Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
02
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 22:37link do post | comentar
Minha vida de solteiro não faz anos, faz meses. Melhor assim. A vida é curta demais para a medirmos em anos, décadas, séculos. Melhor pensar em termos mais exíguos. Em termos coisas próximas, curtas, fáceis de levar no bolso da alma como lembrança durante nossas andanças.

Estou solteiro desde que recebi minha promoção. Aluguei um apartamento na cidade onde assumi meu novo posto e minha mulher insistiu em ficar para trás. Primeiro foi para terminar o semestre das meninas na escola, depois para concluir o contrato temporário do emprego que conseguiu, depois para terminar o outro semestre, depois não sei mais o que será. Ela foi ficando e eu venho vindo.

Hoje minha segunda vida de solteiro completou sete meses. Não contei à minha mulher: esta comemoração, obviamente, eu só poderia fazer estando sozinho aqui em casa. Como todos os fins de semana, eu a fui visitar, mas voltei para casa no fim, para trabalhar no dia seguinte e dar seguimento a esta experiência estranha, que eu não tive quando menino.

São muitas as descobertas desta vida. Tentar fazer a própria comida, descobrir qual tipo de produto de limpeza adequado para retirar a inhaca de cada tipo de piso, como montar e desmontar sozinho os móveis para mudá-los de lugar cada vez que cismo de reorganizar as coisas, que veneno jogar nos vãos e corredores para evitar que entrem baratas e outros bichos.

Pela primeira vez na vida estou em uma casa com garagem anexa. Saio pela porta da frente e olho à esquerda e lá está meu carrinho, seus faróis me contemplam tristemente quando saio, implorando-me que o lave. Da última vez que tentei eu molhei todas as paredes e a minha roupa, mas ele continuou misteriosamente empoeirado depois que a água secou. Acredito que os carros, como os gatos, possuem uma aversão à água, que só com alguma habilidade se pode superar. Vou tentar de novo qualquer dia desses quando chegar mais cedo do trabalho, ainda de sol quente, pois não quero me gripar aqui nesta casa solitária. Tenho que me vacinar contra as situações em que desejaria alguém para minha companhia.

Tenho um quintal, também. Por enquanto ele está apenas exibindo um crescimento majestoso de ervas daninhas. Minha sogra, quando veio aqui, detectou a presença de plantas úteis também: batata doce, erva cidreira, hortelã pimenta, alecrim. Tenho dó de jogar herbicida e matar tudo. Comprei botas e luvas de borracha e vou arrancar as ervas com a mão, para preservar as plantinhas boas. Provavelmente terminarei nunca, mas ninguém tem nada com isso. Espero apenas ter sorte de terminar antes que o IBAMA declare meu quintal como “mata nativa em recomposição”.

Eu andava preocupado com a quantidade de insetos que frequentava a casa. Mas eles diminuíram significativamente desde que espargi inseticida pelos corredores laterais, na varanda dos fundos e na parte de fora das janelas. Ou talvez tenha algo a ver com os camaleões que apareceram. Camaleões adoram insetos, e eu gosto de camaleões. Se minha mulher ou minhas filhas estivessem aqui hoje, o pobre bichinho já estaria morto. Eu deixei sobras de bolo para ele. Se até logo à noite ele não tiver comido, vou varrer e jogar na lixeira do quintal para não atrair baratas.

Como a casa está vazia, vou me estimulando a comprar coisas para enchê-la: um capacho para a porta de entrada, um tapete antiderrapante para o banheiro, um baú de ferramentas para pôr num canto, uma mangueira de jardim para a torneira da varanda, aquela com que me molhei tentando lavar o carro. Minha cozinha está cheia de inutilidades úteis: queijeiras, pegadores de macarrão, saca rolhas, abridor de latas elétrico, biscoiteira, lixeira com tampa móvel. Algumas dessas coisas minha mulher nunca quisera comprar, achava-as inúteis quando a gente passava pela ala de utilidades domésticas do supermercado. Mas eu estou comprando de todas, e descobrindo suas utilidades. Coloquei o álcool em um borrifador (tenho três), eliminei o risco de acidentes e descobri como limpar o chão sem precisar enxaguar. Desajeitado que sou, essas pequenas descobertas me poupam tempo e trabalho. Só não consegui ainda descobrir o que vou fazer com tantos adaptadores de tomada e lâmpadas de formatos vários.

Terei, infelizmente, de comprar outro jogo de ferramentas. Não sei aonde foi parar a bolsa de veludo com velcro onde guardava as minhas chaves de fenda e de boca. Estou reduzido a um alicate, uma trena, um estilete e um martelo. Com eles eu monto e desmonto, prego e desprego. Uma beleza.

Mas beleza mesmo foi a faca de açougueiro com cabo de madeira que eu comprei ontem. Cheguei aqui hoje com a belezinha e já fui experimentado. Fiquei quase vinte minutos embevecido com sua eficácia ao cortar queijos (tenho seis tipos diferentes na geladeira), goiabada (experimentei uma fatia com cada tipo de queijo e realmente fica melhor com queijo minas frescal), frutas e até um trapo de pano de chão. Acho que vou comprar outros tamanhos de faca, também. Afinal, se preciso de várias chaves de fenda, de boca e de estrela, é inconcebível que uma faca de tamanho único sirva para tudo. Minha racionalidade masculina me diz que isto não faz sentido.

Esta dificuldade com os instrumentos, aliás. Nunca consegui entender as pessoas que cismam em usar as coisas de forma errada. Colheres são para líquidos, sopas e molhos. Garfos são para comida sólida. Facas são para cortar. Pegadores de macarrão são para pegar macarrão. Minha mãe, porém, punha uma colher para retirar o macarrão. Eu, particularmente, nunca consegui entender como ela conseguia servir-se usando aquela colher. Em minha casa este problema não existe: tenho pegador de macarrão, escumadeira de arroz, colher de feijão, queijeira, boleira, biscoiteira, saleiro, pimenteiro, azeiteiro, bule. Para cada coisa seu vasilhame ou utensílio. Um mundo ordenado, onde as coisas funcionam. Apenas se acumula lixo pelos cantos, copos sujos na pia e sujeira no tampo da mesa enquanto eu não resolvo varrer, lavar e limpar.

28
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 20:44link do post | comentar | ver comentários (1)

Há momentos na vida em que você subitamente se dá conta de que as suas certezas viraram dúvidas, e tudo que era sólido parece poeira ao vento. Então você percebe que não adianta mais lutar, que a luta era uma violência inútil. Melhor render-se ao inevitável, flutuar na correnteza da vida, que todos sabemos para onde vai. Vai-se o anel, para a gaveta ou para o olvido, mas fica a mão inteira, e uma vida que resta.

Hoje foi um destes dias. Sinto-me imensamente triste, mas uma semente de alegria brilha sempre, porque descobrir a verdade, mesmo quando nos fere, é uma libertação. Cá estou nesta casa vazia, com meus raros móveis e meus sonhos — o tudo que me resta. A vida acaba de me roubar um pedaço do passado e um naco de futuro possível, mas não me roubou a esperança, essa coisa que ainda brilha no fundo do baú: pelo menos ainda é cedo.

Entendedores entenderão.

19
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 11:53link do post | comentar

Prólogo para um romance de ficção científica iniciado em 1999, que eu nunca procurei terminar porque descobri que J.G. Ballard já havia escrito uma história parecida demais.

As ruas são perigosas. Sair de casa envolve sempre riscos. Por isso procuramos fortalezas, compartimentos isolados para nossos sonhos estanques. Moro em um edifício preparado para isso. Nele moram comigo cerca de mil pessoas, mais ou menos, todas em apartamentos parecidos, de duas ou três peças. Moramos aqui há mais de quinze anos e mesmo depois aqui ainda estão os que não moram mais: em uma necrópole subterrânea geometricamente organizada. Moramos aqui e mal saímos. Trabalho e lazer podem ser achados aqui mesmo: escritórios, ginástica, locadora de filmes, parque aquático coberto, salão de jogos, restaurante, lanchonete, bar dançante, café, salão de beleza, parquinho infantil, lojas de conveniência. São vários os tipos de empregos que podemos ter, graças à internet, trabalhando na segurança de nossos cubículos pessoais. As antenas que nos conectam ao mundo ficam num último andar tão fortificado que é mais fácil chegar nele de helicóptero do que por elevador ou pela escada. Obviamente nem todos têm a sorte de trabalhar dentro de casa: os que se dedicam a atividades braçais precisam sair, outros saem porque já não confiamos que os de fora entrem trazendo-nos entregas de comida, remédios ou outras coisas. Faz quinze anos que este prédio existe, investi nele economias de duas vidas: a minha e a de minha mulher. Tenho quarenta e seis anos, nenhum filho, um emprego péssimo.

Sou guarda de segurança. Agora sou guarda de segurança. Escolhi este emprego, talvez na espera de que o risco de morrer me faça querer viver melhor. Melhor, não mais. Saio de casa diariamente, quando o sol já está descendo pelo horizonte como uma bolha de ar em uma janela manchada de sangue, do sangue de Joana, do sangue que espirrou de seu peito. Joana, meu mais precioso tesouro, guardado devidamente numa urna de prata, selada com cera, no fundo de uma gaveta, no fundo de meu coração. Sou guarda de segurança, desde que não consegui proteger Joana.

Digo que «saio», mas não exatamente assim. Um túnel me conduz do térreo a uma estação de metrô. Vários túneis, vindos de outros grandes prédios, que se erguem como uma floresta de árvores sem galhos no planalto. Edifícios para assalariados, como o meu, não são mais construídos a torto e a direito, mas apenas onde chega a linha subterrânea, cada vez mais difícil de expandir. A estação quase nunca está cheia, raramente está deserta. Sei que todos os que nela aparecem são controlados e escolhidos, observados e medidos. Mas quando ela está vazia eu tenho medo de olhar no rosto de quem esteja lá comigo. Tenho medo porque o mal pode ser tanto um mendigo quanto um vizinho. Mendigos tem olhares perdidos e mentes amargas. Vizinhos têm armas.

O trem sai da estação e passa por um pátio ferroviário imenso, onde se encontram trilhos que vêm de outros lugares, levando gente como eu, e gente diferente. Os trilhos eletrificados com milhares de volts impedem que os fantasmas que perambulam pelos pátios, sob a luz cancerígena do sol, tentem entrar. Os trens têm anteparos de metal, desenhados para erguer e atirar para o lado os obstáculos que podem ficar sobre os trilhos. Só raramente vejo algum, quase sempre tenho pena.

Mendigos, prostitutas e marginais se aglomeram por ali, agitando bugigangas, braços e armas na esperança de fregueses, clientes, vítimas. Meu trem não para nestas estações externas, suas janelas à prova de bala estão sempre cerradas. Mas há os outros trens, vindos dos bairros pobres, com janelas quebradas, com a obrigação de parar em cada estação. Eles fornecem a razão de ser destas pessoas que se derretem sob o sol.

A cidade hoje é muito diferente do que era no século em que nasci. As largas avenidas não existem mais. O trânsito não funciona mais. O louco que tentasse utilizar um veículo de superfície pelas ruas não chegaria longe: ou seria vítima de uma colisão, pois já não há sinais nem regras, ou será atacado por facínoras. Não há mais um mercado para carros roubados, mas o motorista pode ter uma moeda no bolso, para justificar a bala que o bandido atira, e o metal da máquina vale algo para a reciclagem. Nem se comente o que pode acontecer a tal incauto se esbarrar em um dos milhares de pedestres que vagueiam por todo lado sem seguir a mais simples regra de bom senso: estranhos frutos pendem, às vezes, das raras árvores, frutos que frequentemente dão também em postes. Mesmo sobrevivente a todos esses contratempos, o infeliz que tente brincar de motorista não chegará ao fim da viagem na posse de todos os seus bens, quiçá nem de suas roupas. Então, tragédia maior, sem seus trajes cidadãos, seus documentos, seu cartão, seu crachá… Como poderá provar que pode entrar nas zonas reservadas, retornar à própria casa?

Os únicos veículos que andam pelas ruas pertencem à própria gente que nela ainda vive. O tráfego é irracional e os acidentes acontecem o tempo todo. Discussões e dúvidas se resolvem a bala ou a faca. Veículos inutilizados são abandonados pelas calçadas, depenados até os ossos de metal ficarem sob o sol, depois serrados aos pedaços, como a carcaça de um animal grande atacado por formigas carnívoras.

No passado a polícia ainda vinha buscar os raros e ousados criminosos que rompiam os sistemas de segurança. Mas isto foi ficando cada vez mais difícil, a ponto de cada agente ter que vir debaixo de uma armadura. Mesmo em grupos e portando armamento pesado era frequente que voltassem carregando um cadáver. Essa dificuldade de abordar o habitat dos bandidos levou à solução natural: cercas melhores e a ordem de matar quem não esteja autorizado a estar onde esteja. A ordem é que o bandido não chegue e voltar, assim não é preciso ir buscar.

Eu me lembro vagamente, quando ainda era uma criança, de uma época em que as casas tinham portas para as ruas e era possível chegar em todos os lugares. As pessoas costumavam usar bicicletas móveis como transporte: eu mesmo tinha uma prometida para quando meu pai ganhasse um aumento. Mas o agravamento da situação levou o governo a isolar certas áreas das outras, criando fortalezas cada vez mais densas. Compartimentos cada vez mais estanques. A única área livre onde se pode ainda ter a sensação de andar pelas ruas é o centro. Ele foi cercado por um muro alto de pedra, envolto por um campo minado, com guaritas de segurança e luzes fortes. No centro ainda se pode andar por ruas, mas não em bicicletas móveis: há muita gente que precisa andar, muito transporte. Não há espaço para isso, seria estranho perder pedalando um tempo que poderia ser cortado ao meio ao pegar a esteira certa e o elevador direto. Ninguém por lá anda a esmo: todos têm uma direção e cada um conhece o seu caminho, o seu restaurante. Mesmo no centro é relativamente perigoso andar à toa.

Mas se você for rico o bastante, poderá alugar um carro elétrico, com uma carroçaria que imita os antigos sedãs de luxo, e fazer um passeio, romântico ou familiar, pelos parques e praças. Alguns ao lado do centro, outros um pouco mais longe, mas unidos a ele por estreitas passagens por onde se pode ter a antiga sensação de dirigir em uma rodovia sob o sol. No parque ainda se pode tomar sorvete, pedalar no lago um barquinho em forma de cisne, sentar à sombra de uma árvore e desfrutar de minutos relativos de silêncio. Anualmente faço isso. No silêncio entre as árvores escuto a voz de Joana, lembro de quando nos conhecemos num parque desses, numa época em que ainda era aberto.

Pouca gente vive no centro. Somente alguns saudosos do passado, que querem ter a sensação de um jardim privado, de uma varanda para a rua ou da contemplação do trânsito. Custa caro, o conforto é menor que em qualquer apartamento, mas os que ainda insistem dizem que vale a pena. Eu pagaria o aluguel de uma dessas casas antigas se pudesse, para ter meu próprio carro elétrico na garagem, um canteiro de rosas na frente e uma churrasqueira no fundo para passar domingos em família. Pagaria se tivesse uma família. Nenhum aluguel seria caro para isso.

Em vez disso eu vivo nas entranhas de um edifício sem alma. Para onde volto cada noite em busca do fantasma de Joana. Volto, deito-me na cama sem fechar a janela e tento sentir o frio, deixo a luz acesa para dissipar a treva. Não sei aonde pode estar Joana, certamente não em meus sonhos. Trabalho com estranhos, minha tarefa atirar nos que tentam entrar. Tenho vergonha deles, tenho vergonha disso. Guardo meu uniforme num armário no serviço para que ninguém veja o que sou. O monstro que sou. Não salvei Joana, mas mato os sonhos de outras pessoas.

Não sei quanto tempo ainda vou aguentar. A alegria é uma bolha de ar que já chegou no parapeito da janela. O sangue de Joana escorre lentamente, me lembrando que em breve eu vou também, e não haverá nenhum Paraíso para mim, monstro que sou. Arrasto minha carcaça pelo mundo, por entre corações vazios e olhares gelados. Solitário. Essas pessoas me olham como quadros nas paredes. Mas seus olhares me seguem, às vezes, fazendo-me sentir que estou nos corredores de uma mansão mal assombrada. Um coração sem resposta, um homem sem filho, sozinho com suas lembranças. Talvez essas pessoas me reconheçam. E nenhuma sequer me odeia.


19
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 17:49link do post | comentar
Há cem bilhões de flocos de neve girando na fúria do cosmosCada um deles é uma galáxia, um bilhão de estrelas ou mais,E cada estrela, um milhão de terras, um gigantesco sol ardenteNo alto de algum céu, talvez brilhando sobre alguém.E bem no fundo de um floco de neve, flutuo em silêncio.Eu sou infinitesimal, impossível de ver.Sentado na pequenina cozinha de meu lar pequenino,Contemplo através da janela um universo de flocos de neve.Mas minha alma é muito maior do que este meu minúsculo eu,Estende-se pela nevasca, como uma rede pelo mar adentro.De todos os lugares adoráveis aonde meu corpo não pode ir,Eu toco a beleza e a abraço no seio de minha alma.E é tão breve e rápida esta minúscula vida minha,Como uma única semínima na marcha do tempo.Mas minha alma é a música, e vem desde tempos antigos.Antes de vestir a face humana, antes de levar meu nome.Porque minha alma é muito mais velha que o meu ser fugidioE sabe descrever a aurora do tempo como memórias de infância.Ela é uma fagulha produzida na escuridão tempos atrás,O que meu corpo esqueceu, continuo a lembrar em minha alma.Então vivemos juntos a vida, minha alma gigante e o mínimo eu.Uma aparência de eternidade, outra fumaça soprada na brisa.Uma oceano que permanente, outra uma onda súbita e fugaz.Contando as galáxias flocos de neve, juraria que somos iguais.Oh, minha alma pertence à beleza, me leva a alturas sublimes,Ensina-me histórias sagradas, santifica minha vida minúscula,Faz ponte entre as eras, dissolve as fronteiras dos ossos,Pinta para sempre uma face corajosa nesse momento passageiro.

16
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 22:20link do post | comentar | ver comentários (2)

Quanto você pagou pelo seu dia de hoje? Nada? Tem certeza? Provavelmente você está enganado, tanto quanto eu estive durante décadas perdidas de minha vida. Cada dia que você vive está pago, e muito bem pago, com uma moeda cujo valor subjetivo é maior que o do dólar e o do iene: a liberdade.

É com liberdade que você paga por lhe terem deixado vivo mais um dia. Com ela você comprou, indiretamente, o pão e o café que o prepararam para outra jornada. Esta, por sua vez, nada mais é do que a privação diária porque passa o homem, obrigado a coisas que não entende e que não lhe fazem sentido. Em vez de estar criando seus filhos, realizando seus sonhos, fazendo amor ou deitado à toa. Durante mais da metade das horas de cada dia, exatamente as horas melhores, aquelas em que você está mais alerta e se sente melhor. Justamente nelas não há mais liberdade, a não ser relativamente.

Em troca de você abandonar a sua liberdade, vão lhe pagando por ela valores variáveis. Nunca lhe pagam o que você quer: é sempre menos ou mais. Quanto mais lhe pagam, em relação ao que você espera, mais lhe tiram. Pagar sempre um valor diferente é uma forma de impedir que você perceba o valor exato desta condição. Se lhe pagam pouco, é porque você provavalmente lhe dá muito valor e é preciso que você passe a crer que ela vale menos. Se lhe pagam muito, é porque lhe deixam apenas o mínimo necessário para que você ainda respire hoje (mas nunca se sabe o dia de amanhã). Fazem isso aproveitando-se de que você acha que ela vale pouco. Se você avaliar com precisão, verá que, no fundo, a sua liberdade vale tanto quanto a do lixeiro que você despreza. Muda apenas quanto pagam.

Há muitas maneiras de tomar a liberdade de alguém, e a mais cruel de todas é a tomada preventiva da liberdade que ainda não pode ser gozada. Em palavras mais piegas: é tomar do homem a liberdade que ele ainda pode vir a ter no futuro. Isso se faz de várias maneiras. Pode ser, por exemplo, pelo acúmulo de responsabilidades (essas notas promissórias que pagamos com liberdade); ou pode ser de forma agressiva, deteriorando o seu corpo para que você não possa chegar a gozar da liberdade futura. O primeiro método é o preferido da sociedade, pois permite dar uma finalidade à liberdade que você não vai aproveitar. O segundo, que a inutiliza, é apenas uma maneira de assegurar que a liberdade seja restrita. Fazem isso quando não há uma demanda suficiente por liberdade, mas há muita oferta. É mais ou menos como fazem os produtores de leite quando não conseguem vender: jogam fora, mesmo com tanta gente passando fome. A economia exige isso: não haveria meios de levar esse leite a quem precisa. Quem pagaria o frete?

A vida vai passando e o seu estoque de liberdade vai minguando. E quanto menos liberdade você tem, menos lhe pagam por ela. Esse é o paradoxo econômico desta moeda, razão pela qual os economistas riem dela. A liberdade é uma commodity que só tem valor quando é farta. Aqueles que tem muita conseguem vender a um preço alto. Aqueles que pouca têm, esta escassa ainda têm de entregar a preço vil, isso quando não lhes é tomada de graça.

Mas um dia percebem que sua liberdade já acabou, nesse dia não existe mais utilidade no homem. Ninguém respeita ao indivíduo que já não é livre, ninguém o ama, ninguém o admira. Todos, no máximo, fingem isso. Neste momento o homem está pronto para aposentar-se. Não sendo já livre, não poderá desfilar pelas ruas com a indecência de seu livre-arbítrio arregaçada no rosto como um sorriso. Toda a admiração da sociedade pelo homem que finalmente se aposenta é idêntica à que ela tem pelo homem que finalmente cumpre uma longa pena. Alguns podem estar festejando lá fora dos portões, mas não creia que será possível reiniciar os esboços abandonados na infância.

Quando você se aposenta lhe dizem que você finalmente terá tempo para seus projetos. Possivelmente terá tempo, mas dificilmente terá ainda projetos. A privação da liberdade é uma condição que induz ao costume: nos tornamos tão afeitos a viver sem aproveitá-la que quando finalmente já não nos obrigam a deixá-la, não sabemos para onder ir.

Nos idos dos anos cinquenta ou sessenta, antes que eu nacesse, havia em minha cidadezinha natal um burrico que puxava a carroça de leite pelas ruas da cidade. Toda manhã o leiteiro o laçava no pasto, botava-lhe arreios e ia à Cooperativa comprar leite em garrafas. Depois saía pela cidade entregando aos fregueses habituais. Quando o burrico ficou velho seu dono, compadecido, como nossa sociedade, deixou o animal em um pasto em um bairro afastado, para que ali descansasse. O pobre bicho não aproveitou sua liberdade tão tardia: toda manhã, em vez de pastar o capim tenro e nadar no riacho, ele cruzava a cidade e parava à porta da Cooperativa, puxando uma imaginária carroça. Depois saía a esmo pela cidade, entregando oníricas garrafas de leite. E assim foi por algum tempo, até morrer, magro de tão pouco pastar. Pois o burrico livre comia menos do que antes, quando seu dono lhe dava capim à boca durante a viagem.

Se este fosse um texto de auto-ajuda eu terminaria dizendo que nossa liberdade é tão pouca e tão pouco nos deixam aproveitá-la, que é preciso, que é imperativo, que é sensato que a empreguemos toda, ao máximo, já, ontem! Ou então que a usemos “com sabedoria” (qualquer coisa feita “com sabedoria”, segundo as pregações dos sábios, precisa ser muito chata—a ponto de quase ser inútil).

Mas este não é um texto de auto-ajuda, eu não estou aqui para ensinar nada a ninguém, eu sou apenas aquele ruído que lhe acorda no meio da noite, parecendo um móvel que caiu ou algo que se quebrou na cozinha. Eu sou esse ruído que lhe faz pensar que há um ladrão em casa, e você treme sem saber se deve ir ver o que é ou se deve fingir dormir e deixar que o ladrão o roube, por medo de um tiro. A verdade é como um tiro, ou como um prato que se quebra na madrugada destruindo o seu sono inocente. Eu escrevi este texto porque eu já não durmo e quero que minha insônia se espalhe: é preciso urgentemente produzirmos liberdade, ou ela deve acabar—e nesse dia nenhum de nós terá valor algum. Pois não valemos nada se não somos livres nem felizes.


26
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 20:50link do post | comentar
  1. Admita que se tornou um viciado tecnológico e que este vício o está destruindo.
  2. Acredite que é possível encontrar a salvação. Para inspirar-se, abra uma janela, exponha seus olhos à luz brilhante que há no mundo lá fora, bem devagar para que o sol não queime suas retinas acostumadas a trevas e luz artificial. Depois de alguns dias seus olhos terão aliviado os sintomas da síndrome de abstinência de radiação eletromagnética do monitor e poderão suportar a luz do sol melhor, ponha óculos escuros e dê uma volta no parque durante o dia. De preferência vá sem usar pesadas roupas pretas.
  3. Experimente atividades construtivas ou recreativas que não envolvam o computador: jogar paciência com um baralho, brinque com seus filhos (se os tiver) ou dê um passeio de bicicleta (sem levar tablet nem notebook), dar milho aos pombos, tomar cerveja num boteco.
  4. Procure dentro de si mesmo os pensamos que levam à conexão indefinida. Resista à tentação de blogar o que viu no passeio ou de filmar alguma cena curiosa para postar no YouTube. Permita que algumas coisas sejam registradas apenas em sua memória. 
  5. Procure resolver as suas deficiências sem recorrer a metáforas tecnológicas. Não existe um Google para achar o que você perdeu. Não há como exibir cartões com emoticons enquanto fala. Organize seus pertences e treine expressões faciais correspondentes aos sentimentos que deseja transmitir. Encontre autonomamente soluções para os problemas de seu dia-a-dia, sem pesquisar sobre isso na Internet.
  6. Fique aberto a novas experiências não tecnológicas. Não rejeite tecnologias apenas por serem «antiquadas» e não cultive a obsessão pelo «novo». Leia um livro de papel. De preferência um que tenha sido publicado há mais de vinte anos e NÃO seja sobre informática. Visite um ponto turístico em vez de fazer download de fotos dele. Tente chegar lá sem usar o Google Maps.
  7. Procure aquele amigo de infância com quem você não fala há anos porque, embora saiba onde ele mora, perdeu seu endereço eletrônico. Convide-o para tomar uma cerveja no boteco da esquina enquanto assistem a uma partida de futebol em vez de jogarem Winning Eleven. Arranje um relacionamento sem recorrer ao Facebook. Não blogue sobre isso e nem altere seu status no MSN.
  8. Cumprimente conhecidos na rua. Cumprimente alguns desconhecidos na rua. Compre em uma loja que não tenha website. Ao fazê-lo, tente interagir com o/a vendedor/a. Torne-se conhecido dos vendedores das lojas e supermercados que frequenta regularmente.
  9. Procure dedicar-se a hobbies que não requeiram o uso permanente de computadores: escultura, pintura, ciclismo, pelada com os amigos, motocross etc.
  10. Livre-se de todos os perfis, logins, senhas, acessos etc. que não sejam estritamente necessários para seu trabalho ou que não lhe pareçam realmente divertidos ou úteis.
  11. Mantenha o telefone celular desligado enquanto for possível, mas procure manter contato com as pessoas que importam em sua vida, por meio de cartas, viagens, telefonemas etc.
  12. Determine horários nos quais ligará o computador (exceto para trabalho) e faça saber a todos que você respeita o que se propôs a fazer. Convide seus antigos amigos virtuais para encontros pessoais e lhes fale sobre as maravilhas do mundo real.

15
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 17:12link do post | comentar | ver comentários (2)

Comecei tendo os primeiros sintomas quando era ainda estudante. Vivia longe da família numa cidade distante e demorei a me enturmar com os meus colegas da faculdade: eles zombavam de meu dialeto, me chamavam de caipira e não compreendiam os meus valores. Isto me afastava das festas das repúblicas e progressivamente me empurrou para longe da vida social: aluguei um apartamento no centro da cidade e tinha um emprego de meia jornada.

Posteriormente eu me formei e o meu chefe me ofereceu o emprego em tempo integral, com um aumento de três vezes no salário. Eu fiquei na cidade e todos os meus antigos colegas voltaram para suas casas distantes, entre eles a única namorada que eu tive durante cinco anos de estudos. Meus pais continuaram vivendo em Santa Rita do Sul, a duzentos e vinte quilômetros de distância. Tentei várias vezes retornar, mas nunca consegui perto de casa um emprego que me pagasse tão bem. Era 1999 e eu já ganhava 920 reais por mês, administrando a contabilidade da empresa.

Nos fins de semana os estudantes sempre iam embora, deixando a cidade vazia como um cenário de filme. Eu sentava na escadaria do adro da igreja no sábado à tarde, com um lanchinho posto em forma de piquenique. Lá do alto do morro eu me sentia isolado, desconectado, como se a Matriz existisse em outro universo. Quando passava algum carro lá embaixo, na rua, eu quase nem o ouvia: o calçamento de pedregulhos fazia os motoristas acelerarem pouco, não chegando a romper a calmaria.

Não havia nada no sábado à noite, a não ser os bailes da Terceira Idade. A cidade não tinha rádio, não tinha discoteca, não tinha exposição. Tinha uma infinidade de casas que sediavam repúblicas, casas que ficavam vazias como mausoléus quando chegava o fim de semana. Os colegas de trabalho eram quase todos vinte anos mais velhos do que eu, ou então garotos que viviam em cidades próximas e voltavam de ônibus para casa no final da manhã de sábado. Somente eu ficava, vagando pela cidade como uma alma penada no cemitério.

Quando finalmente comprei o carro e consegui aprender a dirigir, já havia me acostumado tanto com a solidão que tinha dificuldades para saber aonde ir. Dirigia até o trevo na saída da cidade, estacionava em um terreno baldio e olhava, intimidado, para os destinos múltiplos, para as placas verdes que indicavam lugares distantes. Tinha medo da estrada, medo do trevo, medo da vida.

Demorou muito tempo, porém, para que eu percebesse que estava doente. Inicialmente eu pensei que tinha algum tipo de problema do espírito e somente depois do fracasso da fé entendi que não era nada disso. Mas continuava sozinho.

Havia alguma coisa errada comigo, isso eu sabia. Alguma coisa de muito errada, alguma coisa que me afastava das pessoas, que me podava o caminho da felicidade. Mas em vez de reagir a isso eu me trancava, eu comprava cortinas escuras para as janelas, instalava filme escuro nos vidros do carro, mandava porem cortiça nos batentes das portas para isolar os ruídos de fora.

Conheci o Doutor Aristides no clube. Eu tinha comprado uma quota, mesmo sabendo que lá só encontraria senectude e solidões. Mas o Doutor Aristides era diferente. Tinha uma jovialidade estranha para os seus setenta anos de idade, mesmo sem pintar os cabelos. Sua fala era firme como a de um locutor, seus dedos manuseavam o baralho com a segurança de um mágico. Tinha sido médico da Marinha por muitos anos e se acostumara a tratar todo tipo de “esquisitices”.

Convidou-me ao seu consultório, com a promessa de curar-me. Não prometeu rapidez, no entanto. Era um “psicólogo homeopata”, e acreditava que a cura seria um processo a depender do próprio indivíduo, em vez de um efeito de medicamentos.

— Eu poderia receitar-lhe química maravilhosa, que interferiria com o seu cérebro e o faria sorrir. Mas eu não consigo enxergar dentro dos sorrisos das pessoas que usam essas substâncias, não sei se estou realmente fazendo-lhes bem ou prendendo suas almas dentro de sorrisos rígidos. Por isso eu estou desenvolvendo um novo tratamento, que estou chamando de “psicologia homeopática”. Claro que não é um tratamento aceito ou recomendado pelo CRP, mas eu posso me dar ao luxo de fazer estas extravagâncias agora. Estou aposentado e nada mais tenho a perder no mundo, se resolverem me cassar esta carteirinha preta com essa bela letra grega em dourado. Tenho bastante dinheiro para ser louco e tenho bastante loucos dispostos a tudo para salvar-se de seus demônios.

— Estou louco, doutor?

— Todos estamos, meu amigo — ele dizia.

Não me cobrava pelas consultas. Dizia que já tinha cobrado suficiente ao longo da vida para ter a casa e seu consultório.

— Mas não estou fazendo caridade, entenda. A não ser, talvez, comigo mesmo.

Demorou muito tempo até que eu entendesse o que o Doutor Aristides quisera dizer com esta observação.

O tratamento que ele propunha se baseava nos princípios de Hahnemann: simila similibus curantur.

— Para tratar-se de teu mal, o que precisas é de pequenas doses controladas deste próprio mal. Assim como amor com amor se cura, solidão se curará com solidão.

— De que forma eu posso ter doses controladas de solidão?

— Uma das coisas curiosas a respeito dos solitários é que frequentemente eles são interrompidos naquilo que fazem em suas horas de solidão. Desta forma, mesmo não tendo companhia real, eles não conseguem usufruir plenamente de sua solidão. Então é preciso que desenvolva métodos e rituais que lhe assegurem que os seus momentos de solidão sejam de solidão verdadeira. Que não sejam interrompidos por um imbecil cobrando-lhe a conta do condomínio ou por um boçal tocando música em uma festinha de aniversário.

Por isso eu gostava de fazer piquenique no adro da igreja: ali eu estava imerso em meus próprios pensamentos e ninguém aparecia para interromper!

— Mas, Doutor. Não existe o risco de continuar sozinho o tempo todo?

— Sim, claro. Como ai dizendo. A falta de fruição completa da solidão nos momentos que deveriam ser-lhe dedicados faz com que o indivíduo acabe tendo vontade de estar só nos momentos em que deveria buscar companhia. É mais ou menos como a fome que se tem durante a tarde quando o almoço é insuficiente. Mas você não deve comer entre as refeições, porque isso o tornaria gordo e lerdo com o passar do tempo. Da mesma forma, procurar ficar sozinho em outros momentos em que não deveria estar, fará com que se torne arredio e socialmente inapto.

— E em que consiste o seu tratamento, Doutor?

— Basicamente em duas coisas: assegurar a solidão perfeita e satisfatória nos momentos em que for necessário que o indivíduo esteja sozinho e, por outro lado, procurar impedir totalmente que a solidão se manifeste em todos os demais momentos de sua vida. Acredito que se conseguirmos um grau elevado de preservação destes dois momentos distintos, isolando-os entre si, a doença da solidão pode ser controlada ou, talvez, até mesmo curada. Estou iniciando o cadastramento de um grupo de voluntários para submetê-los a este tratamento que concebi. Se desejar participar, eis meu cartão.

— Não tenho dinheiro para um tratamento psicológico longo, Doutor. Ganho bem, mas não tão bem assim. A menos que o senhor tenha convênio com o meu plano de saúde.

— Não diga isso. Eu não lhe cobrarei nada. O senhor é que deveria ser pago por dispor-se a ajudar no progresso da ciência.

Peguei o cartão enquanto nos despedíamos depois de outra tarde de carteado e fui para casa determinado a ligar. Resolvi, no entanto, que tendo o Doutor me dado uma descrição tão completa e funcional de seu método, não era necessário que eu o procurasse: poderia automedicar-me, conduzir eu mesmo o tratamento, obtendo minha melhora sem o constrangimento de ter de frequentar um consultório de psicólogo.

Por isso, acabei ligando para o Doutor Aristides e comecei na segunda feira seguinte o tratamento. Reservei e cronometrei estritamente as horas de minha vida em que deveria passar estritamente só, sem a possibilidade de que me interrompessem. Durante estas horas, segundo o Doutor, eu deveria mergulhar o mais profundamente possível em meus próprios pensamentos e ideias, em meus sonhos frustrados de infância, em meus projetos pequenos de futuro.

Mas não funcionou. Embora eu tivesse algum sucesso em isolar-me melhor nos momentos de solidão, continuava sendo extremamente difícil impedir que a solidão pervagasse como uma sombra todos os demais momentos de minha vida. Impedir isso se mostrou muito cedo uma coisa impossível, acima das capacidades de um indivíduo.

O Doutor Aristides me recebeu sem questionar a demora. Ao lhe indagar a tolerância ele admitiu que a maioria das pessoas nunca aparecia:

— O ser humano parece acreditar que pode curar-se da solidão sozinho.

Eu já conhecia a essência do método, só não estava a par de sua implementação. Surpreendeu-me a longa sequencia de perguntas que o médico me fez. Quando terminamos todos aqueles testes, aquelas perguntas de livre associação, aqueles cartazes com borrões e outras coisas curiosas; ele me olhou nos olhos e decretou:

— O tratamento para a solidão consiste em um tipo de terapia de grupo.

— Algo como os alcoólicos anônimos? Aquela coisa de reuniões em torno de um grande círculo e filmes educativos e preces a Deus, etc.?

— Não, absolutamente nada disso. Você não tem um vício, você não é um pecador, você não comete crime algum. Você não precisa de perdão e nem de reedificação moral. Você é um doente que precisa de um tratamento. Só que o único tratamento possível é de uma natureza tal que se torna impossível levá-lo adiante sem ajuda.

Ele abriu um armário cheio de caixas de remédios atravessadas por tarjas pretas. Aqueles frascos diabólicos bem poderiam estar estampados com caveiras em vez dos logotipos ameaçadores de laboratórios mágicos localizados em cidades míticas.

— Eu poderia lhe receitar alguns desses. Aliás, pegue os que quiser no caso de querer ter uma viagem, eu lhe receito as doses seguras.

Afastei-me do armário como se ele contivesse feitiços poderosos.

— Mas estas substâncias não o curariam. Elas o fariam sorrir, certamente. Elas o fariam perder a vergonha e o fariam sonhar melhor. Todas essas coisas são boas, mas eu não acho bom tomar remédios para elas porque isso aí — ele apontou os frascos com o beiço — é como antitérmico para pacientes tuberculosos. Você quer ficar sem febre? Pode tomar alguns comprimidinhos. Mas a infecção está lá dentro, roendo a sua vida. Quer rir? Este daqui é ótimo — ele exibiu um frasco de Prozac — para isso e para outras coisas mais. Mas de que adianta rir com a boca e com a mente consciente se as causas de sua tristeza estão lá dentro enterradas, prontas para germinar no dia em que a dose falhar ou seu dinheiro para comprar outra caixa tiver acabado? É por isso que eu não acredito em remédios. Não nos da minha especialidade.

— Então eu não vou tomar remédios, doutor?

— Claro que não. A menos que se sinta mais confortável com a ideia de tomar alguma coisa que cause alguns efeitos colaterais. As pessoas costumam gostar de efeitos colaterais. “É o remédio agindo, você tem que suportar isso para melhorar depois”.

Demos juntos uma boa risada.

— De vez em quando, filho. De vez em quando você precisa de algumas pílulas do demônio para poder enfrentar isso aí — ele indicou a janela e o grande mundo lá fora com o seu queixo mal barbeado. A principal função dos psicólogos é dar as doses certas, demarcar o limite entre sonhos felizes e o paciente ficar catatônico e babando.

— Do jeito que o senhor fala, até parece que algum dia poderá me receitar um ácido.

— E por que não? Veneno por veneno… Eu já estou velho demais para acreditar em poções, meu filho. Se te faz bem, então tome uma dose segura depois de contratar alguém para limpar a bosta que vai cagar na calça durante a viagem…

— O que vamos fazer agora?

— É neste ponto que o método de tratamento passa a precisar da cooperação de todos os que estão se tratando, e do próprio terapeuta. Você precisa encontrar compromissos, mesmo que fúteis, para impedir que a solidão esteja presente nos outros momentos de sua vida. Da mesma forma como durante um tratamento existem momentos em que você está “tomando o remédio” e outros nos quais você “não está tomando o remédio”; e estes segundos são a maioria. Assim, você deverá “estar sozinho” durante certo tempo, mas não poderá estar sozinho durante o resto do tempo ou estaria tomando o remédio o tempo todo.

— O que me levaria a uma overdose?

— Não, meu amigo. Overdose é um termo alopático. Ele não se aplica nesse caso. Na verdade, quanto mais remédio você tomar para o seu mal, menor será o efeito. Se você permitir que a solidão esteja presente em todos os momentos, mesmo que marginalmente, então você nunca se curará. É preciso, em vez disso, reduzir a dose do remédio de forma progressiva até que ela se torne infinitesimal. Somente assim ele se tornará tão potente que eliminará a doença de sua alma.

Tendo feito estas observações, ele me apresentou ao programa de tratamento. Os demais pacientes, seis ao todo, eram um grupo aleatório de pessoas da cidade. Alguns nascidos lá, a maioria pessoas vindas de fora. Pessoas de todas as idades, mas a maioria residindo na casa mística dos trinta.

Maria Helena Fontes era uma dessas matriarcas do interior que apreciam casa cheia de netos aos domingos e muitos parentes que vêm de longe com histórias. Infelizmente ela tinha ficado viúva e perdido seu único filho em um acidente de automóvel, quinze anos antes. Não se casara de novo porque não conseguia se recuperar do amor imenso que tivera pelo marido, cujas fotos ainda enchiam a casa. Mesmo que se tivesse casado, porém, não teria tido filhos aos quarenta e cinco anos. A família do marido se afastara dela, a própria família morria aos poucos, deixando-a sozinha em uma casa enorme, cuja criadagem ela quase já não podia pagar.

Isabel era professora de educação artística em uma escola pública. Era bonita, embora o viço já lhe tivesse abandonado. Vivia sozinha em uma casinha herdada do pai, cercada por um jardim e por uma horta, cultivados ambos por suas mãos que viviam calejadas e sujas da tinta dos quadros que ela ainda insistia em pintar, embora raramente alguém comprasse.

Aderbal era um comerciante detestado pelos seus empregados devido a muitos erros cometidos no passado. A mulher o abandonara por causa de uma crise de ciúmes que lhe custara dois dentes. Aderbal vivia sob constante supervisão da polícia e o efeito de vários medicamentos de tarja preta. Seus filhos nunca o visitavam.

Artur era empregado de uma loja de material de construção. Era pequeno, feio e dentuço, embora dono de voz afinada e de um raro talento com o violão. Infelizmente, voz e violão não importam mais neste mundo que precisa de belos rostos: o máximo que lhe propuseram como carreira artística fora emprestar talento para um rosto adequado, em troca de um salário que seria uma percentagem pequena. Reagira indignado e abortara a carreira. Agora vendia material de construção e cantava em bares nos fins de semana. Ganhava pouco e vivia em um apartamento pequeno, de quarto e sala.

Dagmar era enfermeira no Hospital Municipal. Anda sempre maquiada e com as unhas impecáveis, mas nunca sorria. Na cidade tinha a fama de ser uma sádica, do tipo que fazia questão que a injeção sempre doesse, que o ponto da cirurgia sempre ficasse um pouquinho mais apertado que o necessário ou que o tapa nas nádegas da criança recém-nascida fosse um pouco mais forte. Colara grau em uma época em que mulher com diploma ainda era um bicho esquisito no interior. Nunca namorara e provavelmente era virgem aos quarenta e dois anos.

Julieta era uma adolescente gorda e que usava maquiagem pesada. Vestia-se pesadamente, tudo nela passava a impressão de peso, de morte, de tristeza. Comia compulsivamente e sentia-se imensamente feia, baleia. Não tinha amigos, não tinha namorado. Seus pais a mandavam de um médico para outro, de um regime para outro. Queriam pagar-lhe uma cara cirurgia em São Paulo. Não suportavam mais, queriam consertar a filha gorda a qualquer preço. Mas ela sempre passava em casa as noites solitárias de sábado, as horríveis manhãs de domingo, cada horrível dia da semana, especialmente os de escola.

Eles foram os primeiros que eu conheci: depois foram vindo outros, saindo outros.

— Vocês devem organizar-se de forma a suprimir a solidão da vida dos demais nos momentos em que eles não estejam se tratando. Mas apenas nesses momentos. Devem organizar-se de forma que cada um esteja longe dos demais durante certas horas, mas ao mesmo tempo esteja com alguém no resto do tempo, para limitar a aplicação do tratamento aos momentos designados. Como vão fazer isso é irrelevante, mas o importante é limitar a dose.

Organizamo-nos de diversas maneiras. A senhora Fontes fazia bolos e nos convidava para tomar o café da manhã de domingo em sua casa. O Aderbal tinha uma chácara onde sempre organizava almoços de domingo à beira da piscina. O Artur nos convidava para estudar com ele para o concurso dos correios. A Isabel nos levava às suas aulas de pintura no campo. E assim cada um ajudava a todos os demais no difícil controle da solidão.

Difícil porque, mesmo em companhia, havia momentos em que a solidão tentava se inserir, como uma cunha, o que poderia destruir a eficácia da aplicação. Era preciso então que alguém se aproximasse e interrompesse a reflexão solitária do paciente que se estivesse desgarrando. Manter a solidão sob controle, limitada aos momentos em que deveria estar ser parte do tratamento, acabava sendo uma tarefa tão complexa que nossas vidas começaram a girar em torno disso.

Éramos um grupo pequeno e difuso, formado por pessoas de temperamentos díspares e histórias de vida que vinham e iam por estradas que nunca ou raramente se encontrariam de outro modo. Mas todos éramos solitários, cobaias do revolucionário tratamento homeopático proposto pelo Doutor Aristides. E por sermos parte daquilo de forma que se tornava cada vez mais obrigatória, acabamos convivendo à força uns com os outros, criando vínculos de amizade ou de afeto.

O tratamento inteiro durou oito meses para mim. Durante este tempo presenciei várias pessoas que se disseram curadas e vários pacientes que chegaram, em momentos distintos. Também houve alguns abandonaram o tratamento por razões de força maior, como o Artur, que passou no concurso e foi embora, levando sua solidão ainda. Ou como a Isabel, que se matou devido ao pensamento fixo de que o tratamento não adiantaria. Foi uma grande perda. Isabel era bonita, eu gostava dela. A maioria, porém, melhorou ou permaneceu em tratamento depois que eu mesmo saí.

A minha saída, aliás, foi gradual. Acredito que lá pelo quinto mês eu já estava “saindo” sem o perceber. Foi preciso que o Doutor Aristides me fizesse ver que eu já estava fora. Nas primeiras semanas do tratamento havia pouca

A cura aconteceu, para mim, de uma forma aleatória. O Doutor Aristides me telefonou no fim de semana. Eu estava na praia, em companhia da Eva, minha namorada.

— Meus parabéns, você está estabilizado. Gostaria que viesse ao meu consultório durante a próxima semana para termos uma conversa.

Apareci no consultório tão logo voltei. Logo ao entrar fiz a pergunta obrigatória:

— Estabilizado ou curado?

— Eu prefiro dizer que está estabilizado. Não existe cura real para a solidão. Mas tenho analisado a sua progressão e posso dizer que você já não precisa do tratamento intensivo. Estou lhe dando alta do grupo de trabalho.

Foi como se removessem o chão sob meus pés.

— Por que diz isso? Como assim? Eu não vou mais participar do grupo? Fiz algo de errado?

— Calma, rapaz. Examine a sua própria vida e entenderá. Isso não é uma punição.

— Mas eu ainda me sinto tão só às vezes.

— Sempre se sentirá. “Sentir-se só” é uma coisa que acontece com os seres humanos de vez em quando. “Sentir-se triste” também. Não existe nenhum pecado nisso, não é crime isso.

— Quer dizer que voltarei a me sentir mal?

— Claro que sim, e muitas vezes. A vida tem dessas coisas: dias bons e dias ruins. As pessoas às vezes se esquecem disso porque nós vivemos em um mundo que parece querer que todos estejam rindo o tempo todo, que todos estejam permanentemente prontos para o sexo, festejando a vida maravilhosa. Mas isso é ilusão, nós dois sabemos que esse mundo é uma merda, que todas as pessoas têm seus dias tortos e que é uma sorte quando o seu santo e o da sua mulher estão em sintonia para uma boa trepada.

— É meio frustrante sair do tratamento assim.

— Exatamente por isso que você precisa sair.

— Hem?

— Uma premissa do tratamento homeopático, mesmo desse tipo estranho de “homeopatia” que eu ando praticando, é que o remédio só funciona enquanto existe doença. A partir do momento em que a doença deixa de existir o remédio passa a causá-la. Sua frustração é resultado de sua participação no grupo de terapia, e não de deixá-lo. Desapegue-se, garoto. Bata suas asas e viva sua vida. Aquilo lá não é mais para você.

— Mas… e os meus amigos?

— Caso não tenha notado, a maioria dos amigos que fez já saíram do grupo. Procure-os. E a propósito, pague-me o resto dos dois mil reais.

Naquele instante eu me dei conta do quanto fora eficaz o tratamento. A convivência com todas aquelas pessoas diferentes me apresentara a figuras paternais, como a Senhora Fontes ou o próprio doutor, a amigos de verdade, como o Aderbal, uma espécie de afilhada, como a Julieta e até uma namorada, a Eva, com quem planejava me casar.

— O objetivo do tratamento — disse-me o doutor indicando-me a saída — não é torná-lo feliz porque isso é impossível nesse mundo. Eu me contendo em tratar a solidão das pessoas. Acredito que você é mais um de meus casos de sucesso, e sem precisar receitar nada do maldito armário.

Na saída do consultório passei o cartão de crédito com a secretária e deixei o prédio me sentindo como quem acaba de montar um quebra-cabeças de duas mil peças, mas descobriu que a figura não fazia nenhum sentido. As palavras do Doutor Aristides eram coerentes, mas eu as ouvia como se elas fossem de madeira. Elas faziam ruído em meus ouvidos e não entravam em minha cabeça. Eu só conseguia continuar me perguntando de que forma o Doutor Aristides merecera os dois mil reais.

Quando perguntei para Eva, no entanto, ela foi pragmática:

— Você não precisa saber como, querido. Basta você aceitar que ele os mereceu muito.

Um mês e meio depois nos casamos. O Doutor Aristides não aceitou de maneira alguma o meu convite para padrinho de casamento. Na hora da cerimônia, porém, o motivo ficou claro: aparentemente não se chamava Aristides o risonho cavalheiro que entrou na igreja levando Eva pelo braço, envergando um rigoroso uniforme de médico da Marinha.


23
Nov 10
publicado por José Geraldo, às 23:20link do post | comentar | ver comentários (2)

Estou de férias. Finalmente. Bem, talvez não exatamente: na semana anterior ao merecido descanso anual (este ano eu fiz bastante por merecer) eu estou aqui em Juiz de Fora, hospedado num bom hotel, participando de um curso que, contrariando minhas expectativas construídas à custa das experiências anteriores, está sendo bastante interessante.

Como sempre, a oportunidade de estar em uma metrópole sinaliza com a oportunidade de fazer compra$! E é nessa hora que eu descubro que já fui rico.

Houve uma época na minha vida em que eu não achava nada caro. Eu cheguei a dizer certa vez a uma mulher com quem saía, pelas primeiras vezes, que «gasolina é barata». Naquele momento de minha vida eu tinha um guarda-roupa de artista, um carro do ano, calçados da moda. Tinha também dez ou doze anos a menos e uma vesícula biliar e dois dentes a mais.

Hoje eu não consigo mais andar tão bem vestido, meu carro tem cinco anos de uso e eu tenho trinta e sete janeiros acumulados. Não me sobra dinheiro para esses luxos, não me sobra, principalmente, o luxo de ter vinte e cinco anos de sonho e de sangue e de América do Sul.

E refletindo sobre isso, notando que eu não estou ganhando significativamente menos do que ganhava há dez anos (dia desses eu achei uns contracheques velhos jogados lá em casa), eu me dei conta de que você fica mais pobre à medida em que envelhece, mesmo que vá passando a ganhar mais.

Você fica mais pobre porque tem menos órgãos no corpo (cortados e jogados fora em nome da preservação dos que ficam), tem menos anos de resto para desperdiçar, tem um monte de responsabilidades, tem mulher e filhos.

Quando a sua vida não mais lhe pertence inteiramente, você se torna mais pobre. Quando você passa a pensar em mais alguém, você não consegue ser tão louco — e só os loucos são felizes. Minha pobreza aumenta à medida em que vou realizando etapas de minha vida, à medida em que me torno pai de família, profissional, escritor. Cada vitória destas me rouba alguns meses ou anos, e a cada instante eu tenho menos disso para gastar.

Está na hora de começar a escolher muito bem onde investir a riqueza que me resta, antes que a miséria me apanhe sem nenhum patrimônio.


19
Set 10
publicado por José Geraldo, às 19:35link do post | comentar

De qualquer ponto da cidade se pode ver a Montanha com sua ampla face de granito, uma larga presença a esconder o horizonte. Seu cume coberto de ralas árvores e rochas menores não é tão imponente, a não ser por estar tão alto. Subindo imponente como uma muralha, firmeza de séculos, sem flores nem poemas, é mais que um acidente geográfico, tornou-se parte da personalidade de Santa Cruz do Monte.

Ao pé da montanha cresceu a cidade, contemplando o granito e se agarrando à lama incerta do vale do Pardo. Santa Cruz do Monte sempre foi lembrada como uma cidade à sombra de uma montanha, não pelo rio nem pela floresta. Formou-se à base da Montanha como outras se formaram ao longo de rios, à margem de lagos ou no encontro de estradas.

Os primeiros habitantes, gente religiosa e nem sempre imune a lendas, aprenderam dos índios que o imenso rochedo guardava mistérios e era o lar de seres sombrios que não andavam pelos caminhos de Deus. Houvesse outra opção eles teriam mudado seu pouso para mais longe, mas a lógica do mundo não obedece aos impulsos da fé. Aquele lugar que transpirava a paganismo era um marco de referência visível desde muitas léguas, por ele as tropas de burros que varavam o sertão do século XIX entre o Rio de Janeiro e o interior de Minas Gerais precisavam orientar-se. Ali os tropeiros acampavam, reuniam-se a contar histórias e a fazer seus negócios. Por isso nasceu a cidade: a serviço das tropas, fruto do comércio desafiando as superstições e os séculos fechados nas matas ainda virgens do Sudeste de Minas, que um dia viria a ser chamado de Zona da Mata justamente por isso.

A gente que ia ficando era uma gente sem grande anseio de aventuras: eram pessoas que ganhavam suas vidas pacatas vendendo e comprando em torno das rotas do sertão. Lar de gente simples, o lugar era abrigo fértil para velhas lendas e superstições, facilitadas pela presença feminina das matas e pela proximidade intensa daquela gigante rocha de fúnebre aspecto.

Da inevitabilidade da convivência surgiu cedo a necessidade de conquista. Os homens que viviam junto àquele grandioso monumento natural não se sentiam tranquilos ao olhar para cima e ver apenas na crista do morro a fímbria do céu e as cores das nuvens. Por isso trataram de arranjar-se com Cristo para apor sua marca visível no sertão, aquela cruz de madeira negra que teve de ser tantas vezes refeita.

Não existem histórias de como ou quando pela primeira vez desbravaram as perigosas encostas ocidentais, através das quais, unicamente, se pode subir, a custo e ao longo de quilômetros, até o topo da Montanha. Não existem estas histórias, mas imagina-se que tenha sido há muito tempo que alguém teve a ideia de estender os caminhos até o cume e lá plantar uma cruz bem grande, visível desde muitas léguas, uma intervenção divina na paisagem pagã e natural do interior.

Não se sabe se foi antes ou depois da primeira capela, o que sabemos é que a primeira cruz estava lá muito, muito antes de alguém pela primeira vez deixar escrito algum relato, antes até de haverem resolvido mudar o antigo e terrível nome índio do lugar para o cristianíssimo Santa Cruz do Monte.

A fé daqueles homens rudes levou-os a cumprir estes desígnios, batizando a machado e a fogo a terra antiga e úmida, arrancando as árvores que vestiam a terra e expondo ao céu o vermelho de sua carne o negro de seus ossos de granito. No ano de 1917 a povoação, já chamada Santa Cruz do Monte, erguia um pequeno templo, que futuramente seria a paróquia de São Jerônimo e comemorava seu jubileu de diamantes. No alto da Montanha homens piedosos implantaram a marca definitiva da conquista daqueles sertões para a Igreja: o primeiro cruzeiro, simples estrutura de madeira enegrecida a fogo, obra tosca de marceneiros que não estavam acostumados a sutilezas, foi substituído por um potente e duradouro outro, gigantesco monumento feito de concreto e feiura, assentado sobre uma irremovível base de rochas prisioneiras do cimento.

A cruz, porém, como toda obra humana, foi pequena diante da imensa extensão que se descortinava desde a Montanha. Mesmo medindo cinco metros de altura e gastando mais cimento que muitas casas, só mesmo de muito perto podiam os viajantes perceber sua existência. Mas ainda assim ele dava aos habitantes a boa sensação de segurança no regaço do Senhor. Já haviam passado os antigos tempos em que os homens cruzavam com medo os sertões e as primeiras estradas já estavam riscando com suas cicatrizes cor-de-rosa a pele do país. Quando a catedral foi construída, décadas depois, a Montanha já não inspirava aquele velho receio e se transformara meramente em uma atração particular do município, apenas outro ponto a ser admirado pelos que passavam pela recém-construída rodovia.

Muito tempo passou e a cidade foi crescendo aos pés da Montanha, ocupou outros vales e outros montes, nenhum deles mais alto que a sombra dela. Com as décadas a paisagem foi se despindo de árvores, de pássaros, de brejos, daquele perfume doce úmido de mata. Ficou mais quente, predominou o cheiro impuro das pessoas e de suas coisas, de seus animais trazidos de longe. Vacas conquistaram as colinas, galinhas eram mais abundantes que jacus, camundongos competiam com as preás e mesmo as vidas das pessoas foram se normalizando, sua fala perdeu o jeito antigo e ganhou modismos trazidos pelo rádio, iguais aos que há em todo lugar.

A primeira vez em que vi a Montanha eu devia ter meus seis anos ou pouco mais ou menos. Lembro-me de tê-la acompanhado da janela do ônibus que me levava a Santo Antônio. Observei com maravilha nos olhos até que não fosse mais possível virar o pescoço. No caminho havia outras montanhas, havia serras imponentes e vales largos. Mas não havia nenhuma montanha majestosa como o Morro da Cruz. Por isso guardei cada detalhe de sua fisionomia, fui lembrando através da viagem e por muito tempo ainda pensava no tamanho daquela selvagem beleza que as crianças não entendem quando veem, apenas veem e lembram.

Ao longo dos anos passei ainda muitas vezes por Santa Cruz do Monte. Eu era uma criança pobre e doente e nunca pude passear muito, a não ser nas vezes em que ia a Santo Antônio consultar um médico famoso que dizia que eu tinha uma doença de nome estranho e fazia meus pais me darem muitos remédios de nomes compridos, um luxo que muitas vezes nos pôs em graves dificuldades financeiras mas não me curou.

Nunca entrava na cidade nessas vezes em que viajava — a não ser nas raras vezes em que dávamos o azar de embarcar num ônibus comercial. Minha mãe detestava quando isto acontecia porque a viagem demorava três horas ou mais, de tanto irmos parando em cada cidadezinha, em cada guarita de beira de estrada. Eu confesso que gostava, pois só assim podia ver ainda mais gente, ver mais lugares diferentes, às vezes até crianças brincando felizes. Nunca entendi porque a minha mãe sempre tinha tanta pressa de chegar. Para mim, e para todas as crianças felizes, a pressa ainda era um mau hábito que só o futuro ensinaria; naquela época eu ainda tinha tempo para ver as belezas do mundo em seu próprio ritmo.

No entanto, a minha infância infeliz, para minha felicidade, acabou por durar bastante tempo, pelo menos o suficiente para que eu conseguisse vir a ser feliz, embora não o bastante para que eu pudesse ser saudável. Ela acabou bem tarde, num belo dia em que descobri que namorar e montar robozinhos com pinos mágicos não eram atividades compatíveis…

Um dia um médico bem menos famoso descobriu que eu não tinha nenhuma doença de nome complicado, que não precisava tomar nenhum remédio de nome comprido. Ele dispensou-me de tudo aquilo e me permitiu fazer Educação Física pela primeira vez. Depois disso eu cresci, terminei os meus estudos e fui trabalhar. Minha vida passou a ser uma vida adulta e eu não tinha mais tempo para coisas tolas como enxergar a beleza do mundo. Piorou ainda mais depois que comecei a namorar. Tantas mulheres, tantos lugares para ir, tantas noites de sábado e nenhum tempo para olhar estrelas. Fui esquecendo as belezas velhas do mundo, as coisas trágicas e incríveis que existem desde sempre. Precisei ficar pobre para perder um pouco destas manhas e mumunhas de adulto e poder ver de novo o que há de bom em coisas simples.

Foi há poucos anos que a Montanha voltou a fazer parte de minha vida. Havia deixado um emprego de muitos anos e estava ganhando a vida como um simples professor contratado. Era uma vida com bem menos dinheiro, mas eu tinha bem mais tempo para pensar em coisas boas como amar, gostar de Deus e ver a beleza das coisas. Também acabei vivendo relações em vão, me esquecendo de Deus e outros medos de infância e enxerguei a fenomenal feiura que pode haver, especialmente nas cidades. Tive bons amigos nesta época, pude fazer com bem pouco dinheiro muita coisa que eu sempre sonhava e não tinha tempo. Aprendi a gostar de Guilherme Arantes e de gente que canta boas músicas, com letras cheias de sentido e melodias agradáveis aos cinco sentidos.

Nessa época eu tinha muitos empregos, nenhum que me prendesse. Um deles era justamente em Santa Cruz do Monte e ele me dava a chance de ir lá algumas vezes por semana, geralmente nas terças, quintas e sábados. Minhas idas repetidas, quase quotidianas, fizeram de Santa Cruz um lugar como qualquer outro. Por isso eu deixei de ver a Montanha com aqueles olhos maravilhados de quando eu era criança: eu passava tanto tempo lá, conhecia tanta gente de lá, fazia tantos lanches no bar da esquina olhando para a parede de granito que não via nada de mais naquela presença toda que lá estava a fazer sombra sobre metade da cidade, emparedando um lado do horizonte. E de repente a Montanha não era mais nada de estranho, de repente ela fazia parte da paisagem, como uma coisa qualquer em que ninguém quase prestava atenção. Nessa época também eu já sabia que a Montanha não era tão maravilhosa quanto fora. Não era mais aquela imponência virgem do passado: haviam derrubado a maior parte das matas, haviam feitos cercas que subiam pelas encostas íngremes, haviam posto postes, torres e antenas em sua crista alta, mais alto até que o cruzeiro. Essa visão de natureza profanada derrubava um pouco o poder de atrair que antes lá houvera.

Já não era mais sentido como aventura haver visitado o topo da Montanha. Na verdade eram bem poucos os jovens santa-cruzenses que não o haviam feito. Namorando ou para outras finalidades menos saudáveis e felizes, muitos subiam pelas estradinhas de terra que levavam ao cume para aproveitar a cada vez mais rara solidão de lá. Frequentemente viam-se faróis brilhando lá no alto quando era alta madrugada, indicando alguma travessura em curso. Nessas circunstâncias os pais se desesperavam querendo que as filhas já tivessem voltado para casa.

Naquele tempo ainda se usava ir de carro a lugares ermos para ouvir música e namorar. Parece que hoje já não ousam mais fazer isto, pois em cada lugar parece que pende uma insegurança, um clima de ameaça que não havia então. Ou talvez fôssemos apenas jovens e loucos, incapazes de enxergar perigos. Bastava entrar pela Avenida Getúlio Vargas e lá pela terceira ou quarta esquina chegava-se ao entroncamento da estrada que, sabíamos, subia até lá em cima, a estrada por onde todos os carros passavam rápido, tarde da noite, com os vidros erguidos mesmo no verão.

Um dia foi o meu carro que subiu por lá, mais ou menos no começo da fase louca de minha segunda adolescência. Dirigi pela estrada íngreme, estreita, empoeirada e deserta. Subindo sempre, até sentir a pressão do ar contra os tímpanos. O último relance de subida era perigoso, um escorregadio lance calçado de paralelepípedos, ainda por cima estreito de caber um carro só. A minha namorada respondia com risos a cada derrapada, no nervosismo alegre de estar numa aventura. Flávia tinha dessas coisas, talvez por isso eu gostava tanto dela: gosto dos que mudam o seu medo em respeito e usam de cautela para brigar contra os limites. Ao lado dela eu tive coragem de acelerar sem medo, hoje penso se faria de novo, numa noite úmida de sereno como aquela, junto a um barranco medonho como aquele. E eu não estava bêbado. Talvez só de amor.

Do alto uma visão quase que mágica: salpicadas pelo horizonte as luzes das cidades vizinhas rompiam o manto negro dos campos na lua nova. Uma, duas, três, quatro. Dependendo da transparência da atmosfera se poderia, talvez, contar mais delas. Pelo menos uma das cidadezinhas deixava transparecer a teia de ruas de um bairro. Dava para imaginar porque os primeiros brancos a andar por esses sertões tinham tanto receio.

A cruz de concreto não estava no cume, ao contrário do que pensávamos. Se estivesse, seria bem pouco visível lá de baixo. Por isso haviam-na colocado à beira do rochedo em um lance de descida da última escarpa do lado mais íngreme, abrindo seus braços brancos para saudar o vale amplo que de lá se abria. E ela que parecia estar contra o céu, posta no alto mais alto da Montanha, inalcançável e tão imensa quando vista de baixo, vista de perto era apenas um pequeno monumento de concreto, sem beleza nem imponência.

Foi muito boa a sensação de sentar no chão da encosta, acima do cruzeiro, sentindo um pouco como se estivéssemos acima de tudo e de lá pudéssemos contemplar um leque bem grande da superfície plana do mundo. Flávia teve naquele momento uma sensação parecida com a minha, parece que fomos crianças por algumas horas lá, ou anjos. Andamos por todo o terreno semiplano, coberto de pasto ralo, sob o escuro da lua nova. Víamos muito mais estrelas naquela noite sem lâmpadas, silenciosa e escura; não ouvíamos, além de nossos risos, nada que pudesse assustar. Eu sorri quando disse a Flávia que a felicidade é bem perto do abismo. Ela sorriu de volta e me chamou para bem perto da escarpa de trezentos metros pelo menos, de lá olhamos a cidade lá embaixo, parecendo tão murcha e adormecida.

Tivemos coragem de beijar por muito tempo, de fazer amor, de demorar por lá, de cheirar bastante o perfume imaculado daqueles ventos frios à beira do abismo. Mas não tivemos coragem de ligar o rádio do carro. Por mais bela que fosse a música, não seria mais bela que aquela oportunidade tão rara de escutar o silêncio.

Voltamos à Montanha ainda algumas vezes, cada vez mais fascinados por aquele escuro silêncio, lá mais perto das nuvens, longe das pacatas vidas das pessoas. Mas começamos a perceber que não éramos os únicos, e aos poucos fomos perdendo a coragem de ficar mais tempo, de sair andando pelo pasto admirando estrelas, de fazer amor no carro ouvindo a calada da noite. Nas últimas vezes nem tivemos mais coragem de chegar. Foi nessa época que fizeram as primeiras construções, para abrigar os instrumentos automáticos das torres de transmissão de televisão e de telefone.

Visitamos algumas vezes durante o dia, mas a mágica não era a mesma, parecia nem existir. Claro, se podia ver um horizonte enorme, uma luz intensa e as cores da distância graduadas como numa pintura da Renascença. Mas a imponência da montanha ficava menor porque não podíamos ver os fantasmas das luzes das cidades, porque não podíamos perceber que ali havia mais estrelas que as que víamos das janelas quadradas de nossas casas no vale.

Nessa época a Montanha perdeu seu resto de selvageria. Depois das torres de transmissão vieram as casas de fazendas e as cancelas nas estradas. Então puseram mirantes, construíram quiosques e fizeram do lugar um ponto turístico; o que quase sempre significa destruir o encanto e transformar a paisagem em um “cercadinho” para gente que não vem sonhar, mas gastar dinheiro. A beleza sempre é de graça, mas o turismo custa dinheiro.

O último golpe contra a montanha foi quando algum desses ricaços construiu sua mansão junto à escarpa, de forma a dominar o vale com sua feia imponência arquitetônica. Uma destas casas feitas para gordos fins de semana de churrascos, para a criação de cães de raça e para festas com mulheres ou amantes. Aquela construção feiosa, com suas telhas e janelas pseudo coloniais, apareceu lá em cima como um castelo medieval dominando uma planície. Para que a fizessem foi preciso cortar a trator um trecho plano na encosta, deixando uma cicatriz vermelha que desmoronou manchando o granito milenar, e foi preciso derrubar bastante da última mancha de mata para que da varanda o proprietário pudesse contemplar a paisagem, como um barão a vigiar os seus domínios.

Nesta época minha tristeza coincidiu com muitas coisas, com o fim dos dias de ingênuo amor com Flávia, breve intervalo infantil e feliz que eu pude ter de novo aos trinta anos. Cada vez que eu olhava para o alto e via aquela casa eu me sentia como se alguém houvesse invadido e destruído o meu mundinho, se assenhorado de meus antigos sonhos e me despejado deles. Aos poucos fui detestando aquela construção, mesmo sem nunca tê-la visto de perto e sem nunca ter conhecido o seu dono. Na verdade eu comecei a perceber que odeio cada coisa que muda o mundo, cada coisa que me lembra de que a vida passa, que os dias de inocência acabaram e agora tudo que me resta é ter momentos de beleza em meio a aridez do dia, flores brotando do calçamento, sujas da poeira, prestes a serem arrancadas pela primeira mão que passe.

E de repente vemos surgirem estas coisas mundanas e sem espírito, casas feitas segundo riscos de arquitetos que copiam de outros arquitetos, torres e antenas fabricadas com peças de montar que vêm de longe e são feitas, idênticas, em milhões de unidades. E percebemos que elas venceram com sua torpe e grandiosa monstruosidade, que conseguiram marcar com mais força a presença da mão humana que dominou e destrói aquele gesto de potência que Deus deixou no meio desta terra que um dia foi chamada de “sertão”.

Imperceptivelmente, porém, uma mudança maior aconteceu. Talvez um velho espírito que por lá vivia resolveu mudar-se, ou talvez morreu. Temos visto nos últimos anos que o granito já não é tão negro, que o verde das encostas desbotou em cinza. E neste último abril uma fenda se partiu na face do rochedo, uma lasca desprendeu-se e desceu a trovejar. Oficialmente dizem que a única vítima foi uma vaca infeliz. Sabemos, porém, no fundo de nós mesmos, que há outras vítimas pelo menos: a beleza do velho marco que já não resiste a ser domado como outra montanha qualquer e a velha graça de uma cidade ousada que o homem plantou no meio do sertão e que hoje é apenas uma cidade comum, até bem perto da civilização graças aos trens, às estradas e aos aviões.

Mas ainda há os que, como eu, olham para a parede de granito e veem na cicatriz da pedra que caiu a evidência de que a saudade não é inofensiva.

Leopoldina, 20 a 22 de julho de 2005


11
Set 10
publicado por José Geraldo, às 22:35link do post | comentar

Estamos tomando uma cerveja no Maneira Mineira quando a figura aparece outra vez, envergando o mesmo sobretudo negro de ontem. Tem os olhos mergulhados numa poça disforme de maquiagem borrada, as orelhas pontiagudas adornadas por alguns brincos de prata, a face pálida parece uma tela virgem perdida no meio da cabeleira solta, esvoaçando, de cor morta e penteado inexprimível. Ela não sorri, parece incomodar-se com o ruído selvagem desta praça animalesca onde se acasala a juventude, mas mesmo assim tão deslocada ela está aqui.

Ninguém sabe dizer de onde veio a monstra. Cada um que a vê chegar diz que é de um lugar diferente. Uns dizem que vem da Fábrica, outros a viram subindo da Cotegipe, outros juram que veio da Avenida Getúlio Vargas, há até quem a tenha visto descer do Morro da Panela. Cada noite ela parece vir de uma direção diferente, mas sempre no mesmo passo miúdo e nervoso, com os mesmos olhos serelepes e tristes.

Ela passa lentamente por entre a multidão, deixando um cheiro leve de mofo e de traça misturado com algum tipo de perfume barato, ou sabonete. Sempre com as mãos nos bolsos, com os dentes dentro da boca, com a boca fechada para não entrar mosquito, com a cara amarrada de quem detesta o que faz. Nós a apelidamos de “vampira”.

A vampira de Leopoldina está sempre sozinha quando aparece, no começo da noite. Sempre andando devagar e atentamente, observando com astúcia e com melancolia enquanto as pessoas se empaturram de carne e cerveja. Depois vira uma esquina e não a vemos mais.

Ninguém sabe onde a vampira vive, ou o que faz. Ela não se parece com ninguém que anda pela cidade durante o dia. Talvez exatamente por isso o apelido lhe assente tão bem. Ninguém imaginaria encontrar tal figura vendendo remédios numa farmácia, atendendo numa loja de móveis, ou servindo num restaurante. E por ser branca, e por ter alguma coisa que evoca beleza, ela certamente seria aceita de preferência em qualquer emprego desses. Ela não vende, não atende, não serve. Tampouco se encaixa.

Hoje resolvi seguir a vampira até o seu covil. Dizem que eu sou louco. Acho que sim. Vou seguir a vampira até onde ela for, extorquir-lhe esse segredo. Descobrir quem ela é, apoderar-me de sua identidade.

Para isso vai ser preciso coragem: estou aqui há duas horas bebendo sozinho e ainda não a tenho. Nem a coragem e nem a vampira.

Tenho é medo de que quando ela venha eu não consiga me levantar, de bêbado ou de atônito. Se a seguir descobrirei quem ela é, então ela deixará de ser a vampira e o seu casaco será, sobretudo, apenas uma roupa velha, talvez somente isso. Quando ela deixar de ser vampira, talvez não me fascine, então por que eu devo extorquir-lhe esse segredo? Com que direito quero me apoderar de sua identidade?

Mas eu prometi a tanta gente, afirmei tanto meu desejo. No fundo eu queria mesmo ir com ela, até onde fosse, ser vampiro com ela por uma noite, descobrir o que há debaixo da maquiagem pesada e do sobretudo, despi-la e banhá-la de beijos. Mas ao mesmo tempo eu temo que debaixo da roupa preta e do rímel borrado não senão uma garçonete de bar, uma vendedora de loja, uma caixa de supermercado. Ainda serei fascinado pela vampira quando a vir diante de mim, com espinhas e tudo, com seios que um dia vão cair, ou já caem, com pernas que têm pelos e joelhos que se dobram como os meus, com unhas quebradas, com dentes que amarelaram de sorrisos tristes?

Será que ela sabe que o sobretudo e o rímel e o cabelo e o perfume que cheira a mofo e as mãos nos bolsos e os dentes dentro da boca… será que é de propósito que uma garota comum assim se traveste, se vampira, para ser, pelo menos na noite, alguém diferente? Se eu soubesse disso talvez gostasse mais da vampira. Talvez eu entendesse porque pus esse casaco preto e estes óculos escuros, que fazem os outros me olharem torto e afastam meus amigos da minha mesa. Terei eu seguido a vampira ontem? Faz tantos dias que eu sonho com isso? Terei sido mordido?

Uma nota importante. A referência ao fato de a personagem ter facilidade para achar certos empregos é uma crítica velada ao racismo inerente à regra da “boa aparência”. Não me xinguem de racista.


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