Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
11
Mar 13
publicado por José Geraldo, às 22:45link do post | comentar
Marina leva a xícara aos lábios e, ao vê-los refletidos no café negro, se despe da dureza que vestiu nos últimos meses. “Que falta me faz a Luísa” — confessa em voz alta, sabendo que não há ninguém perto para ouvir.

O último diário de Luísa jaz sobre a mesa do café, ainda lacrado. Justamente neste momento Marina está refletindo sobre o que ainda não leu, enquanto lembra o que viveram.

Um mês da morte de Luísa. A gente não se acostuma com isso, acho que nunca nos acostumamos. Para Marina foi um mês de desinteresse da vida, um mês de purgatório em que mecanicamente foi de casa ao trabalho e vice-versa.

No verso da capa está anotado um telefone, em letras grandes, gordas, escuras, difíceis de não ver.

“Ela queria que eu ligasse” — pensa Marina. “Mas eu não vou fazer isso de jeito nenhum.”

E sorve um gole de café.

O dia tinha sido intenso. Trabalhara como poucas vezes. Apenas a amiga cafeteira a entendia, e lhe fazia um café negríssimo em poucos instantes, para acordá-la para a noite. Hora de terminar o café, começar o banho, continuar a vida.

Ouviu o interfone justamente quando depositou a xícara na mesa. Uma sincronicidade dessas que a vida tem. Tentou ignorar, ele insistiu. Adiou o ritual diário de purificação e foi atender o aparelho ainda com a alma sofrida.

Ricardo.

— Luísa me pediu que a procurasse. Aqui é o Ricardo, lembra de mim?

Marina já tinha pensado que sim,  mas também que gostaria de esquecer. Estava preparada, só que não.

— Sobe, Ricardo.

Abriu a porta quando escutou os passos no corredor. O impacto denunciava que ele ainda continuava com a moda estranha daquelas botas de salto, estilo vaqueiro de cinema. Era ridículo, mas às vezes não era.

— Boa noite, a Luísa me pediu que te procurasse.

Marina franziu o cenho.

— Quando? Tantas semanas…

— Antes, claro.

— Para que?

— Bem. Fomos as pessoas de quem ela mais gostou. Seu namorado, a melhor amiga.

“Ele não sabe de nada”.

— Acho que você está enganado. Estávamos rompidas desde meses. Discussão muito séria. Eu disse coisas feias, ela saiu daqui muito magoada comigo. Não creio que eu fosse mais sua “melhor amiga”.

— Não foi o que ela me disse. Na carta que mandou, disse que lhe amava muito e que entendia o modo como você se sentiu.

Os olhos dela brilharam.

— Uma carta? Ela escreveu?

— Sim.

— Posso ver?

— Não. Ela pediu que eu queimasse.

Marina engole em seco. Mas não deixa transparecer. Uma carta somente para os olhos dele, coisa de filme de espionagem. Somente a mentalidade infantil de Luísa pensaria nalgo assim.

— Acredito que nós temos coisas muito importantes a dizer um ao outrohellip; um dia. Ainda é cedo. Vamos deixar que o tempo pense, que Luísa ache descanso e que nós nos ponhamos as cabeças no lugar. Depois vamos ver o que há para dizer.

— Eu vim em busca de respostas. A carta só tinha perguntas.

— Isso, infelizmente, não posso dar. Todas as que tenho provavelmente são as que você já teve, ou as que você não quer.

Marina viu os olhos de Ricardo se aquecerem por um momento e se lembrou do esforço que devia custar ao pobre estar ali, falando-lhe  naquele tom. Principalmente se suspeitava de algo. Ele não era um cara passivo e honesto, desses que sabem esperar a vez. Somente o choque da morte de Luísa o amansava o suficiente para esperar no umbral da porta, sem meter o pé e entrar à força. Mas, de algum jeito, Marina tinha dó dele não entrar.

— Olha, meu bem, vamos fazer o seguinte. Você volta para sua casa e nós deixamos alguns meses se passarem. Eu ainda não me sinto pronta para conversar a respeito da Luísa e posso ver perfeitamente que você também não está. De acordo?

Ele fez que sim em um gesto breve. Aliviado.

— Tudo bem. Mas quando?

— Te convido a vir tomar um chá aqui em casa dentro de três meses, ou nunca. Pode ser?

— Três meses ou nunca?

— Se dentro de três meses você não quiser mais conversar comigo sobre a Luísa, então terá sido melhor assim.

— Talvez tenha razão. Combinados.

“Ele topou” — Marina sorriu — “e ganhei tempo.”

Ricardo despediu-se educadamente, apesar de não ter sido sequer convidado a entrar, e desceu a rua sem olhar para trás.

Quando ele terminou de descer as escadas, ficou olhando brevemente para o branco da porta recém pintada. Para cobrir a tinta cor de rosa que Luísa sugerira. Estendeu o braço e arrancou com a unha um naco da pintura, revelando a cor antiga, dolorida ainda.

Tinha sido somente naquele dia, pela manhã, que tivera alguma aventura alheia à rotina. Antes do serviço passara no correio para abrir a caixa postal. Dentro do escaninho estava um envelope grande, contendo a pequena preciosidade. Do lado de fora havia a recomendação: entregar somente em 09 de março. Alguém servira de portador à última vontade dela.

“Que surpresas você reservou para o fim, minha amiguinha?”

Dentro do envelope havia uma caixa lacrada, contendo somente aquele caderno de capa dura, monocromática e escura. Um caderno grosso e grande e sério. Bem diferente dos antigos cadernos de escola, tão coloridos e cheios de fantasia. Uma capa verde-escura. Verde-morta.

Na capa, uma etiqueta adesiva onde se lia “de: 01/01/85 — a: ++/++/++”. As cruzes acrescentadas firmemente com outra caneta, meses depois.

Estava embrulhado em celofane e preso por um barbante. Tivera de romper o lacre cuidadosamente para preservar o papel. Tinha essa mania de tentar abrir embrulhos sem estragar o envoltório. Luísa sabia disso, usara um barbante porque fitas adesivas teriam estragado o frágil celofane.

Na primeira página nenhum título, só um desenho feito com esferográfica. A paisagem parece invernal, espectral, por causa da tinta azul clara de uma caneta velha. Um papel solto cai ao chão. Nele se lê:

“Frutos, dão-nos as árvores que vivem,
“Não a iludida mente, que só se orna
“Das flores lívidas
“Do íntimo abismo.”

Sem assinatura, mas é Fernando Pessoa. Marina sabe de onde o tiraram. Só não desconfia do motivo de estar ali. Nas costas do papel, um telefone.

“Ela queria que eu ligasse, e eu não liguei.”

Leopoldina, 30 de abril de 2005
revisado em 10 de março de 2013
com a harmonização temporal
e inversão da primeira cena para o fim.

18
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 22:00link do post | comentar | ver comentários (2)
Frequentemente me pego repetindo em cochicho o que acabei de dizer em voz alta, se a pessoa a quem disse não continua por perto. Porque se ela estiver, então, costumo dizer a mesma coisa duas vezes, com poucos minutos de intervalo, para enfatizar o que estou dizendo. Geralmente uso uma frase para conectar, e então repito o que havia dito antes, com palavras ligeiramente diferentes, com poucos minutos de intervalo, só para enfatizar o que dizia.

Costumo ter animadas conversas comigo mesmo quando estou só. Estas conversas frequentemente se transformam em discussões, e já houve casos em que realmente fiquei de mal. Durante essas conversas é frequente que eu me diga coisas que não estava pensando ou encontre soluções miraculosamente para coisas que eu não estava sabendo resolver.

Quando estou escrevendo à mão, minha caligrafia muda o tempo todo. Sou incapaz de manter o mesmo padrão de tamanho de letra, comprimento de hastes, inclinação, separação silábica, formato das letras redondas, etc. Em uma mesma palavra costumo empregar dois tipos diferentes de “a”, “s” ou “r”.

Meus livros são ordenados na estante segundo um padrão de tamanhos e cores. Quanto mais alto o livro, mais para a beirada. Se dois livros forem de mesma altura, o de capa mais escura fica do lado “de fora” em relação ao centro da prateleira. Por sua vez, os meus discos são ordenados pela ordem cronológica em que foram lançados.

Devo ser o único bancário do Brasil que trabalha (frequentemente, mas não todo dia) de botinas. Gosto desse tipo de calçado desde que era adolescente e trabalhava na Cooperativa Agropecuária de Cataguases. Eu não tinha dinheiro para me vestir bem, então vivia com jeans velhos, botinas de couro e camisas brancas de algodão. Em meus sonhos eu me tornava um astro da música e esse tipo de indumentária se transformava na nova moda roqueira.

Todas estas pequenas excentricidades convivem com o fato de que sou incapaz de manter qualquer coisa organizada. Desde a minha estante de livros, que eu arrumo semestralmente, até a minha mesa de trabalho.

Esta desarrumação também é agravada pela dificuldade com que me livro de entulhos, bugigangas e velharias. Tenho ainda os carregadores de celulares que estragaram há anos, peças de computadores que nem possuo mais. Cabos e fios e caixas de aparelhos que nem lembro o que eram. Revistas que li uma vez e guardei pensando em deixar de herança para o futuro. Rascunhos de poemas e rabiscos genéricos sem nenhum sentido.

Cada vez que me mudo, tenho de rever esta desordem, e com grande dor no coração me desfaço de uma miríade de pequenas coisas — e me arrependo depois. Até hoje sonho em reencontrar nalguma caixa os dois retratos que fiz a lápis nos tempos de segundo grau, e que só sobrevivem na minha memória. Sem falar dos cadernos onde minhas amigas anotaram versos de Raul de Leôni, Vicente de Carvalho e Fernando Pessoa.

Sei, porém, que estas foram perdas irremediáveis, como as que só se pode ter na mudança. E não adianta ter saudade das casas em que não moro mais, dos livros que doei ou vendi, das palavras que disse e já não saboreio mais na boca, por mais que as cochiche. Por mais que eu lembre de manias antigas, não sou o mesmo que era, as coisas e as casas e as pessoas mudaram. Resta-me repetir palavras, fantasmas do que foi, e relembrar mentalmente  obras primas que não desenho mais.

15
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 15:48link do post | comentar | ver comentários (1)
O homem triste vinha caminhando pela rua, com seu pesado terno de dois mil reais ao mês e sua lista de responsabilidades para penar. Consultava mentalmente em qual próxima casa teria de incomodar quando ouviu as crianças sentadas na calçada, curtindo o vento fresco do fim de tarde:

— Aquela nuvem parece um prato de macarrão.

Olhou na direção apontada pelo dedinho sujo. Olhou fixamente para tentar ver. Outra pequena voz interferiu:

— Aquela outra parece uma cabeça de bode.

Não, definitivamente não parecia com nenhum tipo de cabeça.

— E olhem só aquela lá que está perto do prédio azul!

Todos olharam e caíram na gargalhada:

— É uma bunda com um furúnculo, a bunda do Pedro com o furúnculo.

O homem triste suspirou. Não conhecia a história do pobre Pedro e seu abscesso no traseiro, não reconhecia nenhum formato de nádegas na nuvem que estava perto do prédio que se tornava azul apenas por ter as janelas desta cor.

As crianças continuavam gargalhando ante a visão de uma forma que existia em suas imaginações, e o homem triste, ainda mais triste, com uma vontade louca de largar a mala, despir o terno e mergulhar no rio sujo, como fazia quando criança, lembrou-se da frase dita certa vez por um fantasma no fundo de sua memória:

— Você deixa de ser criança quando toda nuvem passa a ter formato de nuvem.

23
Set 12
publicado por José Geraldo, às 21:31link do post | comentar
Um poema satírico inspirado por uma postagem de minha amiga Ana Feijó da Cruz no Facebook.

Eu juro
Sou de um tempo passado,
em que cupcake se chamava bolinho,
blush se chamava ruge,
van era furgão
sale era liquidação.

Nunca me ocorreu
chamar meu amor de love,
nem referência de benchmark,
nem interessado em stakeholder,
nem artigo de paper
e nem discurso de keynote.

Hoje vivo perdido
comendo cigarrette em vez de enroladinho.
Nunca mais vi jogarem bola ao cesto
e nem futebol de salão.

Acho estranho quando chamam
stickers de adesivos e
entrega em domicílio de delivery.
Especialmente se houver alguma coisa free
nos cookies que compro no shopping.

09
Set 12
publicado por José Geraldo, às 11:57link do post | comentar

A simples sensação de estar em uma cidade muito grande me assusta um pouco. Juiz de Fora é a maior cidade onde consigo me locomover sem ser acometido pelo pavor existencialista de subitamente deixar de existir, graças a uma facada no escuro, um carro bomba ou uma bala perdida. Cidades grandes têm trânsito confuso, motoristas nervosos que, do nada, podem descer de seus carros brandidos símbolos fálicos e ejaculando em projetis sua impotência diante do imenso pé da cidade, que os pisa e achata contra o solo. Cidades grandes têm exércitos de miseráveis famintos arrancando sua sobrevivência como podem, às vezes como não deveriam.

Mas quando ando pelas ruas de uma cidadezinha do interior, mesmo a centenas de quilômetros da minha, a sensação que tenho é de estar o tempo todo andando entre os braços abertos de amigos e parentes. O ritmo da vida vai devagar, como deve ser, ninguém parece andar armado, a não se precauções. Até os miseráveis são menos agressivos, porque são menos agredidos.

Cada vez que vou a um lugar pequeno eu tenho a certeza de que a salvação deste país, e deste mundo, reside na destruição deste monstro chamado metrópole, que encaixota os seres humanos em imensos depósitos numerados.

Salvar o mundo envolve remover o concreto e o asfalto, replantar um pouco da vida verde que havia antes, deixar os bichos pisarem a terra livremente, sem o risco de atropelamento por gente que tem pressa demais, e só um coração. Chamem-me idealista, mas quando eu penso no crescimento das cidades eu tenho medo, o medo que tem quem vê crescendo uma mancha de formato irregular em sua pele. A pele do mundo é como se fosse um pouco a minha pele. E as cidades, que um dia foram somente sardas, estão se transformando em tumores.


29
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 20:40link do post | comentar
A memória especial de a ter beijado um dia
se apagou de mim sem pressa e sem pensar.
Rostos pálidos pintados em paredes brancas,
fadas esqueléticas que voam nuas pelo ar
— o passado é só mais uma entrega que faltou.

Eu podia ter perdido toda esta carne um dia,
e podia ter vendido até a vida desta casa,
mas só deixei levarem os meus sonhos embora
em embrulhos secos, cortados em pedaços
— se eu esquecesse tudo em que cria
então talvez eu poderia entender
a solidez das coisas e suas velocidades.

Espíritos malignos aparecem no terreiro um dia,
parecem vigiar enquanto os vizinhos superiores
armam algazarra no jantar à luz de tela.
Cabeças humanas jazem mudas sobre ombros
e vozes de mortos se expressam, murmuradas,
filtradas pelas paredes finas e o ar espesso.

Endureceu a liquidez com que se transbordava
uma alegria pequenina que ainda se agarrava
nas bordas do penhasco enquanto eu olhava.
Ficou a poça de alegria, tristemente transformada
na imagem da saudade que passou de ontem
e não me vale mais de nada.

As frases se achatam com seu peso contra mim,
ouço enquanto me atingem com essa culpa.
Tudo que passou foi minha arte, tudo parte
e a tarde seca sopra e arde pó vermelho por aí.
E por aí se perde um aparelho antiquado,
incomprimível de já tão pisado, se o encontram
vão achar até que eu queria preservá-lo.

22/11/1995 + 24/08/2012
assuntos: ,

04
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 19:37link do post | comentar
Era 1993 e eu estava voltando da faculdade, tarde da noite. Havia um burburinho de flamenguistas em um bar assistindo Boca x Flamengo. Os argentinos ganhavam por 1 x 0. Aproximei-me receoso para ver o placar e justo quando cheguei os argentinos marcaram. Gritei Goooooooooooooool e de repente me vi cercado de olhares ferozes. Algumas pessoas se levantavam da cadeira. Sebo nas canelas. Mas era difícil correr gritando— Felizmente sobrevivi para contar a história, e sobrevivi feliz!

14
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 19:37link do post | comentar
O velho relógio bate nove e quinze no peitosorrindo para um piano que tocou meu lábiocomo o som áspero da morte que vem perto.Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto,procuro um desvio que retarde a sorte certaque aguarda os relógios, lábios e pianos.Quando achar um caminho errado destes,escondo minutos da espera que não quero.Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa,a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.

12
Abr 12
publicado por José Geraldo, às 10:17link do post | comentar
Um poema escrito em 23 de fevereiro de 2007 e achado num caderno velho, que ia a caminho do lixo, junto com alguns sentimentos de segunda mão.
Eu a ouvi ontem à noitee senti aquele punhal de novo em minha carne,tive saudades suas como tenhosaudades dos pedaços que fui perdendo.Tenho saudades de ter sido sozinho,de ter atravessado sábados sofrendo.Aquele silêncio antigo me faz faltaporque há dias em que não quero falare outros em que precisava de fugir,achar um lugar entre as montanhaspara poder me distrair.Tenho saudades de quem me enganou,quanto maior a mentira, maior a dor,maior a falta, poderia ter durado maise com mais cicatrizes eu tinha mais históriae ninguém sente a dor em seu pretérito.Por que fui tão esperto?Se fosse tolo por alguns dias a maisteria vivido ainda outro dia que lembrar.Ah, na verdade agora é que sou tolo:vivendo como meu um plano alheio,um destino sonhado por meus pais,e o amor laçou-me na planície durante meu galope.Sim, tenho saudades. E do tipo pior.Tenho saudades difusas, que não pertencem a coisas,que não evocam pessoas.Essas saudades de cores assombram minhas cinzas.

18
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 10:00link do post | comentar

Este post foi escrito originalmente no sábado, mas agendado para hoje, domingo, para não encavalar com o outro que já havia sido escrito ontem. Mas tive de escrevê-lo logo após porque o assunto era urgente, não podia ficar para hora melhor, não havia hora melhor. Ontem, sábado, assisti de novo uma peça perdida de meu passado: o dia em que entrevistei Andy Latimer.

Vamos por partes. Andy Latimer, para quem entende de rock progressivo, é um dos nomes mais queridos e importantes da história do gênero. Guitarrista, flautista, vocalista principal e único membro permanente do grupo «Camel», ele é uma lenda viva da música, embora não seja tão famoso quanto outros que tiveram mais sucesso nas paradas. Andy Latimer esteve em turnê no Brasil no ano 2001 e uma das paradas da turnê foi em Cataguases. Sim, você leu certo. Cataguases recebeu um show de um dos maiores grupos de rock progressivo de todos os tempos, lá no Cine Edgard. E eu entrevistei Andy Latimer. Se você consegue acreditar que o Camel esteve em Cataguases, talvez consiga crer que eu fiz mesmo a entrevista.

A loucura foi responsabilidade de Rodrigo «Nômade» Rocha, empresário cataguasense, proprietário da Voltage, extinta loja de discos onde, por muito tempo, eu deixava meu dízimo (mínimo de 10% do salário gasto comprando obras primas da música). Rodrigo descobriu que trazer artistas de rock progressivo renomados não era difícil: além do cachê ser razoavelmente barato, eles em geral eram pessoas acessíveis e dispostas a aventuras, como encarar horas de estrada para ir tocar em lugares obscuros no interior do Brasil.

Infelizmente pouca gente acreditou na época. Sei disso porque ajudei a divulgar o evento e quando eu começava a falar muita gente achava que eu estava brincando. Mas Latimer veio a Cataguases, hospedou-se no Bevile Hovel com a banda, andou a pé pela rua desfilando seus famosos pés tamanho 46 (motivo do apelido “Sasquatch”). E na noite de 22 de março, às 21h00, subiu no palco do Cine Edgard para mais de oitenta minutos de puro delírio musical na presença de uma platéia de cerca de 100 pessoas mais ou menos (que nem chegou a dar metade da lotação).

Acredito que se Rodrigo morresse sem ter feito mais nada na vida ele já teria deixado algo para ser lembrado: levar o Camel a Cataguases foi uma realização estupenda. Feita na base do puro amor à música, sem pensar em ganhar dinheiro, na base do amadorismo mesmo. Isso é algo que deve dar orgulho. Eu, por exemplo, tenho orgulho de minha pequena parte desempenhada: fiz o cartaz, o fôlder (cuja frente, contendo um autógrafo de Latimer, ilustra esta postagem) e fiz uma entrevista com Latimer, que tenho agora transcrita em DVD a partir do surrado VHS que guardei por onze anos na gaveta — e que um dia vou postar no YouTube.

Claro que a entrevista ficou uma porcaria. Eu não tenho boa dicção (nem em português, quanto mais em inglês), não sou repórter, não tinha nenhum roteiro prévio e jamais aparecera na televisão. Então, de repente, eis que me aparece uma equipe da TV Minas que ia fazer uma reportagem sobre o evento. Eles tinham vindo sem intérprete e precisavam de alguém para fazer o programa. Alguém me indicou como um «carinha que manja muito de inglês» e eu, num acesso desses de insanidade que tenho de vez em quando, topei a parada. Não havia roteiro, havia quinze minutos para o fim da passagem de som. Rabisquei algumas perguntas em um pedaço de papel qualquer, com sugestões de pessoas que estavam por perto, passei o pente no cabelo mal e mal e me sentei ao lado de Andy para a entrevista, tentando parecer natural, tentando ignorar a luz forte dos refletores e a presença incômoda daquela luzinha vermelha da câmera, que indicava que estavam me gravando.

Andy percebeu o amadorismo da situação e deve ter se perguntado onde, diabos, estava com a cabeça quando topara aquele show, mas mesmo assim concedeu-nos vinte e cinco minutos, respondendo a perguntas que já devia ter respondido cem vezes ou mais em toda a vida. Mas algumas pessoas me disseram que eu fui bem, apesar de gaguejar várias vezes e ter congelado por dez segundos em certo momento. Fui bem porque resisti a tietar e consegui interagir com Andy, mudando as perguntas de acordo com o contexto das respostas. No fim, apertei a mão de meu ídolo e fui pedir autógrafos.

Esta é uma das histórias que levo pela vida toda, como demonstração inequívoca de que temos de estar preparados para as oportunidades que aparecem, sem medo da luzinha vermelha acesa, sem medo de parecer ridículo como o meu cabelo despenteado.

Naquela noite o Camel tocou com:Andy Latimer: guitarra, vocais, flautaColin Bass: contrabaixo, vocaisGuy LeBlanc: tecladosDennis Clément: bateria

Não tenho o set list, mas sei que o bis foi “Lady Fantasy” (vídeo compartilhado abaixo, com muito medo do ECAD).

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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
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