o do Presidente da República apenas porque sabem chutar uma bola. Se alguém neste país estivesse ganhando um milhão de reais para fazer poesia seria um consenso na sociedade o absurdo de tal situação.
  • Não confio em pessoas que acham que eu devia gastar mais dinheiro. Se a tecnologia torna possível gastar apenas determinado valor, então qualquer preço superior a ele se torna uma exploração e quem o paga é um idiota ou um oprimido.
  • Deve ser algo terrível o poder absoluto. Apesar de todas as tentações e da possibilidade de satisfazê-las, sempre existe a possibilidade de que você o obtenha como Kadhafi e se torne no fim alguém como Kadhafi. Eu não desejo isso para mim nem para ninguém.
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Muammar Kaddhafi, de jovem coronel bonitão a velho decrépito com cara de múmia e alma de bicho-papão. O poder absoluto não apenas corrompe absolutamente como transforma um cara aparentemente normal em um bundão brocha que anda cercado por quarenta mulheres guarda-costas e manda matar todo mundo que não o ame. Teria sido melhor continuar coronel, Sr. Kaddhafi.

18
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 21:26link do post | comentar

Estou me revelando um verdadeiro vidente. Preciso urgentemente de um programa de televisão onde botar tarô e ganhar dinheiro dos trou…, digo, dos aficcionados por ocultismo fazendo minhas predições. Hoje é dezoito de março e eu já emplaquei vários notáveis acertos em minhas previsões de Ano Novo, embora tenha tido um lamentável problema de canalização das energias astrais que fez com que eu interpretasse ao contrário duas previsões.

Vamos a uma análise parcial!

Acertos

Silvio Berlusconi fará declarações polêmicas, que irritarão os líderes de outros países.
Essa era “batata” desde o começo. As recentes declarações do primeiro ministro italiano, segundo a qual teria transado com 33 prostitutas em um único mês causaram celeuma na Europa. Dizem que a moda do cinto de castidade será relançada na próxima Semana da Moda de Milão.
Os baianos afirmarão ter inventado um “novo ritmo” que, no entanto, será igual ao pagode e só terá um passinho diferente na dança.
É o rebolation, tion, tion!
Haverá golpes de estado na África.
Taí para quem duvidava de minha mediunidade. Não houve um só, houve TRÊS! Tunísia, Egito e Costa do Marfim. E o da Líbia segue a caminho. Com alguma sorte haverá um também em outro lugar.
O resultado do Carnaval carioca será muito polêmico.
Um incêndio no barracão da ex-campeã, que se suspeita tenha sido criminoso, e uma campeã vaiada no desfile das campeãs. Bota polêmica nisso e podem me convidar para aparecer na televisão que eu prevejo mais que a Mãe Diná!
“Lula, O Filho do Brasil” não vencerá o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Considerando a atual onda de chamego entre Brasil e EUA (a Secretária de Estado americana chegou a dizer numa entrevista coletiva que o nosso Chanceler é “um homem lindo”) eu fiquei até com medo de que fosse falhar, mas os astros não me abandonaram. Eles tinham razão.

Imprecisões

O Flamengo anunciará planos de contratar pelo menos uma grande estrela do futebol internacional, mas não vai contratar ninguém.
Os astros só me mostraram a história até o momento em que o Grêmio preparava a festa para Ronaldinho. Depois desse momento a bola de cristal saiu do ar e eu precipitadamente achei que não precisava voltar a sintonizar de novo. Inexperiência de vidente de primeira viagem.
O papa dará uma declaração sobre planejamento familiar.
Que o papa daria uma declaração envolvendo as famílias e que isso seria polêmico os astros me contaram, só que eu interpretei errado: não era sobre planejamento familiar, mas sobre doações de órgãos. O chanceler do Vaticano declarou que o papa Benedito XVI não poderá doar os seus órgãos se morrer (não que alguém esteja interessado em seu decrépito coração) porque (ehem!) “caso ele seja declarado santo postumamente os tecidos doados se tornarão relíquias vivas nos corpos dos receptores”.

Pequenas Observações Desinteressantes

Caso não tenha notado os links no post, seguem as explicações.

1. Muito embora a gramática oficial insista que “hoje são” dezoito de março, eu insisto que “hoje é“ pelo simples fato de que eu considero implícito no contexto que hoje é [o dia] dezoito de março.

2. Como se sabe, o nome latino do papa é “Benedictus”, em italiano “Benedetto” e em inglês é “Benedict”. Ainda que em português o nome “Benedictus” tenha resultado em dois nomes diversos (“Benedito”, pela via erudita, e “Bento”, pela via popular) é meio estranha a escolha deste nome, porque demais papas que o escolheram eram chamados de Beneditos, e não de Bentos. Suspeito que houve uma certa dose de preconceito, envolvendo São Benedito. Mesmo porque, se a preferência fosse pelo nome popular, o papa São Sisto deveria ser chamado de São Xisto.


01
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 23:28link do post | comentar

Aonde quer que vá, tudo sempre igual: pessoas agindo comicamente e ele, aliviado por não ser bobo como elas, sentindo por dentro a nódoa de inveja pela felicidade irresponsável que podem ostentar enquanto ele arrasta a solidão, apenas ocasional e temporariamente minorada por relacionamentos passageiros.

Impossível, por exemplo, brincar o carnaval. Basta um bloco de sujos para sentir até vontade de rir daquelas fantasias e caretas estúpidas que fazem. O “Bloco das Piranhas” não lhe faz apenas vontade de rir: dá-lhe horror ver aqueles marmanjos vestidos e maquiados como fêmeas e dizendo indecências. Um amigo dizia-lhe uma vez que “em nossa cidade só se veste de mulher no Carnaval quem é bicha mesmo”. Uma das grandes vergonhas de sua vida é justamente ter saído fantasiado de Batman quando criança.

Beber álcool é algo que evita rigorosamente, por medo de ostentar no rosto os risos imbecis que os bêbados deixam escapar. Lhe enjoa pensar em sair pelas ruas como o famoso bêbado municipal, patrimônio do submundo local. A decadência personificada.

Quando à noite na rua, fica sentado no banquinho do bar, bebendo tônica com gelo e limão — sem perceber nisso nada de ridículo — e tentando paquerar alguma abstêmia, não-fumante e discreta que aparecesse por lá. Como nunca aparece, acabava com alguma alcoólatra, fumante e piranha, só por um corpinho bonito e o prazer mais proibido…

Aí, outro calvário. Nada épico, é claro: apenas a pequena e autêntica tragédia pessoal dessas pessoas sem grandeza e seu leve desespero que as faz sofrerem ridiculamente. Ao lado de seu amor, passa por situações que o expõem a todos os ridículos que antes pretendia evitar até às últimas conseqüências.

Se antes achava ridículo casais beijando-se em público com ardor de endoscopia, tem de aceitar, não sem um pequeno prazer, esta parte do script, exigida pelo ritual humano de acasalamento. Achava mortalmente estúpido uma mulher usar roupa de menos, mesmo no inverno? Agora se vê quieto ao lado de uma que as usa tão minúsculas que parecem trajes de banho ou retalhos de costura.

Um belo dia, depois de sucessivas tragédias o fim do amor sempre anunciado é real. E lá está ele de volta ao bar com a mesma cara e o mesmo ar de toalha-de-mesa. Sozinho com a água tônica e refletindo sobre as peças que a vida prega.

Depois de algumas semanas se desintoxica da vida e retorna à sua inerme abstinência de álcool e de sexo. Então volta a ser de novo a figura estranha que assombra nossas noites. Às vezes acontece-lhe ver o tal Beto Tomás, o “bêbado municipal”, a coisa mais parecida com um junkie que se pode encontrar no interior. Como sempre sujo e bem humorado em sua desgraça risível e inútil.

Pergunta “como vai?” a todos os rostos conhecidos que encontra e responde, se alguém lhe devolve um “e você?”: “entrado em ânus”. Nisso dá sua gargalhada e todos que estão em torno, por um momento, se esquecem da desgraça, da doença e da deformidade e riem dele.


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