Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
26
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:36link do post | comentar

Eduardo Galeano — jornalista, cartunista e escritor uruguaio — publicou uma série de coisas que sonhava acontecessem no mundo após a virada do século. Considerando a natureza da prosa deste autor, o tipo de coisa que ele sonhava não é inesperado; mas para muitos soará estranho, pois há os que pensam que este autor se limitou às Veias Abertas da América Latina, obra que a esquerda toma como bíblia e a direita renega como se fosse um grimório satânico. Por causa do peso deste livro (que tinha a intenção de realmente pesar) o resto da obra onírica de Galeano às vezes passa despercebida, ao meu ver imerecidamente.

No texto em questão, publicado ainda quando este século era distante, o autor uruguaio tentou nos pintar um mundo onde os sinais estivessem trocados, e de uma forma estranha o texto nos deixa com a sensação de que uma inversão total de valores nos faria mais felizes. Da impossibilidade de tal feito ter lugar, surge-nos a dúvida filosófica: afinal, somos felizes como somos?

O texto original de Galeano pode ser conferido aqui. De minha parte, resolvi fazer um aparte ao que ele escreveu, e adicionar alguns itens, remover outros, reescrever alguns, resultando no seguinte:

No meu mundo ideal os automóveis seriam atropelados pelas pessoas e teriam de refugiar-se, temerosos, nas ruas afogadas por calçadas que cada vez se alargam mais. O ar seria poluído apenas pelo perfume das árvores e pelo cheiro das moças. As pessoas não seriam possuídas por seus bens, nem programadas por seus computadores, nem compradas pelos mercados nem observadas pela televisão. Que, aliás, seria tão importante nas casas quanto o ferro de passar ou a lavadora de roupas. As pessoas não trabalhariam para ganhar o seu sustento, mas para sustentar os seus sonhos. Não se prenderia nunca aos que recusassem servir às Forças Armadas, mas aos que sonhassem servir. Prostitutos seriam apenas os que sentissem prazer na promiscuidade. Seria incompreensível mencionar que certos conceitos seriam incompreensíveis para certos povos. Loucos seriam chamados aqueles que negassem aos outros o direito de viver suas loucuras. Nenhuma pessoa teria crédito por dizer-se representante de Deus, a ponto de dizer aos outros o que fazer e o que não fazer. As pessoas sentiriam saudades apenas de coisas e seres que conheceram, e não de animais e seres extintos pela ganância humana. A polícia serviria para proteger ao povo, e não para proteger o governo do povo. E todos viveríamos cada dia como se fosse simultaneamente o primeiro e último.


08
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 19:07link do post | comentar | ver comentários (1)

A viagem entre Cataguases (minha cidade natal) e o local onde fica a Praia do Sossego (a verdadeira, que inspirou alguns dos episódios de meu romance deste nome) dura apenas algumas horas. Mas a viagem entre a concepção e a publicação de minha obra de estreia em livro demorou bem mais que isso: foram 11 anos!

Hoje finalmente recebi um email da editora confirmando que meu romance de 218 páginas, além dos cem exemplares que adquiri para noite de autógrafos e promoções várias, também está à venda no website. Este passo era psicologicamente muito importante para mim, pois somente desta forma posso finalmente saber que meu livro foi “publicado” (com todos os efes e erres que esta palavra não tem).

Agora convido a todos os amigos virtuais que fiz nesses quase seis anos de atividade nas redes sociais: conheçam este meu humilde trabalho, no qual coloquei muita inspiração, mas nem tanta transpiração, ao contrário do que os onze anos podem dar a entender, pois boa parte deste prazo foi perdida entre a concepção inicial e a revisão final, sem falar do ano e meio de negociações com a editora e com o meu orçamento…

Desde hoje já posso me considerar realizado. Sou um autor publicado, e não publiquei pouca porcaria não, é um livrinho grossinho o suficiente para parar em pé na estante.

Quanto aos amigos que residem na minha cidade natal, ou em Leopoldina, onde atualmente vivo, ou em qualquer cidadezinha das redondezas (incluindo Juiz de Fora, nosso distrito comercial…) dentro em breve organizarei um evento para marcar formalmente minha entrada, com casca e tudo, no mundo das letras.


19
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 17:49link do post | comentar
Há cem bilhões de flocos de neve girando na fúria do cosmosCada um deles é uma galáxia, um bilhão de estrelas ou mais,E cada estrela, um milhão de terras, um gigantesco sol ardenteNo alto de algum céu, talvez brilhando sobre alguém.E bem no fundo de um floco de neve, flutuo em silêncio.Eu sou infinitesimal, impossível de ver.Sentado na pequenina cozinha de meu lar pequenino,Contemplo através da janela um universo de flocos de neve.Mas minha alma é muito maior do que este meu minúsculo eu,Estende-se pela nevasca, como uma rede pelo mar adentro.De todos os lugares adoráveis aonde meu corpo não pode ir,Eu toco a beleza e a abraço no seio de minha alma.E é tão breve e rápida esta minúscula vida minha,Como uma única semínima na marcha do tempo.Mas minha alma é a música, e vem desde tempos antigos.Antes de vestir a face humana, antes de levar meu nome.Porque minha alma é muito mais velha que o meu ser fugidioE sabe descrever a aurora do tempo como memórias de infância.Ela é uma fagulha produzida na escuridão tempos atrás,O que meu corpo esqueceu, continuo a lembrar em minha alma.Então vivemos juntos a vida, minha alma gigante e o mínimo eu.Uma aparência de eternidade, outra fumaça soprada na brisa.Uma oceano que permanente, outra uma onda súbita e fugaz.Contando as galáxias flocos de neve, juraria que somos iguais.Oh, minha alma pertence à beleza, me leva a alturas sublimes,Ensina-me histórias sagradas, santifica minha vida minúscula,Faz ponte entre as eras, dissolve as fronteiras dos ossos,Pinta para sempre uma face corajosa nesse momento passageiro.

23
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 14:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Em algum momento, em 2003, eu tive um sonho no qual me via seguindo uma mulher a cavalo, vestida de negro. Na época eu ainda não conhecia o som do Uriah Heep e não poderia ter feito a ligação com “Lady in Black”. Em vez disso, o sonho se referia mais à uma figura existente na capa da edição de “As Brumas de Avalon” que eu tinha comprado naquela época. A “Senhora da Magia” levando Excalibur à mão e cavalgando um cavalo branco.

Este sonho acabou se conectando, pelas tortas vias da inspiração, com outro que eu tive no dia seguinte, no qual me via na pele de um perseguido político, ameaçado de tortura. A conexão dos dois resulta no argumento inicial do conto. A segunda parte, escrita cerca de duas semanas depois, procurou relacionar os episódios algo sobrenaturais narrados na primeira a algum tipo de acontecimento histórico conhecido. Eu planejava fazer outras conexões mais amplas, usando, por exemplo, um outro conto que eu intitulava “História de uns Fantasmas” (que acabou resultando em “Inocência Assassina”). O plano que eu tinha era de um romance, ou um ciclo de contos, baseado em um universo paralelo conectado com o interior de Minas Gerais.

Mas o projeto não prosseguiu. Em parte isso foi porque eu não gostava muito de histórias de fantasia e terror, mas a principal razão foi eu não vislumbrar maneiras de dar prosseguimento à história. Durante muito tempo os contos “A Cabana ao Pé da Montanha” (atual Parte I) e “A Mansão Além da Montanha” (núcleo da Parte II) figuraram como duas histórias independentes e inacabadas em meu antigo site. Porém, durante o ano de 2009, eu resolvi retomar o projeto do “Grande Romance Místico Mineiro” e acabei revisitando os dois contos. Na época escrevi um terceiro conto, chamado “O Círculo Entre as Montanhas”, que foi o esqueleto da Parte III. Este conto nunca foi publicado.

Por fim, agora no comecinho de 2011, numa tarde razoavelmente inspirada, eu revisei os três contos, consertei as conexões entre eles, tornando-os efetivamente partes de uma mesma história, e os publiquei no blog (usando a ferramenta de agendamento de postagens).

A “Cabana ao Pé da Montanha” ainda será revisado algumas vezes, certamente aumentado em talvez até 50%, mas já está em uma forma apresentável. Ele será, futuramente, uma espécie de introdução ao universo da “Serra da Estrela”, no qual vou ambientar um romance e alguns contos. Nesse universo, as lendas brasileiras existem, de certa forma, e algumas maldições portuguesas foram desterradas.


20
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
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<div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div><p>A desolação escaldante da paisagem parecia piorar à medida em que o sol subia no céu, e os fatos da noite, ainda queimando na minha memória, me impediam de pensar com propriedade. Que maldito lugar era aquele? Por que as malditas sepulturas estavam esvaziadas? Quem era a Inês, que se parecia tanto com a mulher que se matara na colina? Tantas perguntas. Nenhuma resposta.</p><p>Fui perdendo o medo de ficar por ali e retornei à casa. Seus longos corredores de paredes sem pintura tinham uma frieza cavernosa, apesar do sol que vergastava a terra lá fora. Uma formidável construção, feita para resistir às intempéries dos trópicos. Curiosamente, uma construção da qual eu nunca ouvira falar, mesmo residindo, em teoria, a menos de cem quilômetros dali.</p><p>O lugar realmente se parecia com um mosteiro abandonado. Os demais quartos, que permaneciam fechados, tinham o seu ar de claustro mais preservado, com móveis ainda mais rústicos e até mesmo um ocasional rosário de contas negras pendurado na parede. Boa parte do que normalmente se encontra em um tal lugar estava, porém, faltando. Não havia biblioteca e a capela estava ausente. Apenas um terreno pavimentado de pedras encaixadas, bem ao lado da construção maior, dava a ideia de que ali existira um templo cristão. O que motivara sua completa destruição era algo que me escapava. A igreja maior, localizada onde deveria ter sido a aldeia, ainda estava lá, mesmo arruinada e coberta de ervas. Apenas a capela dos monges tinha sido obliterada da face da terra.</p><p><a name="more" rel="noopener"></a>Vasculhei o prédio durante todo o dia, na esperança de encontrar algum registro deixado por algum dos antigos moradores. Mas não havia nada. Nenhum livro, caderno ou simples calendário com anotações. Na verdade, à medida em que eu percorria aquele lugar, ficava com a impressão mais forte de que ele estava se desfazendo diante de mim, como se os séculos tivessem resolvido finalmente andar.</p><p>Vendo, então, que não havia nada que pudesse me dar notícia do lugar onde estava, decidi que era melhor mesmo retornar ao único lugar onde encontrara alguém com respostas: a cabana ao pé da montanha. Quem sabe a jovem grisalha estaria lá, embora tivesse me alertado para não permanecer naquele lugar por muito tempo?</p><p>Fiz uma trouxa com comida para alguns dias, escolhendo com cuidado na despensa pouco provida. Montei o cavalo sentindo medo, talvez, de algo mais grave que a morte ou mais dolorido que o pau de arara. Deixei que o animal me levasse, e notei com estranheza que ele parecia não ter mais nenhum tipo de receio, nem de ir e nem de voltar. Como se alguma sombra que antes o assustava tivesse sido removida.</p><p>O caminho de volta à montanha não teve aventuras. Passei com cuidado pelas encruzilhadas que não conhecia, temendo especificamente aquela que me faria dobrar a crista do monte e entrar de volta na pequena estrada vicinal que me trouxera, fugido, do mundo onde eu era um criminoso. A custo localizei a entrada da picada na parede fechada da mata virgem, através da qual cheguei ao prado florido à beira do regato, ao vau por onde se podia cruzar a pé a correnteza e à estrada pavimentada de pedras chatas pela qual se subia ao cume fatal da Montanha.</p><p>Não sei que horas eram, porque meu relógio de corda andava louco desde que deixara a civilização. Sem outros com que conferi-lo, poderia estar marcando qualquer hora. Mas eu sabia que devia ser por volta de seis da tarde, ou pouco mais, porque o sol já ia tocando as serras, o ar já tinha um sopro frio que descia pelas árvores, um vento que fazia os troncos estalarem fantasmagoricamente.</p><p>Encontrei a jovem grisalha, vestindo sua longa túnica negra, sentada em torno de uma mesa de madeira rústica, à sombra de uma alta árvore, cuja copa se perdia acima das copas menos notáveis de outras árvores: um centenário pau-brasil, cuja casca rescendia um aroma suave no ar. Ela me acompanhava com os olhos, sem demonstrar emoções. Aproximei-me calado, sem ter mesmo ideia de como dar início à conversa.</p><p>Quando me aproximei dela, a ponto de poder perceber que ela não era, de fato, tão jovem — mas não tão velha que devesse ter aquela cor lunar nos cabelos.</p><p>— Estou confuso — foi o que eu consegui dizer, depois de algum tempo.</p><p>Ela me mostrou um sorriso, ou rosnado, e olhou para os lados e para cima, como se tivesse algo que eu devesse ver. Mas não havia nada, apenas o silêncio e os estalos dos troncos movidos pelos ventos e o murmúrio da água do regato.</p><p>— Como eu pude ter encontrado Inês ontem se a vi matar-se anteontem?</p><p>A jovem grisalha se levantou e caminhou até mim, sem que seus pés descalços quebrassem as folhas secas do chão. Ela me estendeu os braços, cobertos de marcas azuis de tatuagens e maldições milenares. Os olhos dela tinham uma tristeza tão profunda que eu tive vontade de abraçá-la.</p><p>— Ah, querido. Tudo é tão complicado. Tudo seria tão mais simples. Eu mesma não entendo tudo. Não entendo onde estou mais, é como se eu vivesse um círculo eterno. Uma solidão que nunca passa. Desde que vieram os homens de branco, com aquele maldito ritual. Parece que o tempo sempre volta e vem, e vai e está. As coisas acontecem depois de suas consequências, as vidas e mortes sempre se repetem e eu sempre permaneço aqui em torno desta cabana, tentando ir e nunca indo, tendo de testemunhar através das décadas e dos séculos a traição e a morte que tanto me magoaram.</p><p>— Quem é você? O que é você?</p><p>A jovem grisalha me olhou desolada.</p><p>— Quem eu sou não importa mais, nem o que eu era. Tu és apenas mais um que chega, para enfiar outro espinho no meu coração. Quantas vezes não contei minha história a homens como tu, ou mulheres! Quantas vezes não os amei, matei ou ignorei! Nada importa. Vivos, mortos, amados, feridos, abandonados. O tempo continua sua dança em torno de mim e outros vêm.</p><p>Quando disse que muitas vezes havia matado, não pude deixar de notar a adaga de lâmina curva que levava à cintura: distintivo certamente de uma ordem hermética. Estava diante de uma bruxa, de uma proverbial bruxa das histórias infantis. Das que são capazes de matar ou amar com a mesma intensidade e indistintamente. Isto explicava o livro em língua estranha, língua de bruxa. E por isso aparecia ao anoitecer.</p><p>Recuei dois passos enquanto ela falava. Começava a acreditar em toda aquela loucura. Ela não percebeu, ou fingiu não perceber. Minha curiosidade ainda me queimava, mas não tanto quanto o ferro em brasa dos torturadores:</p><p>— Eu não sei quem és. Mas eu quero, eu preciso ficar por aqui. Eu não entendo onde estou, não sei o que estou fazendo. Mas quero e preciso ficar.</p><p>Ela me olhou sem surpresa:</p><p>— Outros antes quiseram ficar.</p><p>— E não é bom que de vez em quando alguns queiram ficar? Se é como você diz, a solidão das décadas já deve ter se acumulado demais.</p><p>— Oh, querido. Tu não entendes nada, e o que dizes é loucura!</p><p>— Se o que digo é loucura, então ouça o que digo: eu preciso de ajuda. Preciso de um lugar onde possa ficar escondido, por alguns anos, talvez para sempre. Dizem que as irmãs sempre ajudam quem as procura com sinceridade e sem desejar o mal.</p><p>Ao ouvir-me mencionar “as irmãs” a jovem grisalha se empertigou subitamente, como se lhe tivessem cutucado em uma parte sensível do corpo.</p><p>— O que sabes, profano? Como reconheces o nome secreto!?</p><p>Se fosse verdade que ela estava há séculos presa naquele canto perdido de Minas Gerais, fazia sentido que ela não imaginasse a facilidade com que se podia ter acesso aos grimórios do passado.</p><p>— Calma, irmã. É em paz que venho.</p><p>— Quia est nomem tuus?</p><p>— Johannes</p><p>A bruxa pronunciou com uma rapidez quase cômica uma série de imprecações em alguma língua mais antiga e mais assustadora que o latim, durante a qual a forma latinizada de meu nome foi repetida várias vezes. Então ela sentou e começou a chorar:</p><p>— Já não funciona mais. Já nada funciona.</p><p>— O que não funciona?</p><p>Aproximei-me dela com cuidado, mas sinceramente comovido, e acariciei os seus cabelos descoloridos pela dor da solidão eterna. Ela permitiu que eu o fizesse, murmurando entre soluços:</p><p>— Oh, tu sabias, velho maldito. Tu o sabias! A carne é frágil diante da solidão e do tempo. Tu o sabias, maldito!</p><p>A bruxa me conduziu de volta à cabana, à sua cabana. Ali ela me preparou um chá, que eu bebi com receio e vagareza, temendo que ela me envenenasse. Mas não era nada disso: apenas hortelã-brava fervida em pura água da montanha e adoçada com o mel das abelhas selvagens.</p><p>Então ela me contou a sua história. Contou-me que se chamava Júlia Carneiro, que realmente fora bruxa em Portugal, que por isso recebera o degredo para o Brasil, casada à força com um proprietário de terras, que parecia ter a missão de espancá-la, mas que nunca ousara tocá-la, talvez por receios de sua fama de bruxa. Havia histórias horríveis sobre lábios com dentes e sobre escorpiões escondidos no útero. Em vez dela, o bronco engravidava as negras e as índias e se enchia de aguardente e de maldades. Um dia os negros e os índios da fazenda se revoltaram, os empregados não puderam resistir muito, pois uma enchente molhara os paióis de pólvora. Foi assim que ela se tornara viúva, vendo o marido ser esquartejado, “como um porco”, pelos vingativos negros, cujas costas tanto haviam sofrido a mando dele.</p><p>Sobrevivera ao massacre atirando-se no rio gordo e turbulento. Deveria ter morrido, mas salvou-se graças à arte mágica da natação, que bem poucas mulheres daquele século sabiam: só as que tinham sido raparigas de navio ou mulheres de pescadores.</p><p>Os índios a acolheram quando ela demonstrou algumas de suas artes. Mas uma pajé mulher era algo que não fazia sentido e ela acabou tendo de deixar a aldeia. Conseguiu retornar à civilização graças a um convento que estava sendo construído bem no centro da Serra da Estrela, a poucos quilômetros do Pico da Mesa, que dominava dezenas de quilômetros quadrados de planície pantanosa e pedregosa: o perigoso vale do Rio Vermelho.</p><p>Nesse ponto da história, fez uma longa pausa. Seu rosto, mal iluminado pela vela de sebo, parecia corar um pouco ao lembrar dos detalhes.</p><p>— Acreditas no amor?</p><p>— Sim.</p><p>— Acreditas no amor absolutamente sem fronteiras, no amor entre almas, ou crês que o amor está preso a corpos?</p><p>— Não sei o que dizer, mas acredito que o amor não pede licença e nem se explica.</p><p>— Eu ainda tenho receio de falar sobre o que aconteceu.</p><p>— Mas não me disseste, há pouco, que é uma história que já te cansaste de contar?</p><p>— Mesmo que a conte mil vezes, sempre terei receio de que a maldição se renove.</p><p>— Então somente me fales sobre isto se houver necessidade. E se quiseres falar. Eu não te cobro respostas. Tudo que desejo é abrigo na tempestade.</p><p>Lá fora soou um trovão distante.</p><p>— Um dia certamente eu te contarei a parte que mais me enluta. Mas por enquanto te baste saber que os padres descobriram tudo, acharam que havia obras do demônio em curso nesta região. Eles já tinham ouvido histórias, dos índios, dos negros, dos brancos supersticiosos que evitavam estas montanhas. Disseram que havia sido imenso o sacrilégio, tão imenso que havia contaminado toda a terra e que somente arrancando, como um tumor, o foco de infestação, seria possível evitar a “gangrena do mundo”. Foi assim que eles fizeram. Não sei a quem recorreram. Artes escuras de todas as partes foram conjuradas pelos homens de branco, a pedido dos padres e suas crenças. Não foi o Deus deles que fez isto. De uma forma sacrílega e estranha eles acharam que valeria até mesmo o recurso aos maiores inimigos da humanidade para poder fazer algo que a Cristo agradaria. E foi o que fizeram.</p><p>— O que foi que fizeram? Eu não consigo entender!</p><p>— Oh, querido. Não vês este emaranhado do tempo em que estamos? Aqueles malditos sacerdotes do Inominável fizeram o que os padres pediram. Amputaram todo esse território do mundo dos vivos, do presente, do passado e do futuro. Estamos aqui fora da geografia, fora da história, fora de tudo.</p><p>— Como assim? Isso não faz sentido? Como eu entrei aqui?</p><p>— A Arte deles não é perfeita, é claro. Ela não tinha que ser. Bastava que cumprisse o que havia sido pedido: não poderíamos jamais morrer ou sair, nem Inês e nem eu. Deveríamos viver a eternidade experimentando e expiando a culpa de nosso sacrilégio.</p><p>— Então é possível entrar?</p><p>— Sim. Muitos entraram antes. De vez em quando alguém entra. Quase todos acabam saltando do Pico, como você viu Inês fazer. Tu mesmo um dia o farás, quando estiveres cansado de mim e não puderes mais sair. Outros acham outros meios. Não sei de nenhum que saiu, mas deve ser possível sair, tanto quanto é possível entrar. Mas a quantidade de corpos no fundo do vale sugere que achar uma saída não é tão fácil.</p><p>Júlia foi me contando sua história naquela noite e eu tomando o chá de hortelã, segurando a xícara com cuidado para não queimar a mão. As palavras dela eram amargas, amargas como o chá que o mel não conseguia adoçar.</p><p>Foram muitas noites como aquela, na cabana ao pé da montanha. A cabana que Júlia construíra com suas próprias mãos para tentar parar a marcha cíclica do destino.</p><p>Muitas outras vezes nós vimos Inês passar, sem parecer vê-la, ou até mesmo a mim. Ela sempre subia ao alto do Pico e de lá se atirava ao abismo. Cada vez que isso acontecia eu pensava ver brotar um fio branco na cabeleira de Júlia. A contar pelos outros que já tinha entre os seus, eram dois séculos ou mais daquela agonia.</p><p>Todos os domingos, à tarde, ela subia a montanha e se atirava, sem dar mostra de nos ver. Júlia chorava ao ouvir o ruído do corpo dela corpo contra o chão e entrava a recolher-se, mesmo sem conseguir dormir. Lá pela madrugada velha ela acordava e saía, sem nunca dizer aonde ia. Assistir aquele espetáculo era uma terrível forma de começar a noite, praticamente impedindo que Júlia e eu tivéssemos qualquer atração.</p><p>De fato um dia eu não suportei mais tudo aquilo. Permanecera ao lado de Júlia querendo ter alguma explicação. Mas nunca tivera mais do que novas perguntas. Não sei quanto tempo demorou para que me cansasse, mas podem ter sido dois anos, ou vinte. Não quis, porém, atirar-me do alto do pico: preferi procurar uma saída. Afinal, eu já tinha uma vaga ideia de onde poderia haver uma.</p><p>Uma manhã, logo depois que Júlia retornou de seus misteriosos passeios noturnos e foi dormir, como sempre envolta naquela túnica de luto, roubei o caderno encapado em couro, que roubara do cadáver de Inês, e saí pela estrada levando uma magra trouxa com o resto de minhas roupas e alguma comida.</p><p>Cheguei à encruzilhada ao pé do morro. Durante o tempo em que vivera na cabana ao pé da montanha, passara muitas vezes por ali, sem nunca criar coragem para subir o morro e conhecer o que haveria do outro lado. Eu vivia com o pavor de haverem soldados espreitando para localizar-me e prender-me tão logo eu saísse detrás de alguma árvore e pusesse o pé na estrada.</p><p>Mas naquele dia o medo não existia mais: certamente a ditadura acabara e eu não teria mais que fugir de soldados e temer torturas. Subi o morro devagar, conquistando cada metro como se fosse um território inimigo. Esperava chegar ao alto e encontrar a beira de uma estrada, alguns carros passando. Ali talvez haveria o ruído de música e de vida urbana filtrado pela distância.</p><p>Não foi o que vi. O que havia diante de mim era o brejo sem fim do vale do Rio Vermelho, dominado pela presença tétrica do Pico da Mesa. Não fazia sentido: o caminho era praticamente em linha reta em direção ao leste, margeando o rio. Dava para acompanhar pelo sol. Mas eu estava ali, encarando de frente aquela paisagem que eu só deveria ver se viesse do sul. Era como se tivessem recortado aquele pedaço do mundo e emendado em torno de si mesmo, num eterno círculo ou buraco negro, cujos caminhos são todos espirais em torno de um ponto. “O Pico da Mesa domina uma região de dezenas de léguas”, dissera Júlia. Era fato.</p><p>Sentei-me em uma pedra e abri o caderno de Inês. Ele devia conter alguma pista adicional sobre o acontecido, mas estava coberto de garatujas angulosas.</p><p>— Meu Deus, são … são caracteres cuneiformes!</p><p>Ali estavam, desenhados com um tipo secular de pena, símbolos malditos e esquecidos de uma civilização extinta, anteriores à Bíblia e a Jesus. Símbolos anteriores às penas e aos livros, que eram antigamente gravados no barro usando estiletes de cana.</p><p>Guardei o livro no bolso, reconhecendo enfim que haveria uma solução para o mistério algum dia, se conseguisse sair daquele poço no tempo em que me metera. Sim, eu sempre temera sair e ser pego, mas nunca pudera, de fato sair. E no momento em que o queria, e muito, percebia que a saída era uma ilusão como outra qualquer.</p><p>Assim derrotado, saí caminhando a esmo por aquele mundo em redoma, procurando alguma brecha por onde pudesse saltar. Quando finalmente o cansaço me derrotou, e já era noite velha isso, achei uma pedra razoavelmente plana, à beira de uma encruzilhada, e ali me deitei, usando a trouxa como travesseiro.</p><div style="text-align: center;">***</div><p>Acordei na manhã seguinte completamente derrotado. Passara o dia anterior sem sonhar como sair. Depois dormira uma noite de pavores, ao relento e sobre uma pedra desconfortável. Sonhara com monstros que passavam em torno, carregando imensos cascos nas costas. Sonhara com monstros de olhos flamejantes, com homens de túnicas brancas que evocavam forças desconhecidas, fazendo o mal em nome do bem.</p><p>Mas quando amanheci e meus olhos doeram com o sol, percebi que estava à beira de uma rodovia maior do que as que conhecera antes. Por ela passavam continuamente imensos caminhões e inumeráveis automóveis, de modelos que pareciam saídos de filmes futuristas.</p><p>— Deus seja louvado! Voltei!</p><p>A encruzilhada já não existia. A pedra estava longe, empilhada com outras à beira do caminho.</p><p>Aos poucos fui me familiarizando com o mundo. Muita coisa havia mudado, mas não tanto assim. Consegui entrar em contato com a minha família e vieram me buscar. Para eles voltei como voltaria um defunto: receberam-me com uma incredulidade que somente minha semelhança com as fotos e a memória fiel de muitos acontecimentos foi capaz de convencer.</p><p>Havia pouca coisa que eu pudesse fazer. Felizmente eu tinha um irmão que era advogado e ele conseguiu-me uma indenização do governo, em nome dos anos de prisão e tortura que eu supostamente passara. Nunca consegui convencer ninguém da minha história alternativa. Com o tempo desisti de tentar. Aliás, o que me passou naquelas montanhas foi de fato prisão e tortura, mereço esse dinheiro.</p><p>Com ele reconstruí minha vida. Casei-me, tive filhos. Esqueci aquela história, guardei o caderno de Inês em uma gaveta da memória e toquei a vida. Hoje tenho sessenta e cinco anos e passei a ter certos sonhos que me incomodam.</p><p>Foi por causa desses sonhos que eu mandei uma cópia das notas do caderno para um especialista em línguas antigas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não posso dizer o nome desse homem: ele não leciona as disciplinas proibidas a que recorreu para fazer-me a tradução. Soube dele através de meus contatos com maçons amigos.</p><p>Recebi ontem a tradução. Foi por causa dela que resolvi contar a história que agora termino. O caderno contém muita coisa que não ousarei transcrever. Coisas, porém, que não deveriam condenar nem a Júlia e nem a Inês.</p><p>Deus não deve ter gostado mesmo que se amassem. A demolição da capela certamente serviria para purificar o lugar da mancha do que os padres assistiram naquela noite. Até o mosteiro teve que mudar de lugar, até os mortos já enterrados tiveram de ir junto. Porque o que veio a seguir afetaria a eternidade.</p><p>O motivo de meus pesadelos recorrentes é que eu passei a imaginar, veja só que loucura, a possibilidade de retornar. Amo a minha pobre mulher, claro. Amo aos meus filhos também. Mas este mundo em que tenho vivido parece tão alheio quanto o outro. A diferença é que neste eu envelheço e tenho um câncer.</p><p>Se eu puder retornar à Serra da Estrela, estarei condenado à eternidade. Desde que ache outra entrada, em algum acaso da estrada. Desde que Júlia me perdoe e não me sangre com seu punhal.</p><div class="nav"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha.html" rel="noopener">Parte I</a> <em>·</em> <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2011/01/cabana-ao-pe-da-montanha-parte-ii.html" rel="noopener">Parte II</a> <em>·</em> <a anchor"."="anchor&quot;.&quot;" rel="noopener">Parte III</a></div>

12
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:51link do post | comentar

Ela se foi e eu fiquei sozinho o resto da noite naquela casinha de pedras no meio do nada. Não tive, porém, tempo para sonhos loucos ou terrores noturnos: apesar do breve sono da tarde, eu estava cansado demais pelos três ou quatro dias de estrada para negar-me a dormir na cama macia e segura, apesar de suja.

Acordei na manhã seguinte com um sobressalto: nos últimos estertores do sono eu havia encontrado uma abertura para ter um pesadelo e lembrei da misteriosa mulher que se jogara no abismo.

Ao me levantar, deparei-me com o fogo aceso e com a mesa posta para o desjejum. Era curioso que isso acontecesse, visto que eu fora dormir sozinho naquela cabana. Mas sobre a mesa estava um envelope rústico contendo um bilhete numa caligrafia que parecia saída de um manuscrito medieval:

Tente não demorar muito nessa casa: ela não o salvará de si mesmo, e o exporá a muitos perigos que você não conhece. Não deixe que minha irmã Lua o engane.

O caderno que eu subtraíra da suicida estava dentro do envelope: sua capa de couro marrom estava úmida, como se manchada de sangue, do sangue dela. Mas não estivera assim quando o pegara. O cheiro dele era quase insuportável, como se o seu texto revelasse horrendos e imemoriais segredos. Coloquei-o na mochila pensando em tentar ler depois.

Tomei do amargo café e comi dos pães duros, untados de manteiga rançosa, e fui ver o que havia do lado de fora. O cavalo da desconhecida estava pastando no relvado próximo à cabana, e pareceu dócil à minha aproximação. Abracei-o carinhosamente, lembrando a pele áspera, mas feminina, de sua dona morta. O cavalo me olhou profundamente, como se tivesse inteligência em vez de ser apenas uma besta de carga.

Selei e montei aquele animal com o respeito que merecem os cavalos, pelo menos no mundo estranho em que eu tão de repente me perdera. Saímos pelas estradas

A estrada era larga, maltratada e pedregosa. Um cavalo poderia facilmente derrapar e cair naquele chão traiçoeiro. Ninguém seguia no rumo oposto, ou no mesmo, e o silêncio da paisagem conspirava como se todo o mundo se tivesse desabitado de seres humanos e das trevas o mal me espreitasse. Cavalgava por horas sem destino, observando cada traço da paisagem, sempre buscando alguma indicação de rumo.

Quando o sol estava alto no céu, parei à sombra de um imenso pau-ferro à margem da estrada e roí algum pão enquanto observava as estranhas runas do caderno. À luz do sol elas pareciam bem menos misteriosas, dava para ver que estavam em alguma língua humana, embora talvez antiga demais para que eu a reconhecesse. Montei novamente e segui meu rumo sem sentido.

Ao cruzar a crista de um morro bastante íngreme, entrei em um território onde parecia ter chovido recentemente. As folhas estavam tão viçosas que dava vontade de fazer-lhes carícias, e os grilos por toda parte se preparavam para a noite que em breve cairia.

Todo o meu dia foi passado em uma estrada interminável, serpenteando por entre montanhas e vales e matas e rochas. Nenhuma casa, nenhuma viva alma, nenhuma encruzilhada. Mas quando já começava a cair à noite, num raro trecho de vargem à beira de um rio largo, limpo e tão silencioso quanto um lago cheio de sapos, eis que achei a primeira bifurcação da estrada desde que entrara naquele mundo. Lembrei-me dela imediatamente, pois fora através dela que eu entrara naquele lugar.

Contemplar aquele lugar me fez sentir firmeza novamente: ali estava o elo que me levaria de volta aos lugares conhecidos, onde as coisas todas têm explicação. Bastava guinar o cavalo à direita e subir aquele morro baixo e triste, tão cheio de feridas avermelhadas. Do outro lado, salvo engano, haveria a cachoeira onde eu me banhara pouco após sair do cemitério da cidade sem nome.

Porém não havia força no universo capaz de me forçar a tomar aquele caminho. Por ele certamente eu retornava ao mundo conhecido, mas por ele eu igualmente retornava ao mundo no qual havia homens cruéis determinados a me conduzir à presença da lei arbitrária que me enquadrava como um facínora. Permanecer naquele mundo estranho era permanecer longe do pau de arara e da cadeira do dragão.

Por isso não tomei nenhuma atitude, apenas deixei que o cavalo, preguiçosamente, seguisse o caminho do menor esforço, o caminho através do qual eu continuaria margeando o rio e me dirigindo à noite que nascia com a lua entre duas montanhas redondas como seios.

Não demorou que começassem a surgir outras encruzilhadas. Estas, porém, eu não conhecia. Cada uma delas poderia ter me levado de volta, ou ainda para mais longe. Mas nelas eu não tive de deixar que apenas o meu livre arbítrio me guiasse.

Logo na primeira delas havia um lenço dependurado em um galho de goiabeira. Poderia ter sido uma indicação, ou poderia ter sido apenas um pedaço de roupa rasgado quando um cavaleiro passara em disparada. Aquele alvo pedaço de pano já estava tão úmido pelo tempo que não guardava traço algum do perfume ou da catinga de quem o usara um dia.

Na encruzilhada seguinte havia uma pedra grande. De cada lado havia uma fratura que se assemelhava a um assento. Mas somente em um dos lados havia algo diferente: um livro, também mostrando sinais de ter sofrido com a chuva. Apeei e fui buscá-lo, pensando nas informações que ele poderia ter, mas era somente um daqueles livros baratos com histórias para moças.

A noite começava a se desdobrar, como um vestido escuro cobrindo a linda nudez da paisagem. O livro tinha a capa arrancada, indício de que fora talvez comprado a quilo em um encalhe de banca de jornal. Mas ao folheá-lho percebi que a sua presença ali poderia não ser casual: havia frases sublinhadas, palavras isoladas marcadas a tinta. Concatenando os trechos soltos parecia haver uma mensagem, mas ela fazia pouco sentido:

Vivendo em uma linda casa … morrendo por … isso a … enganara … pensava talvez em fugir … enfeitiçar … quem vier …

Segui pelo caminho sugerido por aquele livro. Notei sem espanto que ali a noite caía silenciosa, nenhuma viva alma passava, nenhum pássaro piava. Uma negra solidão foi me envolvendo ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de fazer amor outra vez, com a misteriosa morta.

Na virada do morro seguinte se descortinava um vale desolado, um amontoado de construções de pedra muito mal acabadas com um ar mais de fortaleza que de residência. Uma alta torre encimada por uma cruz inscrita dentro de um círculo predominava sobre as demais construções, mais baixas, indicando que aquele lugar, em algum momento perdido de um passado, fora consagrado. Ao lado da enorme e negra igreja de pedra nua, coberta de trepadeiras, um mar de cruzes quebradas e lápides gastas indicava que aquelas colinas cobertas de touças altas de capim haviam sido, num passado distante, uma aldeia populosa.

Mas quando me aproximei eu vi que todas as covas haviam sido escavadas, sabe Deus quando, e que os antigos residentes delas tinham sido levados, somente Ele sabe para onde. O cavalo trotava com familiaridade por aquele terreno, como se tivesse sido apascentado ali desde que fora um potrilho. Depois de passar pelo cemitério o caminho passava a ser calçado de lajotas irregulares de pedra calcária, muito gastas pela chuva de séculos e por cascos e pés de todas as espécies. Detrás da igreja aparecia uma construção que destoava do resto: baixa, clara, geométrica e aparentando modernidade. Estava silenciosa como tudo, e escura também. Outra construção, um imenso paralelepípedo negro com janelas, repousava na parte mais baixa, já perto de um regato que quase não murmurava. Uma luz acesa ali indicava que alguém vivia, ou vegetava, naquele lugar.

Mal podendo imaginar o que me aguardava, em vez disso agradecendo a sorte de um pouso — e talvez até de um lugar onde ficar pelo tempo que fosse preciso — eu me dirigi à porta daquela medonha habitação. A sua porta alta indicava uma construção totalmente fora dos padrões de hoje, com um pé-direito de três metros ou mais. A pesada madeira nem se moveu quando a toquei, nem pareceu sentir quando a pesada aldrava de ferro soou.

Um homem veio atender, macérrimo e pálido. Tinha a fisionomia desolada e os lábios finos. As suas unhas estavam crescidas e as suas costas eram curvadas. Ele poderia ter oitenta anos ou mais.

— O que deseja?

— Encontrei o cavalo por aí venho saber se não pertence a esta propriedade.

— Não criamos cavalos — ele respondeu secamente.

— E nem ao menos pode me dizer de onde é o animal?

O homem deu dois passos para fora e olhou o triste cavalo em que eu viera. Ao vê-lo a besta curvou a cabeça e soltou um relincho de reconhecimento. O homem resmungou alguma coisa que eu não entendi, acariciou o cavalo com uma doçura surpreendente e tirou do bolso algo que lhe deu. Mas quando se voltou tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Então o cavalo é daqui?! — eu devolvi secamente.

Ele permaneceu ainda em silêncio por um tempo. Por fim acenou com a cabeça.

— Reconheço a criatura, mas ela não pertence a nenhum proprietário das redondezas.

— Não compreendo.

— O que lhe importa, com mil demônios?! Pode deixá-lo comigo. Quanto à recompensa, receberá do diabo.

— Sua falta de educação finalmente me irritou. Com que então eu tenho a boa vontade de trazer um animal perdido e o senhor me manda buscar recompensa com o demo! Vá à merda e que ele o leve!

A intensidade da minha rudeza surpreendeu-me. Nunca antes me imaginara sendo tão agressivo com alguém, especialmente com alguém que parecia estar visivelmente assustado e agindo contra sua vontade. Mas era bom exercer minha prepotência depois de tantos dias humilhado na estrada, mesmo que ela me atirasse de volta ao desamparo.

— Você não sabe o que diz!

Ele respondeu com um desprezo e uma expressão de desolação tão profunda no rosto que por um momento eu quase me arrependi. Mas logo recompus minha dureza. Nesse momento, uma voz familiar gritou de cima perguntando quem era e simplesmente ao ouvi-la eu retomei minha firmeza absoluta. Uma chuva fina e fria começara a cair, um vento cortante assobiava nas árvores e uma mulher apareceu à porta, com uma expressão gelada no rosto, como se jamais me houvesse conhecido. Ela era loura bela, como a jovem grisalha que eu vira na descida da montanha fatal.

— Jorge!?

— Ele trouxe o cavalo — disse num fio de voz o Jorge.

— Muito obrigada — disse a mulher, estendendo-me a mão com um sorriso — serás recompensado. Jorge, não vamos deixar que este homem siga viagem sob esta chuva cruel e este frio que vem com a noite, faça-o entrar e lhe prepare um quarto de visitas.

— Realmente, senhora, não é de bom-tom deixar que ele atravesse esta noite inclemente a pé…

E me fez entrar.

A aparência interna do lugar não era melhor que seu exterior desolado. Os móveis eram todos muito grandes e de desenho bruto, o chão era de lajotas enceradas e as paredes caiadas não ostentavam nenhum ornamento. Prepararam-me uma mesa na cozinha e comi alimento recém-preparado pela primeira vez em muitas semanas. Jorge e sua mulher, uma criatura gorda e sorridente, eram os únicos empregados daquela imensa casa.

Depois de terminar, me conduziram escada acima até um pequenino quarto de hóspedes localizado logo à direita, antes de um imenso portão de ferro trancado com um cadeado maior que a minha cabeça. Além do portão um longo corredor com várias portas. Seguramente aquele edifício fora um convento e aquelas eram as celas em que dormiam solitariamente os frades ou as freiras do lugar.

Depois que me fez entrar em meu quarto, pude ouvi-lo girar a chave na fechadura e tive medo pela primeira vez em muito tempo. Segurei a maçaneta, mas já era tarde: Estava trancado! O quarto, uma das celas do antigo monastério, era grande o bastante para caber um guarda-roupa, uma cama e uma mesa de cabeceira. Para mais nada, porém. Havia uma única janela vazando as paredes muito grossas que davam para o exterior. Apesar de estreita, era larga o bastante para que eu pudesse debruçar-me nela e contemplar a noite de lua crescente sobre os campos.

Um ar pesado soprava do norte, como se alguma coisa horrível estivesse vindo. A janela, localizada do lado que dava para o riacho, se abria sobre uma escuridão difícil de avaliar. A luz da lua não chegava até ali porque as montanhas e as construções mais altas se interpunham obliquamente no caminho do luar.

Apesar disso, dispus-me a dormir. Mesmo porque não havia remédio. Despi-me parcialmente e me estendi na pequena cama de colchão duro. Quando estava semi-adormecido, apesar do nervosismo, ouvi uma janela batendo, senti o frio da madrugada beijando meu rosto e levantei-me para ver o que era. Minha janela estava aberta. Enquanto imaginava como pudera ela abrir-se, senti uma presença familiar atrás de mim e me voltei.

— Que bom que vieste…

Era a mulher loura que me recebera à porta. Olhei-a de alto a baixo, apreciando cada detalhe de seu corpo entrevisto através da camisola diáfana que usava. Ela sorriu-me e desprendeu-a de seus ombros, fazendo-a cair e deixar diante de mim uma nudez fulgurante. Então abriu os braços e me chamou ao seu seio e fizemos amor com uma intensidade maior que a da vida.

Em dado momento, ouvimos um ruído ecoar pelos campos, um ruído de tiro. Os olhos dela se iluminaram.

— Ei-lo que chega!

A cancela da entrada rangeu e minhas pernas amoleceram. Suei frio e ergui-me num sobressalto. Um ríspido diálogo se travou embaixo na cozinha:

— De quem o cavalo? — pergunta uma voz estrondosa.

— Não sabemos, um cavalheiro chegou nele, dizendo tê-lo encontrado pelos campos. Veio perguntar pelo dono porque quer a sua recompensa. — Respondeu servilmente Jorge.

— E por que pousou aqui em minha casa este estranho?

— Choveu depois que ele chegou e ficamos constrangidos de ordenar-lhe que seguisse viagem sob tão cruel tempo.

Uma torrente de palavrões ribombou pelo salão, simultânea a dois tiros. Catarina, que até então estivera radiante, rompeu em pranto convulso, levantou-se da cama e atirou-se pela janela antes que eu a pudesse impedir! Pesa segunda vez ela me escapava! Assustado, vesti-me rapidamente e, instintivamente, abri o armário. Lá encontrei, por obra de Deus ou de Satanás, não sei, um rifle carregado!

Enquanto o engatilhava ouvi os passos pesados do recém-chegado logo além da porta e o chocalhar de chaves. Apaguei a única vela que havia no quarto e cerrei a cortina. A escuridão mais completa se fez. Apontei a arma para a porta e aguardei que ela se abrisse para atirar duas vezes no peito do desconhecido, antes que ele tivesse tempo de me ver.

O homem arregalou os olhos, deixou cair a pesada carabina que carregava e tombou pesadamente para trás. Fui até seu cadáver e, reacendendo a mesma vela do castiçal ao lado da cama, pus-me a mirar-lhe. Era uma criatura formidável aquele homem: teria mais de dois metros de altura e uma musculatura firme e poderosa. Seu rosto estava tomado por uma cicatriz que lhe dava um ar cruel e os seus dentes eram bastante ruins. Vestia uma espécie de hábito de tecido rústico, bem pouco suficiente para abrigar-lhe do frio que fazia naquela noite. Toquei-lhe a fronte para certificar-me de seu falecimento e, comprovado este fato, desci as escadas.

No salão estava o pobre Jorge com a cabeça aberta pelo rombo do único tiro que levara. A arma usada para isso teria matado um elefante. A sua pobre mulher fora atingida no meio das costas, mas ainda respirava. Aproximei-me dela e dei-lhe a mão. Ela olhou-me nos olhos, lacrimejando de medo na presença do frio do Juízo próximo e disse:

— Maldito seja ele, maldito!

Eu não tinha nada que fazer por aquela pobre criatura. Apenas acariciei o seu rosto com ternura. Ao sentir a sinceridade de meu toque ela me disse:

— Cuida de Inês.

Imaginei imediatamente que este seria o verdadeiro nome da loura e, não desejando aumentar a tristeza da agonizante, informei que Inês estava bem e que eu cuidaria dela. A mulher cuspia sangue pela boca, indicando que seus pulmões haviam sido atingidos. Num último esforço, olhou-me e disse “pobre coitado de ti!”, vindo a morrer em seguida.

Saí em busca de Inês logo em seguida — e não a encontrei. Não havia nenhum corpo abaixo das janelas daquela construção sinistra, nenhum sinal que indicasse qualquer coisa semelhante à remoção de um cadáver. Para mais estranheza ainda, a provável janela de meu quarto era sobre uma horta, cujas alfaces intactas eram ainda mais intrigantes que o formato barroco daquela lua que parecia uma gargalhada no céu.

Pela manhã, sepultei Jorge e sua esposa em duas das covas vazias do cemitério. As armas, eu achei prudente enterrar no solo fofo do fundo da horta, a fim de que aquela noite ficasse esquecida. E tendo feito isso, enquanto tomava da salobra água do único poço que servia à casa, me perguntei o que deveria fazer em seguida. O sol me respondeu que era preciso descansar. Mas descansar não me parecia nada sábio, diante das circunstâncias.


09
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 09:47link do post | comentar

O que estou prestes a contar pode parecer sem pé e nem cabeça a você que me lê (porque a mim mesmo parece), mas sinto algo que me pressiona a falar e não posso desviar-me da missão de te dizer as coisas que vivi naqueles dias.

cabana de madeira

Às vezes tenho a impressão de que, na verdade, tenho sonhado isto que parece ser minha vida — e ainda não consegui acordar. Depois de haver guardado nas gavetas do esquecimento os traços deste pesadelo por muitas semanas, ele volta a me perseguir. Não dá mais para carregar este peso nos ombros, espero que você me ajude a pousá-lo no chão.

Contar essa memória que não me abandona é dividir esta saca pesada de medos e angústia para que, talvez por um breve momento que seja, eu possa tentar reorganizar meus sentimentos e livrar-me dessas imagens intermitentes e insanas.

Em um dia quente e desesperado eu me achei caminhando por uma estrada empoeirada sob um sol abrasador. Nem pássaros ousavam cantar diante da pressão que o ar exercia sobre as montanhas desbotadas.

Às minhas costas eu levava uma mochila pesada de culpas e projetos, alguns já malogrados em broto. Estava fugindo nem me lembro mais de que e temia que todos os meus amigos estivessem mortos ou presos. Tempos depois tive a certeza. Ou será que nunca, de verdade, tive amigos?

Para não ter de enfrentar nenhum dos doidos destinos que se me apresentavam eu saí de casa no meio da noite, furtando apenas roupas, comida para dias e uma Bíblia.

A comida se esgotara rápido, e já eram três dias que eu passava a roer-me de fome, tendo de roubar de comer.

As roupas, não podia trocar porque estava imundo, suado e coberto de pó e a comarca estéril em que estava vagando padecia de seca e infelicidade.

A Bíblia eu trocara por um pão com salame.

Depois de mais alguns dias de caminhada sem rumo pelos lugares aonde ninguém nunca vai, eu já estava exausto e bastante desesperado para fazer qualquer coisa. Mas só havia frutas murchas da estação fracassada nos galhos despojados das raríssimas propriedades habitadas.

Certa noite cheguei a uma cidade cujo nome não se dava a conhecer em nenhuma placa, em nenhuma saudação, em nenhum monumento. Um lugar pequeno, afastado das estradas principais e de Deus, incrustado numa encosta de morro onde não havia nenhum aspecto de beleza a ser ressaltado.

Uma cidade feia e cinzenta, com cerâmica industrial barata cobrindo as paredes das casas, ornadas com estéreis motivos geométricos, parecidas com monumentos funerários. Havia casas abandonadas e decadentes até mesmo nas ruas principais, ruínas ao lado da prefeitura, calçamento revirado na própria praça da matriz. As luzes estavam apagadas para economizar o gerador porque todos dormitam tranquilamente, seguros dentro de suas edificações residenciais sem vida.

Passeei pelo deserto urbano como um fantasma através de uma cerimônia, invisível e suave. E em nenhuma parte vi hotel, lugar nenhum em que se desse pouso a quem se perdesse por lá. Meus últimos trocados lamentaram de dentro do bolso não poderem dar para uma boa cama e um banho tépido, capaz de atravessar as teias de vertigem e o cansaço do tédio.

Com ossos doloridos de um longo dia e ainda por cima faminto, imaginava meios de dormir. Havia bancos na praça, mas me recusei a entregar-me ao nível dos pedintes reles. A dignidade vociferava em mim e me obrigou buscar onde ao menos pudesse ocultar a situação em que estava, e foi no cemitério que vi um lugar perfeito para terminar aquele dia de pesadelo.

Não me pareceu provável que o lugar fosse visitado durante a noite, ou mesmo pela manhã, já que era afastado e mal cuidado. Além do fato óbvio de ser um cemitério de uma cidade que parecia estar morrendo em vez de crescer. Apenas corujas piavam na escuridão e não havia sequer uma vela acesa em túmulo algum.

Buscando um lugar para deitar, encontrei no fim da alameda mais larga um mausoléu imponente cujo portão de ferro estava apenas encostado. Dentro, algumas velas ali postas a arder anos antes e muita, muita poeira e teias de aranha. Apesar disso, não podia negar que era um dos lugares melhores para deixar-me dormir e me rendi a uma grande mesa de mármore junto à entrada, usando minha mochila como travesseiro, e dormi sem pesadelos e nem esperanças.

Despertei com o sol agraciando meu rosto e sentindo a brisa leve e fresca. Pus às costas a mochila e saí pelo mundo para ver onde estava.

As cidades, a dos mortos e a dos que morriam, estavam em um morro um pouco mais ou menos alto do que os outros em torno. Todos morros redondos, pastos nus e salpicados de feridas avermelhadas, inteiramente desprovidos de árvores e imersos na cinza tristeza do outono-inverno, essa espécie de devastação que acomete o interior de Minas Gerais todos os anos a partir de abril.

O cemitério estava fora dos limites, cerca de uns quinhentos metros acima da última rua e apenas um muro baixo o isolava da terra secular. Temeroso de que alguém testemunhasse a minha vergonha apressei-me a sair e continuar a caminhada.

Tendo caminhado cerca de três quilômetros para além, pude ouvir o estrondo de água em pedras e me dei subitamente conta da delícia de poder lavar-me após… quantos dias?

Um segundo depois sorri ao dar-me conta de que minha vida de andarilho me estava devolvendo a sensibilidade aos ouvidos, podia ouvir os grilos no capim, as aves piando a uma distância considerável e o rumor do mundo em movimento. Mesmo na desgraça o ser humano tem motivos para sorrir.

Desci a encosta em direção a um fundo de vale arborizado onde havia a água que criava aquele som familiar. Seguindo a direção do ruído, encontrei uma pequena maravilha à minha espera: uma cascata de uns dois metros de altura que caía sobre um poço com fundo de areia, em meio a árvores que pareciam ter estado ali durante muitos milênios.

Despi-me e brinquei alegre como criança durante algum tempo, finalmente abri o sabonete que trazia de casa e me dei um banho como poucas vezes. Depois de escovar os dentes pela primeira vez em dias e de usar desodorante pela primeira vez desde que saíra de casa eu vesti uma roupa limpa, mesmo calçando os mesmos surrados sapatos e olhei para mim mesmo com um pouco mais de orgulho. Apenas a fome atentava contra a minha auto-estima.

Com tristeza deixei o pequeno pedaço de paraíso onde, apesar da beleza, não havia alimento e voltei ao caminho. Devagar para não suar muito, tão sem destino quanto antes, mas sentindo-me mais limpo e mais leve. Nisso ouvi um cauteloso trotar de cavalo atrás de mim e me virei para averiguar quem caía em meu mundo.

Uma mulher, montando um cavalo castanho e usando um vestido e um chapéu. Bela mulher. Aparentemente apenas o vestido e o chapéu denunciavam alguma irregularidade. Teria trinta anos mais ou menos, mas logo percebi que não era uma das mulheres comuns da região. As mulheres do interior não têm no olhar aquela malícia e nem no semblante aquela firmeza indômita e algo cruel. “Também não usam roupas desse jeito e nem um chapéu assim”. Toda ela me pareceu recuada do tempo, alheia ao mesmo mundo meu. Dominava o cavalo com displicência, mantendo um silêncio ardoroso em seus gestos. Quando me viu, me chamou com um sorriso e fez diminuir o andar do animal, audácia que me chocou.

“Senhora, boa tarde”, eu disse, com palavras que me soaram raras depois que saíram de minha boca porque não pareceram minhas, mas a fala de um personagem de uma lenda antiga.

Ela respondeu com um aceno aberto mostrando dentes claros de padrão algo feroz. Ela continuou e me mantive entre envergonhado e excitado até que finalmente resolvi segui-la.

Ela não olhava para trás, mas para os lados, fingindo ver a paisagem, como para certificar-se de que a estava seguindo. Naquele momento em que a inspiração me faltava e meu olhar vacilava, eu era capaz de dizer qualquer besteira, mas não disse.

Ela não deixou o cavalo parar e nem esperou que eu a alcançasse. Sem o que dizer, eu apressei o passo, vendo que o cavalo soprava com ansiedade, tentando ir mais rápido.

Os passos do animal eram contidos por uma mão mais firme que a minha e por olhos que viam aonde eu não sabia. Mas lentamente estas mãos meticulosas libertaram o trote e tive de cada vez ir mais rápido para não ficar para trás.

A rapidez cada vez maior de meus pés pareceu cancelar as precauções que eu devia ter em minha mente. Logo eu já me havia esquecido de meus pensamentos e até de onde andava. Era como se não enxergasse nada à esquerda ou à direita. Depois de meia hora de perseguição eu estava suado, ofegante, desidratado e com cada músculo esvaído e doendo demais.

Então ela se embrenhou por uma trilha à esquerda, uma que se abria quase imperceptível na parede de galhos que orlava o caminho. Entrei após, pisando folhas e arbustos. Meus passos estalam nos gravetos e ecoavam no ar vazio como se o mundo inteiro estivesse dentro de uma redoma.

Acordei horas depois de um sono impreciso que tive. Estava nu, deitado sobre um gramado pontilhado de flores amarelas à beira de um riacho. Ao meu lado, também nua, a mulher que eu perseguira, adormecida e indefesa.

Olhei em torno num relance e nada reconheci. O murmúrio da água parecia renovar a minha sonolência e eu não conseguia ter noção do tempo — a não ser que, talvez, estivesse terminando o dia; pela brisa fresca que soprava lá.

Não consigo imaginar como cheguei a esse lugar estranho e nem porque subitamente aquela mulher, cujo nome eu ainda não sei, jazia nua ao meu lado, salpicada de pétalas amarelas e com o sol da tarde fazendo luzirem as gotas de suor em sua pele (como se muito recentemente tivesse terminado um grandes esforço! Um esforço comparável ao do amor!).

Quis fugir dali! Mas como? Olhei outra vez em torno e não vi montanhas no horizonte. A clareira estava cercada de escuras paredes de árvores e trepadeiras e eu nem mesmo imaginei por onde deveria tentar sair para estar de volta… À estrada que seguia sozinho e sem saber para onde ir?! Sufoquei-me pensando que não havia nenhum motivo para fugir, nenhuma alternativa que me convencesse de que vale a pena fugir da presença daquela mulher, que de resto era tão bela.

Não consegui senão render-me à contemplação de sua nudez tão bela e simples. Uma sensualidade clássica e farta, com pernas grossas, braços roliços, seios bem feitos e cintura larga. O rosto de uma Vênus de Rubens com mãos maltratadas de serviços, unhas roídas e irregulares, nódoas nos dedos. O seu sexo era coberto de uma penugem macia que parecia não haver sido jamais raspada de tão suave e curta. O seu corpo era de uma cor que parecia não ter jamais tomado sol. De uma cor que não existe mais.

Enquanto eu permaneci atônito a contemplá-la, esqueci o tempo e não vi se anoiteceu ou não (deveria?). Foi com muda surpresa que a vi acordar e espreguiçar-se.

Ela olhou em torno, viu-se e me viu. Cobriu-se subitamente envergonhada e me atingiu:

— Que fizeste, bandido?!

— Nada que eu saiba. Diz-me tu que fizeste comigo?!

— Nada que ferisse. Agora responde que fizeste comigo!

— Nada que te acordasse.

Ela se pôs a chorar, acusando-me de ter tirado proveito do sono que a rendera. Embora certo de minha inocência, não tentei abrir a boca para dizer coisa alguma, ao mesmo tempo em que me embebedava em sua beleza.

Depois de lamentar por um tempo, ela se levantou, tomou as suas roupas e se vestiu  vagarosamente. Assobiou e o cavalo pareceu aparecer do nada. Manso e arreado. Veio pacatamente receber de suas mãos um carinho e um “venha, menino”.

— Você não devia ter tentado me interromper.

— Mas não tentei fazer nada!

— Não pense que isso mudou alguma coisa. Só vai trazer-lhe mais

sofrimento.

— Quem é você, e onde estamos?

Ela montou sem me responder e cavalgou, muda, rumo ao riacho. O animal não hesitou em achar uma travessia através dos bancos de areia enquanto eu me ocupava em vestir-me tão rápido quanto podia para poder tentar acompanhá-la ainda. Sabia que onde estava não podia continuar e que voltar era impossível.

Após o rio e além da primeira curva se erguia uma casa de pedras com teto de folhas de sapé, que eu apenas observei de passagem. Dentro da casa algumas pessoas pareciam ocupadas em talvez um tipo de piquenique.

Passada a curva e seguindo a segunda estrada pelo morro acima, terminei numa clareira ampla entre árvores, com mesinhas de pedra, próprias para piqueniques ou bruxaria. Uma longa escada de lajes de pedra dispostas através da encosta permitia que se subisse ao topo da montanha coberta de relva verdejante (“nessa época do ano? Estranho!”). É pela escada que ela subia a pé — e eu a segui.

Não a tempo de conseguir impedir que chegasse ao alto do mirante antes de mim. Ela olhou para trás, viu que eu estava chegando, disse alto algo que não ouvi, me acenou um gesto que não reconheci… e se deixou cair!

Eu gritei mas não acordei porque não estava dormindo. Eu corri, mas não pude chegar lá a tempo porque não era sonho. O mirante se abria sobre um abismo imenso, cujo fundo era de pedra viva. Lá estava, ensanguentado, o cadáver da mulher que eu seguira e amara sem nem saber por que.

Havia uma escadinha perigosa esculpida na parede de granito. Movido sei lá por que mórbida curiosidade eu a desci em direção ao poço, que fedia a sangue de muitos corpos e a culpas de muitas almas. Noto que havia muitos ossos, mas raramente alguma joia ou coisa de valor.

A misteriosa estava morta. Vasculhei seu corpo e percebi que não trazia brincos, nem pulseiras, nem relógio, nem cordões, nem tatuagens, nem obturações, nem nada de ouro ou prata. Não trazia bolsa e nem dinheiro.

Sua roupa era um vestido negro e largo, por baixo umas anáguas rendadas em branco. O único objeto que portava era um pequeno envelope pardo. Continha um pequeno livro em papel tão fino e letras tão miúdas que mal daria para tentar ler, ainda que fosse escrito em nossa língua. Em vez de uma carta contendo explicações ou qualquer outra coisa, eu encontrei uma escrita estranha e angulosa (ou será que neste sonho ou vida era analfabeto?).

Havia também uma espécie de talismã costurado em couro, com alguma coisa macia por dentro e pendente de um cordãozinho trançado em palha. Tomei aqueles objetos na mão e olhei para cima. A Lua ia alta no céu, embora ainda não fosse escuro.

Pus o conteúdo todo do envelope em meu bolso. Olhei em volta e me vi mais perdido do que jamais antes estivera. Não havia nenhum sentido em estar ali entre aqueles mortos.

“Que diabos vim fazer aqui? Por que raios eu saí de casa?” Deixei a estranha morta lá entre aqueles outros cadáveres mais antigos. Lá onde esperaria as chuvas que o decomporiam e purificariam sua alma de seu gesto.

E subi outra vez, cuidadosamente, pela perigosa escada na pedra. No alto do mirante me dei conta de que estava anoitecendo ainda. Gastei mais uns minutos olhando a paisagem, como se lembrá-la valesse a pena depois e desci de volta ao vale entre as árvores, pensando em que fazer de minha vida a partir de então.

No meio da descida encontrei seu cavalo. Ele pastava tranquilamente e, aparentemente, não me rejeitava enquanto eu me aproximava. Tomei-o pelas rédeas e continuei a descer.

Os que faziam piquenique já haviam ido todos embora. Restava apenas uma jovem de cabelos grisalhos.

“Que estranha essa mulher também!” Ela tinha olhos que pareciam uvas, tão escuros e brilhantes mas ao mesmo tempo cheios de uma luz azulada ou roxa. Usava um vestido semelhante ao da morta e também subia. Sem cavalo.

Olhou-me com uma expressão de espanto no rosto:

— O que está fazendo? Por que está descendo esta montanha e de quem é esse cavalo?

— Boas perguntas. Eu estava atrás de alguém que pudesse me salvar, mas esta pessoa queria se matar. Estou descendo a montanha porque não quero morrer e nem ficar entre os mortos. E esse cavalo ficou sem dono, portanto pode ser meu.

— Que audácia a sua vir até aqui! Você não sabe o que está acontecendo! Aliás você nem devia ter conseguido encontrar esse lugar! Quem o trouxe?

— Eu já contei a verdade. Creia se quiser. Mas não me ofenda porque não sou um ladrão e nem profanador de corpos.

— Este cavalo não poderá nunca ser seu!

— Tudo bem. Então fique com ele se quiser, mas eu peço, por favor me ajude! Eu estou perdido!

— Muito mais perdido do que imagina!

Por um momento um pouco de doçura veio a seus olhos.

Então um certo sentimento de culpa passou em mim. Abri meu bolso e lhe entreguei o envelope:

— Desculpe-me, acho que menti ao dizer que não sou um profanador de corpos. Tirei isso do cadáver da estranha.

— Você nem tem ideia do que é isso, tem?

— Está em alguma língua estranha. Nem é útil para mim. Trouxe porque pensei que poderia obter alguma resposta.

— Querer respostas não é sempre uma boa ideia.

— Mas é melhor uma resposta que continuar vagando sem rumo pelo mundo.

Ela me olhou pensativa:

— Eu posso te oferecer umas respostas, mas isso vai ter um preço. E o preço é que deverás viver aqui entre nós.

— “Nós”?

— Só posso dizer se concordas com o que cobramos.

Lembrei-me dos agentes do governo que queriam o meu sangue e até confesso que senti certa tranquilidade. Tendo alimento, saúde e paz; diante das circunstâncias; eu achei que podia me dar por feliz.

— Está bem.

— Então vamos subir de volta.

Lá do alto, sob o luar estranho que nos banhava, ela me mostrou um horizonte muito largo, sem nenhuma luz que denunciasse a presença da humanidade. Muito profundo era o silêncio daquela noite e muito pesado o cicio dos pássaros e o cricri dos grilos.

De repente, sem que ela precisasse me dizer coisa alguma, eu comecei a perceber.

— Por isso temos este lugar. Nem todos são fortes.

— Eu a tentei salvar!

— Eu li isto em você. Talvez isso me tenha convencido.

Descemos de volta à casa. Ela me mostrou um quarto e me disse que eu deveria viver ali por algum tempo.

— E alguém virá — continuou.

— Quanto tempo?

— Não se sabe. O que for necessário.

— Tenho medo.

— Todos temos.


27
Out 10
publicado por José Geraldo, às 22:19link do post | comentar

Jamais compreendi a origem das histórias de fantasmas, embora tenha sempre entendido a vontade, quase necessidade, que o ser humano tem de encontrar no mundo algo que vá além do concreto e do absurdo de nossas vidas uniformizadas. Por ódio à rotina é que tentamos beirar a transcendência, tentamos atingir o “algo mais”, romper o cimento cinza que recobre o jardim de inverno e encontrar terra úmida, cheia de vida, ali sepulta.

Mas daí a crer em formas espectrais que vagam pelas noites, sem destino e sem explicação… Ah, isso já é coisa diferente. É fácil imaginar Deus, mas não é possível acreditar em assombrações sem desligar o cérebro. Na qualidade de cientista, sempre me recusei a crer nessas coisas — na verdade, ainda reluto.

Meu ceticismo, porém, ficou menos agressivo de uns anos para cá. Posso não ter ainda aceitado como reais certas experiências que vivi, posso ainda sustentar que foram ilusões no meio de uma noite mal dormida, alucinações de um cérebro vitimado por uma contusão; mas, como cientista, vejo-me forçada a ser imparcial em meu relato. Tenho ainda como quase um dever a rejeição de tudo isso e preciso seguir na expectativa, quase esperança, de achar uma explicação materialista. Como ainda não tenho esta explicação, me limitarei a registrar o que vi. Pode ser que a minha memória futuramente falhe, levando-me a harmonizar o as coisas com as ideias em que creio, fazendo com que, a longo prazo, a minha vivência seja marretada na fôrma de uma teoria preconcebida. Para evitar isso, narro ainda no calor dos fatos.

Tudo começou na noite de quinze de abril deste ano. Eu estava acamada com uma gripe mais forte do que o normal e a febre alta me fazia tremer e delirar. Isso me levava ao desespero, pois sou uma mulher sozinha, em uma cidade estranha, e nem sempre os telefones são confiáveis, por causa da polícia tentando espionar subversivos e causando curto-circuitos. Foram horas terríveis que passei. Horas de enjoos e vômitos, vividas com a ajuda fácil de um saco de pílulas subtraídas da farmácia do hospital. Houve instantes em que eu simplesmente ingeria pílulas ao acaso, sem sequer saber o que estava tomando. Fui irresponsável, fui louca, fui quase uma suicida. Os médicos não são, ao contrário do que o povo pensa, pessoas dotadas de mais juízo. Eles apenas têm um diploma e uma pose. De resto, sangram, sofrem e enlouquecem como qualquer um.

Na noite de quinze de abril foi que eu comecei a melhorar. O meu nariz descongestionou quase totalmente, a febre baixou a um nível suportável e os enjoos pararam definitivamente. Eu ainda me sentia muito fraca por causa de um misterioso sangramento que ocorrera na manhã daquele dia, mas tinha tomado dois pratos fundos de sopa de feijão com alho e linguiça no almoço, mais um na janta, e isso tinha ajudado a repor a hemoglobina.

Não sei se minha melhora tinha algo a ver com a sensível diminuição do peso do saco de comprimidos. Sei que eu me sentia estranha, eu quase sentia o meu corpo fora de mim, ou me sentia fora de meu corpo, sei lá, algo assim. Minhas extremidades estavam dormentes, meus dentes pareciam maiores que a boca, a minha língua estava mole e enorme e eu sentia no meu corpo um cheiro forte de cloro e amônia, como se eu me tivesse urinado toda e tentado me lavar durante horas usando apenas água, essa água fortemente clorada que vem nos encanamentos.

Deixei a televisão ligada e deitei-me escutando o suave cicio das válvulas. Então aconteceu.

Acordei tremendo convulsivamente, como se o meu corpo estivesse debatendo-se na agonia da morte. Como peixe fora d’água. Digo “meu corpo” porque eu me sentia fora dele, embora sentisse as mesmas coisas que ele e também encarasse para a parede com olhos arreganhados. Minhas mãos estavam agarradas à coberta e o colchão pulava sobre o estrado como a sela de um cavalo de rodeio. De repente, senti uma mão fria tocar a minha nuca. A sensação passou de todos os limites do suportável e eu me debatia com todas as minhas forças, a ponto de as minhas unhas entrarem na carne da palma da mão, a ponto de meus pés baterem na madeira da cama. Calafrios sucessivos desciam e subiam pela minha coluna como se algum torturador a estivesse percorrendo com uma pedra de gelo.

Não sei quanto tempo estive presa neste momento. Talvez minutos, talvez meros segundos. A custo, voltei ao meu corpo e o instruí a dirigir todas as energias que pudesse ter ao esforço de virar-se para ver o que havia às minhas costas. Foi como tentar pôr de pé um caminhão tombado, mas finalmente aconteceu.

No momento em que as minhas costas bateram contra o colchão, com o peso do corpo de um elefante sedado que cai na savana, eu pude ver, apenas de relance, a imagem fugidia de uma mulher. Ela era alta, branca como arroz e tinha cabelos pretos, avermelhados. Usava algum tipo de roupa negra muito comprida e difusa e estava de pé ao lado da cama, parecendo surpresa que eu tivesse conseguido me virar. Assim que a vi ela já não estava mais lá. Como se nunca tivesse estado.

Por todo o resto daquela noite, estive deitada de costas em minha cama, com um medo atávico de pensar em pôr os pés no chão. Senti-me novamente criança, lembrando do tempo em que eu tinha pesadelos nos quais a minha cama era uma jangada num lago cheio de monstros aquáticos, que me veriam e me comeriam se eu me mexesse muito ou se tocasse a “água” fora do colchão.

Amanheci curada da febre, mas estava péssima como se tivesse bebido todo o rum do Caribe e atravessado o Oceano a bordo de um bote. Certamente era efeito colateral de alguns dos remédios que tinha tomado sem cuidado, ou a soma de vários efeitos colaterais, de associações medicamentosas esdrúxulas e perigosas, de químicas misteriosas que meu corpo havia misturado e estava eliminando pelo meu suor.

Logo que me vi de pé, apesar de toda a “ressaca seca” que eu sentia, percebi-me presa a um desejo incontrolável de purificação. Abri as janelas do apartamento, lavei-o obsessivamente com água, cloro e sabão, três vezes. Lavei até os móveis, usando uma espuminha e todo um tubo de detergente. Lavei até as minhas roupas, depois de fervê-las como se eu as tivesse roubado de um leproso.

Passei o dia praticamente sem comer e sem companhia. Só fui lembrar que ainda era humana e precisava de alimento quando já anoitecia. Carlos tinha me ligado com perguntas genéricas sobre como eu estava e eu fui suficientemente evasiva para não lhe causar escrúpulos. Detesto a ideia de que o interesse possa ser movido pelo remorso. Entendo perfeitamente a necessidade, muito humana, de agredir e fazer sofrer quem nos faz bem: nada é tão odioso quanto a compaixão. Carlos me ligar àquela altura era uma humilhação. Se ele tivesse sido insensível e me convidado para sair como se nada tivesse acontecido, eu teria achado mais digno da parte dele. Melhor ser um babaca do que um babaca que se acha na obrigação de ter “preocupação”. Mandei Carlos à merda ao desligar o telefone e fui fazer sanduíches improvisados, que comi acompanhados de leite gelado e chá mate. E fui dormir bem cedo.

Como a noite de dezesseis de abril transcorreu praticamente sem sustos, foi fácil creditar os meus delírios, especialmente a visão da mulher, a algum tipo de efeito maluco daquele coquetel do inferno que eu havia tomado. Felizmente não tive que enfrentar a aparição de Carlos. Ao contrário de fantasmas, ele não teria conseguido sair de perto de mim sem pelo menos uma facada na jugular. Não naquele dia. Hoje já o perdoei. Quem se vingou, perdoa fácil.

Voltei a trabalhar, apesar do ar de espanto dos colegas. Aqueles putos nunca me haviam aceitado mesmo, sempre haviam visto com desconfiança uma mulher bonita, solteira e diplomada. Nesse cu de mundo onde vim parar, tem muita gente que acha que mulher só serve para parir e cozinhar. Eu não sei cozinhar, encomendo marmitas de um restaurante. Eu não quero parir. Sou médica, já botei muito menino no mundo, mas gosto mais de receitar anticoncepcionais do que de fazer partos.

Os dias seguintes foram tranquilos. Minha nova autoestima me ajudou a enfrentar a frieza de alguns de meus “amigos” e o ar palerma e calhorda do Carlos, com seu ridículo escrúpulo de fingir diante de mim que ele e a Aparecida não estão noivando para casar. Aparecida não tem diploma, é secretária. Ela tem cintura larga, de quem vai parir muito, e gosta de cozinhar. Ela nasceu para fazer as vontades de um macho, ela é o que Carlos andava procurando e não achou comigo: eu faço o que quero. Estou sozinha, mas não sirvo de incubadeira para os herdeiros de um filhinho de papai interiorano. Não foi para terminar diante do fogão que meu pai se sacrificou para me dar esse diploma. Ele me pedia que eu ajudasse a curar as misérias do mundo. Ele achava que a miséria era uma doença. Pobre homem. Talvez o único homem que eu realmente amei.

A tranquilidade não durou, porém. Dia seis de maio tive outra recaída da febre, inexplicavelmente. Fiz uma série de exames, nenhum indicando qualquer alteração no meu sangue. Comecei a ficar preocupada, mas não tinha nenhum colega em quem pudesse confiar. Não ainda.

Passei o dia em casa, fazendo escalda-pés. Não para a febre, mas tentei me distrair fazendo as unhas, e nada melhor do que água quente com sabão para amolecê-las. No fim do dia eu estava com pés de ninfa e a cabeça rodava em cima do pescoço como se fosse um pião que alguém soltara no terreiro.

Quando me levantei do sofá, cambaleei e caí, entornando a bacia d’água e batendo a cabeça no braço da poltrona. Fiquei encostada na parede, vendo a sala rodar, durante um longo tempo, até finalmente criar coragem e ir para minha cama. No meio de todo o terror de estar delirando, eu senti outra vez aquela mão gelada me tocando. Desta vez, já preparada para o que viria a seguir, consegui virar-me com mais facilidade e pude encarar a visão da mulher-fantasma com mais atenção.

Ela não tinha nenhuma roupa negra, ao contrário do que eu tinha pensado. Eram os seus cabelos imensamente longos, muito abundantes, que a pareciam vestir. Estava nua e sua aparência era totalmente irreal, de alguma forma caricatural e desarmônica. Não sei se eram os membros excessivamente magros, a pele excessivamente clara, os pelos pubianos excessivamente crescidos… ou aqueles olhos redondos que pareciam poços profundos. Alguma coisa nela berrava, esgoeladamente, “morte”.

— Eu venho procurando há muito tempo alguém como tu — ela disse.

Ela sorria e parecia uma caveira. Mas quando parava de sorrir, estava belíssima e viva outra vez, ou parecia.

— Há três séculos que busco. Minha tortura é cada vez mais insuportável. Vem, salva-me! Só tu podes perdoar-me e aceitar-me!

Ela punha a mão em minha testa para dizer isso e esse toque era como um eletrochoque no meu sistema nervoso. Enquanto ela falava eu me debatia na cama, babava e gemia.

— Não podes morrer sem vir até mim! Não morrerás, decerto não morrerás! Vem e salva-me!

Por fim ela se ergueu de onde estava e me deu as costas para ir, permitindo que eu visse os sulcos de suas costelas e a cicatriz negra de uma marca feita a ferro em sua pele, com dizeres que não tive tempo de reconhecer.

Depois disso eu não consegui mais me concentrar no trabalho. Não tinha mais cabeça para ouvir as repetitivas histórias de pobres mulheres oprimidas, com seus males incompreendidos, seus maridos incompreensíveis e suas gravidezes. Cada vez que olhava pela janela e via uma tira de céu azul eu me sentia engaiolada. Sentia-me como quem sabe que há um espetáculo na praça, mas permanece em casa.

A mulher fantasma voltou a assombrar os meus sonhos, sempre com a violência imperativa de uma crise epiléptica. E foram muitas as vezes, ainda em maio e junho, piorando à medida em que o inverno se aproximava, tornando-se cada vez mais lamurienta:

— Vem logo, que o inverno é a pior parte do ano. Esse frio me enregela! Vem, salva-me!

Por fim meus nervos não suportaram mais. Resolvi tirar férias antes que os meus colegas me diagnosticassem como louca e me pusessem no manicômio para servir de exemplo às suas filhas para que logo arranjassem marido e parassem de pensar em estudar. Tinha oito anos quase que eu trabalhava sem férias, seis deles naquele hospital. Trabalhava em todos os plantões possíveis, aceitava todas as cirurgias e todas as consultas. Se fosse homem, teria já um nome respeitável e uma bonita clínica. Se pelo menos eu fosse obstetra ou ginecologista… Mas não, eu era pneumologista. Especialidade “de homem”. Estava condenada a ser plantonista assalariada, pelo menos até criar coragem e partir para um lugar maior, de mentes mais abertas. Talvez Júpiter.

Ainda não tinha esquecido Carlos, e na verdade eu ainda não sabia o que fazer de minhas férias. Tinha medo de chegar ao trevo, parar o carro, deitar a cabeça ao volante e chorar sem saber aonde ir. Meus pais, adotivos, estavam mortos. O resto de minha família postiça me desprezava, achavam que tinha sido uma usurpação eu estudar tanto às custas do dinheiro de meu pai. Filha adotiva é para ficar analfabeta, solteira e cuidar dos seus benfeitores na velhice. Eu estudei, casei cedo, me divorciei daquele estúpido e efeminado do Roberto depois de traí-lo com um colega de trabalho, e pus meus pais no asilo para poder trabalhar. Com essa ficha corrida, voltar a Santana do Monte seria quase risco de vida.

Por isso eu prolonguei meus preparativos durante dois dias. Dois dias em que eu maquinei se devia convidar algum homem para ir comigo. Eu tinha muita vontade de ir com algum, mais pela companhia do que por sexo, mas… bem, sejamos sinceros aqui: pelo sexo também. Não é crime dizer isso, pelo menos não ainda.

Mas eu me sentia uma colegial tímida, incapaz de decidir. Sabia que não poderia gastar muitos cartuchos. Recusas iniciais significariam, para quem fosse lembrado por último, a incômoda sensação de ser lembrado como “última esperança”. Era preciso refletir bem. Por fim resolvi ser conservadora e liguei para o Francisco.

Francisco era office-boy no hospital. Tinha doze anos menos do que eu, era bonito e parecia tão tímido que eu não me surpreenderia se ele ainda fosse virgem. Era possível que ele não pudesse ir por razões além de sua vontade, mas eu tinha, pelo menos, a certeza de que nem lhe passaria pela cabeça recusar o meu convite. E não me decepcionei. Ele disse que topava antes que eu tivesse tempo de terminar. Acredito que ele teria ido comigo mesmo que eu estivesse indo à puta que o pariu.

Mas ele estava engaiolado também. E quando você tem dezoito anos é muito difícil ter a liberdade para viver o que quer. Mais tarde você conquista a liberdade, mas daí já nem lembra mais para quê. Eu cheguei ao trevo, parei o carro, encostei a cabeça no volante e comecei a chorar, me perguntando “para onde” e “para quê”.

Então tinha decido ir sozinha. Estava enfrentando isso, mas estava me saindo derrotada do grande combate contra minha própria carência. Maldito Carlos, ele nem sabe que eu poderia tê-lo feito feliz! Tomara que a Aparecida engorde até virar uma broa, que fique de calcanhares rachados e papo triplo!

Por fim, liguei o motor, acelerando até ouvir os pistões assobiarem, e saí à toda pela estrada, seguindo o rumo que meu nariz apontava. Tinha sido dona de meu nariz por muito tempo, resolvi deixar ele ser dono de meu destino um pouco.

As estradas andavam mal sinalizadas naquela época, e também esburacadas. Eu dirigia dividindo minha atenção entre o pavimento danificado e as placas poucas que apareciam escondidas na vegetação densa do acostamento. Tinha deixado para sair no fim da tarde, para viajar à noite, evitando o tráfego e o calor do veranico, mas acabei me vendo diante de um sono que ameaçava me derrubar. Para meu azar ele se abateu sobre mim num trecho deserto da estrada, longe de cruzamentos, sem luzes de casas pontilhando o horizonte e com apenas clarões de cidades à distância.

De repente, senti outra vez em minha nuca o toque familiar e frio de algo que parecia uma mão. E ao meu lado apareceu outra vez a mesma mulher que eu vira em meus delírios e em sonhos. Daquela vez parecia até mesmo ter um corpo. Estava tão pálida como sempre e mais bela do que nunca, levava um ensaio de sorriso no rosto e, ao contrário do que fizera nas vezes anteriores, já não tentava cobrir sua nudez hirsuta com as mãos — e ousava aparecer diante de mim sem esperar eu dormir.

— Que bom que vens ajudar-me!

Não sei se foi a solidão da estrada, o meu medo de dormir ou o que, mas senti vontade de falar-lhe — pela primeira vez desde que a vira em meu quarto em quinze de abril. “Se é capaz de falar e de me ouvir — eu pensava — então é uma companhia como outra qualquer nessa viagem”.

— Não estou entendendo, não estou indo te ajudar. Vou passar uns dias na praia, e é só.

Ela ignorou o que eu tinha dito e insistiu, com uma expressão séria:

— Eis o que achas, mas não é o que fazes agora. A estrada que segues não se dirige ao litoral, mas ao interior!

Um ligeiro calafrio me percorreu a espinha quando olhei com o canto do olho uma placa à beira da estrada onde se podia ler, muito mal por causa da ferrugem, “Barbacena 30km.”

Freei imediatamente e a mulher desapareceu. Desci do carro e me pus a andar em torno dele, desorientada. Ainda havia um resto de lusco-fusco no céu, um vermelhão que se refletia nas coisas, dando-lhes uma aparência meio irreal.

— Como foi que perdi tanto o caminho que devia seguir? — perguntei-me sem pronunciar as palavras.

Entrei no carro, dei meia-volta, e resolvi tentar outra vez. “Se Barbacena é para lá”, refletia, “então devo chegar ao estado do Rio de Janeiro se for para o outro lado”. E assim fiz. Mas, duas horas depois, para minha grande surpresa, me vi diante de outra placa que indicava “Barbacena 42km”.

Àquela altura o desespero me atingiu. O carro estava quase sem gasolina, porque não tinha visto nenhum posto durante todo aquele tempo. Eu não sabia onde estava, nem para onde estava indo. Certamente para quem não sabe aonde vai, todos os caminhos servem igualmente, mas somente até acabar o combustível. Daí você se iguala a qualquer perdido. E precisa aguardar que a polícia venha te socorrer.

Mantendo a cabeça fria, decidi estacionar onde houvesse espaço limpo à beira da estrada e dormir até o amanhecer. Com o dia claro haveria trânsito e pessoas dispostas a dar informações. Era uma decisão arriscada, ainda mais para uma mulher sozinha, mas eu ia fazer o que?

Segui em direção a Barbacena — se é que a estrada realmente ia dar em Barbacena — e por volta de dez e meia da noite encontrei um lugar que parecia apropriado. Estacionei, fechei as janelas e acionei as travas das portas, depois reclinei o banco e tentei dormir.

Acordei com o zumbido de um vento forte e um céu carregado de negras nuvens que cobriam o luar. Uma voz cheia de pigarro parecia tentar me dizer alguma coisa. Olhei em volta e não havia nada. A não ser aquela sensação de que uma mão tocava minha nuca. Mas daquela vez uma mão estranha, grande e bruta.

Abri a porta do carro e saí correndo de medo pelo asfalto afora, sabendo que seria inútil. Um homem alto, de barba grisalha, peito largo e mãos enormes, trajando um uniforme militar de séculos atrás estava parado exatamente sobre a longa faixa amarela. Ele tinha uma expressão cansada e certamente inofensiva no rosto, muito embora sua figura parecesse ameaçadora. Em parte porque seu abdômen estava manchado de escuro — talvez de sangue.

— Encontrei-a finalmente! Deus, como a procurei, bruxa maldita! — ele parecia falar comigo, mas ao mesmo tempo não.

— Acompanha-me! Tenho algo que devo dar-te!

Antes que eu pudesse dar meia volta ele já estava tão junto a mim que não tive como me recusar a acompanhá-lo. Só então percebi que ele não estava só: havia pelo menos quatro outros, também uniformizados, junto com ele.

— Já que vamos seguir juntos, seria interessante, para mim, saber com quem estou indo — aventurei-me.

— Não te preocupes, sei quem és. E sabes quem sou. Isso basta-nos.

Chegamos a uma grota cheia de mato onde havia uma casa arruinada que, curiosamente, parecia menos arruinada à medida em que chegávamos mais perto. Junto à porta estava uma pá. O barbado, que parecia o chefe, indicou-a e disse:

— Para que não digas que sou impiedoso, tens todo o tempo do mundo para encontrá-la. Ela está dentro de uma arca perfeitamente lacrada que enterrei em algum lugar próximo ao rio. Se a encontrares nas próximas horas, ainda estará viva e deixar-vos-ei seguir livres e sem culpa. Se não a encontrares até o amanhecer, ela estará morta e tu também!

E desembainhou uma espada militar, que brandia no ar, enlouquecido.

— Vai! Que te estou esperando aqui! Subitamente me dei conta da presença, nas cristas dos morros em torno, silhuetas escuras de soldados usando quepes coloniais e levando mosquetes espreitavam o vale, movendo-se orquestrados pelos gestos da brilhante lâmina da espada de quem devia ser seu comandante.

Tomei a pá em minhas mãos trêmulas e me pus a caminhar em direção ao marulho de uma água próxima que deveria ser o Rio. Uma voz feminina, já familiar, soou em meu ouvido.

— Desta vez o enganaremos! Posso dizer onde estou!

Mantive silêncio, mentalmente perguntando a quem quer que estivesse falando o que deveria fazer. Então o meu pé sentiu um trecho mais fofo na terra dura e estéril daquela região cheia de maldições.

— É aqui! Cava e encontrar-me-ás! O bode velho vai ter de encontrar outro modo de torturar-nos!

— Não pode! Ele disse que era para cavar junto ao rio, que ainda está longe!

— Cava! — sussurrou a voz em minha cabeça, imperiosamente.

Pus-me a cavar com uma energia que não sabia ter, causando uma agitação entre os soldados nos morros. Pás e mais pás de terra amarela e visguenta eu atirava longe, como se fossem uma impureza que eu deveria dispersar enquanto eles murmuravam: eu tinha que ser rápida, pois quando a notícia de minha sorte chegasse ao bode velho ele viria para me matar.

Logo a pá bateu contra metal e soou um som rouco e breve. Comecei a limpar em torno com as mãos e achei um cadeado negro e gigantesco. Bati nele a pá com toda a força que queria ter, uma, três vezes. Ele partiu-se até com facilidade, como se fosse feito de ferro mal fundido.

Dentro do baú havia um esqueleto que já nem tinha mais cheiro de putrefação. Nenhum sinal de roupas. Os cabelos, que pareciam ser negros, cresciam em torno do crânio como erva sufocando uma árvore. Uma suave poeira subiu daquela urna improvisada, perdida por séculos, fazendo-me tossir com o seu cheiro acre: poeira de pele e músculos, restos mortais, mortíferos.

Olhei em torno, temendo a chegada do bode velho e seus capangas. Mas não havia ninguém por ali, apenas os braços magros das árvores e uma lua redonda que sibilava no céu como uma televisão fora do ar.

Fechei a tampa do caixote e olhei as minhas mãos sujas, sentindo-me estúpida. Outro delírio, desta vez sem febre, talvez tivessem razão e eu estivesse perdendo meu juízo. Caminhei até a fonte do ruído molhado e encontrei um regato bem menor do que o “rio” que o velho mencionara. Lavei nele as minhas mãos e o meu rosto, mas não tive coragem de tomar de sua água. Ela podia ser bela sob aquele luar, refletindo aquelas estrelas que são apenas sombras das estrelas que existiram há muitas eras, mas podia estar contaminada, podiam aqueles reflexos ser enganosos de uma paz e de uma inofensividade que não eram reais. Tal como não fora real a sensação de ter encontrado o fantasma que me fizera cavar aquela urna esquecida.

Pus-me a chorar outra vez. Olhei para as minhas mãos: elas sangravam de calos e feridas. Algumas unhas partidas, nas outras o esmalte descascado. Olhei para mim mesma, coberta de terra amarela, suada e descabelada. Joguei mais água no meu rosto, nos meus cabelos. Tinha a terrível sensação de que a poeira morta daquele cadáver secular tinha aderido à minha pele, que eu também cheirava a morte e a século.

Então decidi que precisava voltar para casa, que minhas férias tinham sido um grande malogro, que a minha vida não tinha sentido algum — a não ser, talvez, trabalhar para manter vivas outras pessoas, todas elas infelizes de algum modo. Mas não podia me matar, já tinha dívidas demais com Deus para querer contrair mais uma.

O caminho de volta passava pela curiosa grota onde estava o caixão e seu esqueleto nu. Parei de novo ao lado dele e me detive por alguns instantes a pensar em quem estaria ali sepultado. Uma forma terrível e humilhante de morrer: enterrado vivo e nu. Quem cometera essa maldade merecia bem mais do que o inferno pode oferecer. E enquanto isso, Deus se preocupa com quantas orações fazemos e se não beijamos a pessoa errada.

Tratei de fechar o caixão o melhor possível e devolvi-o à terra. No dia seguinte procuraria a Universidade. Os arqueólogos ficariam felizes de achar aquilo, teriam muitas teorias e teses e artigos — como gostam muito de fazer. Mas eu não queria saber de nenhuma teoria, o susto real fora o bastante.

No que me preparava para sair de lá, pegar o carro e retornar à realidade, ouvi um som qualquer por perto. Não sei dizer que som foi. Se foi um soluço, se foi um choro, se foi galhos estalando com o peso de um pé. Foi uma sensação morna, de presença humana, traduzida em algo que parecia um som, mas poderia ser só uma premonição.

Procurei em torno, à luz vaporosa da lua, e notei, outra vez, a casa antiga e quase arruinada. Era de lá que vinha a sensação arrepiante que eu tinha. Não foi fácil criar coragem para entrar lá, mesmo que eu não andasse dando muito valor à vida. Eu não me importaria de morrer, isso era verdade, mas ainda tinha a mesma aversão à dor que sempre tivera. Cheguei com cuidado, mas logo notei que isso não era preciso: quem ali estava não tinha condições de me causar mal nenhum. Era uma mulher miúda e muito branca, com cabelos muito compridos, totalmente nua e muito magra, como se tivesse ficado sem comer por vinte dias ou mais — o tempo exato desde que eu começara a sentir as misteriosas aparições. Ela estava amarrada sobre uma cama e no lençol, em torno de sua vagina, havia uma poça de sangue.

Ela não era realmente idêntica à assombração pálida que me visitava, apenas vagamente parecida, mas de alguma forma sentia, ou temia, que ela tivesse me levado até ali de alguma forma. Acendi um lampião de gás sobre a mesa, usando os fósforos que havia sobre ela, e fui desamarrá-la.

Não estava morta, embora estivesse exangue e febril e muito debilitada. Ela abriu os olhos quando sentiu minhas mãos, tão carinhosamente quanto possível, desamarrando os seus pulsos. Olhou-me com uma expressão que não guardava surpresa, apenas alívio:

— Você veio.

Ela não falava em “tu”, ao contrário da mulher que me aparecia em pesadelos, mas isso não me parecia incongruente. Só muito mais tarde eu consegui compreender o sentido de tudo aquilo.

Não lhe perguntei o que acontecera. Não foi preciso. Vesti-a com suas próprias roupas, rasgadas e jogadas a um canto, e a amparei enquanto saíamos. Ao longe, faróis cortavam a noite: era a estrada real, afinal. Eu não estava perdida em uma Zona Amorfa, mas na Zona da Mata Mineira. Bastava seguir aqueles faróis e em algum lugar encontraria meu carro.

Quando saímos pela porta da frente, ela me apontou num canto o que parecia ser, e logo vi que era mesmo, um outro corpo, este morto, com sinais de dias de decomposição. Era um homem grisalho e calvo, que morrera com um ricto de dor no rosto, e com as mãos comprimindo a própria virilha. Só ao vê-lo eu me dei conta, sob a luz azulada e sibilante do lampião, do horrível odor de morte que empestava aquele lugar. Pobre mulher! Como ela conseguira sobreviver naquelas condições, passando fome e sede naquele lugar, por tantos dias?

Alcancei o carro. Antes que outro veículo nos cruzasse, retirei de minha mala um vestido em melhor estado e cobri a nudez da desconhecida, cuja consciência era bruxuleante como a luz de um lampião, cujo gás vai acabando. Depois saí dirigindo para um dos dois lados da estrada. Não tentei nem escolher qual.

Não a levei à minha cidade, mas a Barbacena, que afinal estava perto. Ali internei-a numa clínica discreta até que estivesse em condições de dar explicações. Mas acabei não as pedindo jamais: ao cuidar de seu corpo tão maltratado descobri, para meu espanto, a justiça poética que a natureza propiciara no caso dela.

Pois aquela mulher, que aparentemente fora sequestrada por um maníaco, para ser estuprada e morta da maneira mais horrível, não tinha as cicatrizes de uma penetração desastrada, mas aquilo que aterroriza os sonhos mais profundos dos homens, mesmo os que não são capazes de estuprar uma mulher: vagina dentata.

Baseado no conto “História de uns Fantasmas”, encontrado no meu antigo site. Data do original: 2002.


02
Out 10
publicado por José Geraldo, às 12:10link do post | comentar

Minha peregrinação pela cidade de Malnéant ocorreu durante um período de minha vida não menos obscuro e dúbio que a cidade mesma e as regiões nebulosas em que se localiza. Não tenho recordação precisa de sua situação, nem posso lembrar exatamente quando e como cheguei a visitá-la. Mas eu tinha ouvido falar vagamente que tal lugar estava situado ao longo de meu caminho habitual, e quando eu cheguei àquele rio envolto em brumas que corre ao longo de suas muralhas, e quando ouvi além do rio o repicar fúnebre de muitos sinos, logo concluí que estava próximo a Malnéant. Ao chegar à colossal e cinzenta ponte que cruza o rio, poderia ter continuado à vontade rumo a outras estradas que conduzem a cidades ainda mais remotas, mas me pareceu que poderia entrar em Malnéant como se fosse qualquer outro lugar. E foi desta forma que pus o pé na ponte de arcos sombrios, sob a qual as águas negras corriam em impreciso fluxo, dividiam-se nas rochas e se juntavam outra vez, em silêncio, como o Estige e o Aqueronte.

Aquele período de minha vida, eu já disse, era obscuro e dúbio, ainda mais, talvez, por causa de minha necessidade de esquecimento, minha persistente e às vezes recompensada busca de obliteração. E aquilo que eu tanto queria esquecer, mais que tudo, era a morte da donzela Mariel, e o fato de que fora eu mesmo que a assassinara, tão certamente como se tivesse sido com as minhas próprias mãos. Porque ela me havia amado com um afeto mais profundo e puro e estável que o meu, mas meu temperamento instável, minhas ocasiões de cruel indiferença ou irritabilidade feroz, haviam partido seu calmo coração. Então foi desta forma que ela buscou o conforto de um lento veneno da alma, até finalmente ser posta a descansar nas trevas das criptas de seus ancestrais. Desde então eu me tornei um vagabundo, perseguido e sempre torturado por um remorso impiedoso. Por anos e meses, dos quais não estou seguro, eu vaguei de cidade a cidade do Velho Mundo, pouco me importando onde dava, se apenas vinho ou outros agentes de estupor estivessem disponíveis… E então eu cheguei, em algum momento de minha jornada indefinida, às vizinhanças lúgubres de Malnéant.

O sol (se alguma vez brilhou naquela região) estava oculto havia muito tempo, nem sabia quanto, em um céu de vapores plúmbeos, o dia estava feio e insípido, para dizer o mínimo. Mas então, pelo espessamento das sombras e das névoas, eu sentia que a noite estava chegando, e os sinos que ouvia, embora pesados e sepulcrais em seu repicar, davam ao menos a promessa de segurança pela noite. Então eu cruzei a longa ponte e entre o portão tristemente escancarado com um apressar de meus passos mesmo sem alegria no espírito.

O crepúsculo havia atingido além das muralhas cinzentas, mas havia poucas luzes na cidade. Poucas pessoas estavam pelas ruas, e estas seguiam seu caminho com uma pressa solene, como se em algum compromisso perigoso que não admitisse nenhum atraso. As ruas eram estreitas, as casas muito altas, com balcões que se projetavam e cortinas pesadamente cortinadas ou tolhidas de persianas. Tudo era muito silencioso, exceto pelos sinos, que repicavam recorrentemente, às vezes débeis e distantes, às vezes com um clangor alto e despertador que parecia vir praticamente de cima. Enquanto eu penetrava através das sombras das mansões obscuras, através das ruas das quais um certo crepúsculo surgia para envolver-me, parecia que eu estava indo para mais e mais longe de minhas memórias a cada passo. Por esta razão eu não perguntei de imediato pelo caminho de uma taverna, mas me contentei em errar cada vez mais pelo labirinto de edifícios, que se tornava mais cinza e mais vago em meio à escuridão progressiva e o nevoeiro, como se dissolvendo-se em olvido.

Eu acho que minha alma quase estaria em paz consigo, se não fosse o toque reiterado dos sinos, que eram como os que repicam pelo repouso dos mortos, e por isso me recordavam sempre aqueles que haviam tocado por Mariel. Mas sempre que eles pausavam, meus pensamentos escorregavam de volta à calma indolente, à segurança recuperada, à vaguidão circundante… Eu não tinha ideia do quanto penetrara em Malnéant, nem por quanto tempo eu vagara entre suas casas que pareciam não poder ser habitadas por ninguém a não ser os mortos em seu sono. Por fim, no entanto, eu percebi que estava muito cansado, e pensei em pão e vinho e uma cama para a noite. Mas em nenhuma parte enquanto andara eu percebera o letreiro de qualquer hospedaria, e por isso tive de perguntar a um transeunte qualquer a direção desejada.

Como disse antes, eram poucos os que estavam fora. Naquele momento, quando me decidi a dirigir-me a um deles, parecia que não havia mais nenhum e que eu andava de rua em rua em uma fútil procura de uma viva alma.

Finalmente encontrei duas mulheres, vestidas de cinzento tão feio e frio como as dobras da névoa, e totalmente veladas, que se apressavam com a mesma determinação fúnebre que eu percebera em todos os outros habitantes daquela cidade. Criei coragem para aproximar-me delas, perguntando se poderiam direcionar-me a uma hospedaria. Quase sem pausar e sem mesmo voltar suas cabeças, elas responderam: “Não podemos dizer-lhe. Somos tecelãs de mortalhas e estivemos ocupadas fazendo uma para a donzela Mariel.” Então, ao ouvir tal nome, que de todos os nomes do mundo era o que eu menos esperava ou queria ouvir, um calafrio inexplicável invadiu meu coração, e um terrível desânimo abateu-me, como se eu respirasse o hálito da morte. Era realmente estranho que naquela cidade em penumbra, tão distante no tempo e no espaço de tudo que eu fugira para esquecer, uma mulher houvesse morrido recentemente e seu nome fosse Mariel. A coincidência era tão sinistra que um medo ímpar das ruas por que andara nasceu subitamente em minha alma. O nome evocara, de forma mais irrevogavelmente fatal que o repicar dos sinos, tudo que eu desejara em vão esquecer, as lembranças que eram carvões em brasa em meu coração.

À medida que prosseguia, com passos que haviam se tornado mais apressados, mais febris até, que os da gente de Malnéant, eu encontrei dois homens, que estavam da mesma forma vestidos da cabeça aos pés de cinzento, e perguntei-lhes o mesmo que perguntara às tecelãs de mortalhas; “Não podemos dizer-lhe,” eles responderam. “Somos fazedores de caixões e estivemos ocupados fazendo um para a donzela Mariel.”

Enquanto falavam, e se apressavam, os sinos tocaram de novo, daquela vez muito perto de mim, com um tom maior de nebulosa e sepulcral ameça em seu repicar pesado. E tudo ao meu redor, as altas e nebulosas casas, as escuras e indefinidas ruas, as raras e espectrais figuras, tornou-se parte de uma confusão indistinta de medo, preocupação e pesadelo. Momento a momento, a coincidência em que tropeçara aparecia mais bizarra ainda de se aceitar, e eu me sentia então perturbado pela monstruosa e absurda ideia de que a Mariel que eu conhecera havia acabado de morrer, e que aquela fantástica cidade estava, de alguma maneira incompreensível, ligada à sua morte. Mas isto, é claro, minha razão rejeitava sumariamente, e eu repetia para mim mesmo: “A Mariel de que falam é outra Mariel.” E me irritava além de toda medida que um pensamento tão inadequado e ridículo continuasse retornando, mesmo que minha lógica o houvesse repelido. Não encontrei ninguém mais a quem perguntar o caminho. Mas por fim, enquanto lutava com minha sombria perplexidade e as memórias flamejantes, eu me achei parado abaixo do letreiro de uma hospedaria, castigado pelo tempo, cujas letras tinham sido quase apagadas pelo tempo e pelo mofo. O edifício era obviamente muito antigo, como todas as casas de Malnéant, e seus andares superiores se perdiam no redemoinho da neblina, exceto por umas poucas e furtivas luzes que brilhavam na escuridão que descia, e um vago e musgoso odor de antiguidade saiu para cumprimentar-me quando eu subi as escadarias e tentei abrir a pesada porta. Mas esta havia sido trancada ou bloqueada, então eu comecei a bater com meus punhos para atrair a atenção de quem estivesse dentro. Após muito tardar, a dor foi aberta, lentamente e a contragosto, e um indivíduo de aparência cadavérica apareceu, com uma grave expressão de desgosto ao ver-me.

“O que deseja?” Ele inquiriu, com uma entonação ao mesmo tempo brusca e solene.

“Um quarto pela noite, e vinho.” Eu pedi.

“Não podemos acomodá-lo. Todos os quartos estão ocupados pelas pessoas que vieram assistir às exéquias da donzela Mariel, e todo o vinho da casa foi requisitado para seu uso. Você terá de ir a outro lugar.”

Ele fechou rapidamente a porta em meu rosto ao dizer as últimas palavras. E eu tive de retomar minha perambulação, e tudo o que me perturbara antes foi intensificado umas cem vezes. As névoas cinzentas e as casas imprecisas estavam cheias da ameaça da lembrança: eram como tumbas traiçoeiras das quais os cadáveres das horas mortas surgiam para assaltar-me com suas presas e garras venenosas. Eu maldisse a hora em que entrara em Malnéant, porque me pareceu então que ao fazê-lo eu apenas completara um círculo funéreo e sinistro no tempo, e retornara ao dia da morte de Mariel. E certamente todas as minhas lembranças dela, de sua agonia final e de seu sepultamento, haviam assumido a vitalidade assustadora de fatos presentes. Mas meus pensamentos ainda mantinham, claro, que a Mariel que estava morta em algum lugar de Malnéant, e por quem todos aqueles ritos de exéquias estavam sendo cumpridos, não era a mesma donzela que eu amara, mas uma outra.

Depois de percorrer ruas que ainda eram mais escuras e estreitas que todas por onde passara, encontrei uma segunda hospedaria, ostentando um letreiro similarmente batido pelo tempo, e em todos os aspectos muito parecida à primeira. A porta estava bloqueada, e eu bati com força, e não me surpreendi de modo algum quando um segundo indivíduo, de rosto cadavérico, me informou em solene e sepulcral entonação:

“Não podemos acomodá-lo. Todos os quartos foram tomados por músicos e carpideiras que atuarão nas exéquias da donzela Mariel, e todo o vinho foi reservado para seu uso.”

Então eu comecei a temer a cidade ao meu redor com medo multiplicado: porque parecia que toda a ocupação da gente de Malnéant consistia em preparativos para o funeral da tal donzela Mariel. E começou a ser óbvio para mim que eu deveria perambular pelas ruas da cidade por toda a noite sem abrigo por causa dos mesmos preparativos.

Subitamente, um cansaço arrebatador se mesclou ao terror e à perplexidade de meu pesadelo.

Não continuara por muito tempo minha peregrinação, depois de deixar a segunda hospedaria, quando os sinos repicaram mais uma vez. Pela primeira vez, pude identificar sua origem: eles estavam nas torres de uma grande catedral que pairava imediatamente acima de mim na neblina. Algumas pessoas estavam entrando na catedral, e uma curiosidade, que eu sabia ser ao mesmo tempo mórbida e perigosa, me levou a segui-los. Lá eu senti de alguma forma que seria capaz de conhecer mais do mistério que me atormentava. Estava tudo em penumbra lá dentro, e a luz de muitos pavios mal conseguia iluminar a vasta nave ou o altar. Uma missa estava sendo rezada por padres vestidos de negro, cujas faces não podia divisar claramente, seus cantos pareciam palavras em um sonho, das quais nada ouvia, e nada estava visível de forma definida no lugar, exceto um féretro coberto de tecidos opulentos no qual jazia uma forma alva. Flores de vários matizes haviam sido salpicadas sobre o féretro, sua fragrância preenchia o ar com um langor sonolento, com um amortecimento que parecia drogar meu coração e minha alma.

As mesmas flores haviam sido postas no féretro de Mariel, e desta forma, por causa de seu perfume, eu fora, em seu funeral, abatido por um entorpecimento momentâneo dos sentidos. Vagamente eu percebi que alguém me acotovelara. Com olhos ainda fixos no féretro, eu perguntei:

“Quem é que jaz ali, por quem é rezada esta missa e tocados estes sinos?”

E uma voz lenta e sepulcral respondeu:

“Eis a donzela Mariel, que ontem morreu e que será amanhã enterrada nas criptas de seus ancestrais. Se é seu desejo, pode aproximar-se e mirar seu rosto.”

Então eu percorri o corredor da catedral, até junto do féretro, cujos tecidos opulentos caíam até a lousa fria. E a face daquela que lá jazia, com um sorriso tranquilo nos lábios, com doces sombras sobre as pálpebras fechadas, era a face da mesma Mariel que eu amara, e não de outra. As vagas do tempo congelaram seu fluxo, e tudo que era ou fora ou seria, tudo do mundo que existira além dela, tornou-se como sombras vacilantes, e da mesma forma que antes (passadas eras ou minutos) minha alma foi trancada no inferno de mármore do supremo luto e arrependimento. Eu não podia me mexer, eu não podia gritar nem chorar, porque minhas lágrimas se tornavam em gelo. E então eu soube com certeza terrível, que aquele único evento, a morte da donzela Mariel, tinha sido arrancado de todos os outros acontecimentos, tinha sido separado da sequência do tempo e achado para si um cenário de penumbra e solenidade adequadas, ou talvez até construído em torno de si aquela enorme e labiríntica urbe, para ali aguardar meu retorno em meio às névoas do esquecimento. Por fim, com um imenso esforço da vontade, eu retirei meus olhos dela, e deixei a catedral em passos apressados, apesar de tolhidos pelo chumbo de minhas pernas, para buscar uma saída daquele labirinto horrível de Malnéant, para procurar o portão por onde entrara. Mas isto não foi de forma alguma fácil, devo ter vagado por horas pelos becos, opressivos e sem saída como tumbas, e pelas tortuosas e convolutas vias, até que me achei em uma rua familiar e dela fui capaz de dirigir meus passos com alguma certeza. E um mormaço fraco brilhava através das nuvens de um dia amortecido e nublado que nascia além das névoas quando eu cruzei a ponte e cheguei outra vez à estrada que me levaria para longe daquela cidade infeliz.

Desde então eu tenho vagado por muitos lugares. Mas nunca mais procurei revisitar aquele reino antigo de nevoeiro e de neblina, por medo de que chegar outra vez a Malnéant e descobrir que sua gente ainda está ocupada com os preparativos para as exéquias da donzela Mariel.


24
Set 10
publicado por José Geraldo, às 07:27link do post | comentar
O que fizemos foi muito belo,mas foi uma loucura sem sentido.O sonho é uma peçonha aparecidaapesar do que somos nas manhãs.Estávamos lá entre coqueiros e sol,bonitos e molhados de mar,e até a porca que passou na praiamereceu entrar em um poema.— Mas como foi sem sentido,se sentimos tanto não ter sido eterno?Aquela noite ganhou cores,aqueles dias ficaram sólidos na almae ainda hoje o teu perfume purifica-me.O que eu sei de sentidos é pouco,só tenho umas opiniões precárias.Sei que onde há motivos e houve sonhosnunca nada é realmente dado,tudo é conseguido, tudo pesa.E somos compradores e cambistasde ilusões na feira do que não virá.Compramos barato e sem embrulhar,depois notamos que não há mercadopara o que não queremos  mais.Então abandonamose restam as lembranças na parede— da alma, não da casa.
Originalmente escrito no início de 2000, revisto hoje.

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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
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