Jamais compreendi a origem das histórias de fantasmas, embora tenha sempre entendido a vontade, quase necessidade, que o ser humano tem de encontrar no mundo algo que vá além do concreto e do absurdo de nossas vidas uniformizadas. Por ódio à rotina é que tentamos beirar a transcendência, tentamos atingir o “algo mais”, romper o cimento cinza que recobre o jardim de inverno e encontrar terra úmida, cheia de vida, ali sepulta.
Mas daí a crer em formas espectrais que vagam pelas noites, sem destino e sem explicação… Ah, isso já é coisa diferente. É fácil imaginar Deus, mas não é possível acreditar em assombrações sem desligar o cérebro. Na qualidade de cientista, sempre me recusei a crer nessas coisas — na verdade, ainda reluto.
Meu ceticismo, porém, ficou menos agressivo de uns anos para cá. Posso não ter ainda aceitado como reais certas experiências que vivi, posso ainda sustentar que foram ilusões no meio de uma noite mal dormida, alucinações de um cérebro vitimado por uma contusão; mas, como cientista, vejo-me forçada a ser imparcial em meu relato. Tenho ainda como quase um dever a rejeição de tudo isso e preciso seguir na expectativa, quase esperança, de achar uma explicação materialista. Como ainda não tenho esta explicação, me limitarei a registrar o que vi. Pode ser que a minha memória futuramente falhe, levando-me a harmonizar o as coisas com as ideias em que creio, fazendo com que, a longo prazo, a minha vivência seja marretada na fôrma de uma teoria preconcebida. Para evitar isso, narro ainda no calor dos fatos.
Tudo começou na noite de quinze de abril deste ano. Eu estava acamada com uma gripe mais forte do que o normal e a febre alta me fazia tremer e delirar. Isso me levava ao desespero, pois sou uma mulher sozinha, em uma cidade estranha, e nem sempre os telefones são confiáveis, por causa da polícia tentando espionar subversivos e causando curto-circuitos. Foram horas terríveis que passei. Horas de enjoos e vômitos, vividas com a ajuda fácil de um saco de pílulas subtraídas da farmácia do hospital. Houve instantes em que eu simplesmente ingeria pílulas ao acaso, sem sequer saber o que estava tomando. Fui irresponsável, fui louca, fui quase uma suicida. Os médicos não são, ao contrário do que o povo pensa, pessoas dotadas de mais juízo. Eles apenas têm um diploma e uma pose. De resto, sangram, sofrem e enlouquecem como qualquer um.
Na noite de quinze de abril foi que eu comecei a melhorar. O meu nariz descongestionou quase totalmente, a febre baixou a um nível suportável e os enjoos pararam definitivamente. Eu ainda me sentia muito fraca por causa de um misterioso sangramento que ocorrera na manhã daquele dia, mas tinha tomado dois pratos fundos de sopa de feijão com alho e linguiça no almoço, mais um na janta, e isso tinha ajudado a repor a hemoglobina.
Não sei se minha melhora tinha algo a ver com a sensível diminuição do peso do saco de comprimidos. Sei que eu me sentia estranha, eu quase sentia o meu corpo fora de mim, ou me sentia fora de meu corpo, sei lá, algo assim. Minhas extremidades estavam dormentes, meus dentes pareciam maiores que a boca, a minha língua estava mole e enorme e eu sentia no meu corpo um cheiro forte de cloro e amônia, como se eu me tivesse urinado toda e tentado me lavar durante horas usando apenas água, essa água fortemente clorada que vem nos encanamentos.
Deixei a televisão ligada e deitei-me escutando o suave cicio das válvulas. Então aconteceu.
Acordei tremendo convulsivamente, como se o meu corpo estivesse debatendo-se na agonia da morte. Como peixe fora d’água. Digo “meu corpo” porque eu me sentia fora dele, embora sentisse as mesmas coisas que ele e também encarasse para a parede com olhos arreganhados. Minhas mãos estavam agarradas à coberta e o colchão pulava sobre o estrado como a sela de um cavalo de rodeio. De repente, senti uma mão fria tocar a minha nuca. A sensação passou de todos os limites do suportável e eu me debatia com todas as minhas forças, a ponto de as minhas unhas entrarem na carne da palma da mão, a ponto de meus pés baterem na madeira da cama. Calafrios sucessivos desciam e subiam pela minha coluna como se algum torturador a estivesse percorrendo com uma pedra de gelo.
Não sei quanto tempo estive presa neste momento. Talvez minutos, talvez meros segundos. A custo, voltei ao meu corpo e o instruí a dirigir todas as energias que pudesse ter ao esforço de virar-se para ver o que havia às minhas costas. Foi como tentar pôr de pé um caminhão tombado, mas finalmente aconteceu.
No momento em que as minhas costas bateram contra o colchão, com o peso do corpo de um elefante sedado que cai na savana, eu pude ver, apenas de relance, a imagem fugidia de uma mulher. Ela era alta, branca como arroz e tinha cabelos pretos, avermelhados. Usava algum tipo de roupa negra muito comprida e difusa e estava de pé ao lado da cama, parecendo surpresa que eu tivesse conseguido me virar. Assim que a vi ela já não estava mais lá. Como se nunca tivesse estado.
Por todo o resto daquela noite, estive deitada de costas em minha cama, com um medo atávico de pensar em pôr os pés no chão. Senti-me novamente criança, lembrando do tempo em que eu tinha pesadelos nos quais a minha cama era uma jangada num lago cheio de monstros aquáticos, que me veriam e me comeriam se eu me mexesse muito ou se tocasse a “água” fora do colchão.
Amanheci curada da febre, mas estava péssima como se tivesse bebido todo o rum do Caribe e atravessado o Oceano a bordo de um bote. Certamente era efeito colateral de alguns dos remédios que tinha tomado sem cuidado, ou a soma de vários efeitos colaterais, de associações medicamentosas esdrúxulas e perigosas, de químicas misteriosas que meu corpo havia misturado e estava eliminando pelo meu suor.
Logo que me vi de pé, apesar de toda a “ressaca seca” que eu sentia, percebi-me presa a um desejo incontrolável de purificação. Abri as janelas do apartamento, lavei-o obsessivamente com água, cloro e sabão, três vezes. Lavei até os móveis, usando uma espuminha e todo um tubo de detergente. Lavei até as minhas roupas, depois de fervê-las como se eu as tivesse roubado de um leproso.
Passei o dia praticamente sem comer e sem companhia. Só fui lembrar que ainda era humana e precisava de alimento quando já anoitecia. Carlos tinha me ligado com perguntas genéricas sobre como eu estava e eu fui suficientemente evasiva para não lhe causar escrúpulos. Detesto a ideia de que o interesse possa ser movido pelo remorso. Entendo perfeitamente a necessidade, muito humana, de agredir e fazer sofrer quem nos faz bem: nada é tão odioso quanto a compaixão. Carlos me ligar àquela altura era uma humilhação. Se ele tivesse sido insensível e me convidado para sair como se nada tivesse acontecido, eu teria achado mais digno da parte dele. Melhor ser um babaca do que um babaca que se acha na obrigação de ter “preocupação”. Mandei Carlos à merda ao desligar o telefone e fui fazer sanduíches improvisados, que comi acompanhados de leite gelado e chá mate. E fui dormir bem cedo.
Como a noite de dezesseis de abril transcorreu praticamente sem sustos, foi fácil creditar os meus delírios, especialmente a visão da mulher, a algum tipo de efeito maluco daquele coquetel do inferno que eu havia tomado. Felizmente não tive que enfrentar a aparição de Carlos. Ao contrário de fantasmas, ele não teria conseguido sair de perto de mim sem pelo menos uma facada na jugular. Não naquele dia. Hoje já o perdoei. Quem se vingou, perdoa fácil.
Voltei a trabalhar, apesar do ar de espanto dos colegas. Aqueles putos nunca me haviam aceitado mesmo, sempre haviam visto com desconfiança uma mulher bonita, solteira e diplomada. Nesse cu de mundo onde vim parar, tem muita gente que acha que mulher só serve para parir e cozinhar. Eu não sei cozinhar, encomendo marmitas de um restaurante. Eu não quero parir. Sou médica, já botei muito menino no mundo, mas gosto mais de receitar anticoncepcionais do que de fazer partos.
Os dias seguintes foram tranquilos. Minha nova autoestima me ajudou a enfrentar a frieza de alguns de meus “amigos” e o ar palerma e calhorda do Carlos, com seu ridículo escrúpulo de fingir diante de mim que ele e a Aparecida não estão noivando para casar. Aparecida não tem diploma, é secretária. Ela tem cintura larga, de quem vai parir muito, e gosta de cozinhar. Ela nasceu para fazer as vontades de um macho, ela é o que Carlos andava procurando e não achou comigo: eu faço o que quero. Estou sozinha, mas não sirvo de incubadeira para os herdeiros de um filhinho de papai interiorano. Não foi para terminar diante do fogão que meu pai se sacrificou para me dar esse diploma. Ele me pedia que eu ajudasse a curar as misérias do mundo. Ele achava que a miséria era uma doença. Pobre homem. Talvez o único homem que eu realmente amei.
A tranquilidade não durou, porém. Dia seis de maio tive outra recaída da febre, inexplicavelmente. Fiz uma série de exames, nenhum indicando qualquer alteração no meu sangue. Comecei a ficar preocupada, mas não tinha nenhum colega em quem pudesse confiar. Não ainda.
Passei o dia em casa, fazendo escalda-pés. Não para a febre, mas tentei me distrair fazendo as unhas, e nada melhor do que água quente com sabão para amolecê-las. No fim do dia eu estava com pés de ninfa e a cabeça rodava em cima do pescoço como se fosse um pião que alguém soltara no terreiro.
Quando me levantei do sofá, cambaleei e caí, entornando a bacia d’água e batendo a cabeça no braço da poltrona. Fiquei encostada na parede, vendo a sala rodar, durante um longo tempo, até finalmente criar coragem e ir para minha cama. No meio de todo o terror de estar delirando, eu senti outra vez aquela mão gelada me tocando. Desta vez, já preparada para o que viria a seguir, consegui virar-me com mais facilidade e pude encarar a visão da mulher-fantasma com mais atenção.
Ela não tinha nenhuma roupa negra, ao contrário do que eu tinha pensado. Eram os seus cabelos imensamente longos, muito abundantes, que a pareciam vestir. Estava nua e sua aparência era totalmente irreal, de alguma forma caricatural e desarmônica. Não sei se eram os membros excessivamente magros, a pele excessivamente clara, os pelos pubianos excessivamente crescidos… ou aqueles olhos redondos que pareciam poços profundos. Alguma coisa nela berrava, esgoeladamente, “morte”.
— Eu venho procurando há muito tempo alguém como tu — ela disse.
Ela sorria e parecia uma caveira. Mas quando parava de sorrir, estava belíssima e viva outra vez, ou parecia.
— Há três séculos que busco. Minha tortura é cada vez mais insuportável. Vem, salva-me! Só tu podes perdoar-me e aceitar-me!
Ela punha a mão em minha testa para dizer isso e esse toque era como um eletrochoque no meu sistema nervoso. Enquanto ela falava eu me debatia na cama, babava e gemia.
— Não podes morrer sem vir até mim! Não morrerás, decerto não morrerás! Vem e salva-me!
Por fim ela se ergueu de onde estava e me deu as costas para ir, permitindo que eu visse os sulcos de suas costelas e a cicatriz negra de uma marca feita a ferro em sua pele, com dizeres que não tive tempo de reconhecer.
Depois disso eu não consegui mais me concentrar no trabalho. Não tinha mais cabeça para ouvir as repetitivas histórias de pobres mulheres oprimidas, com seus males incompreendidos, seus maridos incompreensíveis e suas gravidezes. Cada vez que olhava pela janela e via uma tira de céu azul eu me sentia engaiolada. Sentia-me como quem sabe que há um espetáculo na praça, mas permanece em casa.
A mulher fantasma voltou a assombrar os meus sonhos, sempre com a violência imperativa de uma crise epiléptica. E foram muitas as vezes, ainda em maio e junho, piorando à medida em que o inverno se aproximava, tornando-se cada vez mais lamurienta:
— Vem logo, que o inverno é a pior parte do ano. Esse frio me enregela! Vem, salva-me!
Por fim meus nervos não suportaram mais. Resolvi tirar férias antes que os meus colegas me diagnosticassem como louca e me pusessem no manicômio para servir de exemplo às suas filhas para que logo arranjassem marido e parassem de pensar em estudar. Tinha oito anos quase que eu trabalhava sem férias, seis deles naquele hospital. Trabalhava em todos os plantões possíveis, aceitava todas as cirurgias e todas as consultas. Se fosse homem, teria já um nome respeitável e uma bonita clínica. Se pelo menos eu fosse obstetra ou ginecologista… Mas não, eu era pneumologista. Especialidade “de homem”. Estava condenada a ser plantonista assalariada, pelo menos até criar coragem e partir para um lugar maior, de mentes mais abertas. Talvez Júpiter.
Ainda não tinha esquecido Carlos, e na verdade eu ainda não sabia o que fazer de minhas férias. Tinha medo de chegar ao trevo, parar o carro, deitar a cabeça ao volante e chorar sem saber aonde ir. Meus pais, adotivos, estavam mortos. O resto de minha família postiça me desprezava, achavam que tinha sido uma usurpação eu estudar tanto às custas do dinheiro de meu pai. Filha adotiva é para ficar analfabeta, solteira e cuidar dos seus benfeitores na velhice. Eu estudei, casei cedo, me divorciei daquele estúpido e efeminado do Roberto depois de traí-lo com um colega de trabalho, e pus meus pais no asilo para poder trabalhar. Com essa ficha corrida, voltar a Santana do Monte seria quase risco de vida.
Por isso eu prolonguei meus preparativos durante dois dias. Dois dias em que eu maquinei se devia convidar algum homem para ir comigo. Eu tinha muita vontade de ir com algum, mais pela companhia do que por sexo, mas… bem, sejamos sinceros aqui: pelo sexo também. Não é crime dizer isso, pelo menos não ainda.
Mas eu me sentia uma colegial tímida, incapaz de decidir. Sabia que não poderia gastar muitos cartuchos. Recusas iniciais significariam, para quem fosse lembrado por último, a incômoda sensação de ser lembrado como “última esperança”. Era preciso refletir bem. Por fim resolvi ser conservadora e liguei para o Francisco.
Francisco era office-boy no hospital. Tinha doze anos menos do que eu, era bonito e parecia tão tímido que eu não me surpreenderia se ele ainda fosse virgem. Era possível que ele não pudesse ir por razões além de sua vontade, mas eu tinha, pelo menos, a certeza de que nem lhe passaria pela cabeça recusar o meu convite. E não me decepcionei. Ele disse que topava antes que eu tivesse tempo de terminar. Acredito que ele teria ido comigo mesmo que eu estivesse indo à puta que o pariu.
Mas ele estava engaiolado também. E quando você tem dezoito anos é muito difícil ter a liberdade para viver o que quer. Mais tarde você conquista a liberdade, mas daí já nem lembra mais para quê. Eu cheguei ao trevo, parei o carro, encostei a cabeça no volante e comecei a chorar, me perguntando “para onde” e “para quê”.
Então tinha decido ir sozinha. Estava enfrentando isso, mas estava me saindo derrotada do grande combate contra minha própria carência. Maldito Carlos, ele nem sabe que eu poderia tê-lo feito feliz! Tomara que a Aparecida engorde até virar uma broa, que fique de calcanhares rachados e papo triplo!
Por fim, liguei o motor, acelerando até ouvir os pistões assobiarem, e saí à toda pela estrada, seguindo o rumo que meu nariz apontava. Tinha sido dona de meu nariz por muito tempo, resolvi deixar ele ser dono de meu destino um pouco.
As estradas andavam mal sinalizadas naquela época, e também esburacadas. Eu dirigia dividindo minha atenção entre o pavimento danificado e as placas poucas que apareciam escondidas na vegetação densa do acostamento. Tinha deixado para sair no fim da tarde, para viajar à noite, evitando o tráfego e o calor do veranico, mas acabei me vendo diante de um sono que ameaçava me derrubar. Para meu azar ele se abateu sobre mim num trecho deserto da estrada, longe de cruzamentos, sem luzes de casas pontilhando o horizonte e com apenas clarões de cidades à distância.
De repente, senti outra vez em minha nuca o toque familiar e frio de algo que parecia uma mão. E ao meu lado apareceu outra vez a mesma mulher que eu vira em meus delírios e em sonhos. Daquela vez parecia até mesmo ter um corpo. Estava tão pálida como sempre e mais bela do que nunca, levava um ensaio de sorriso no rosto e, ao contrário do que fizera nas vezes anteriores, já não tentava cobrir sua nudez hirsuta com as mãos — e ousava aparecer diante de mim sem esperar eu dormir.
— Que bom que vens ajudar-me!
Não sei se foi a solidão da estrada, o meu medo de dormir ou o que, mas senti vontade de falar-lhe — pela primeira vez desde que a vira em meu quarto em quinze de abril. “Se é capaz de falar e de me ouvir — eu pensava — então é uma companhia como outra qualquer nessa viagem”.
— Não estou entendendo, não estou indo te ajudar. Vou passar uns dias na praia, e é só.
Ela ignorou o que eu tinha dito e insistiu, com uma expressão séria:
— Eis o que achas, mas não é o que fazes agora. A estrada que segues não se dirige ao litoral, mas ao interior!
Um ligeiro calafrio me percorreu a espinha quando olhei com o canto do olho uma placa à beira da estrada onde se podia ler, muito mal por causa da ferrugem, “Barbacena 30km.”
Freei imediatamente e a mulher desapareceu. Desci do carro e me pus a andar em torno dele, desorientada. Ainda havia um resto de lusco-fusco no céu, um vermelhão que se refletia nas coisas, dando-lhes uma aparência meio irreal.
— Como foi que perdi tanto o caminho que devia seguir? — perguntei-me sem pronunciar as palavras.
Entrei no carro, dei meia-volta, e resolvi tentar outra vez. “Se Barbacena é para lá”, refletia, “então devo chegar ao estado do Rio de Janeiro se for para o outro lado”. E assim fiz. Mas, duas horas depois, para minha grande surpresa, me vi diante de outra placa que indicava “Barbacena 42km”.
Àquela altura o desespero me atingiu. O carro estava quase sem gasolina, porque não tinha visto nenhum posto durante todo aquele tempo. Eu não sabia onde estava, nem para onde estava indo. Certamente para quem não sabe aonde vai, todos os caminhos servem igualmente, mas somente até acabar o combustível. Daí você se iguala a qualquer perdido. E precisa aguardar que a polícia venha te socorrer.
Mantendo a cabeça fria, decidi estacionar onde houvesse espaço limpo à beira da estrada e dormir até o amanhecer. Com o dia claro haveria trânsito e pessoas dispostas a dar informações. Era uma decisão arriscada, ainda mais para uma mulher sozinha, mas eu ia fazer o que?
Segui em direção a Barbacena — se é que a estrada realmente ia dar em Barbacena — e por volta de dez e meia da noite encontrei um lugar que parecia apropriado. Estacionei, fechei as janelas e acionei as travas das portas, depois reclinei o banco e tentei dormir.
Acordei com o zumbido de um vento forte e um céu carregado de negras nuvens que cobriam o luar. Uma voz cheia de pigarro parecia tentar me dizer alguma coisa. Olhei em volta e não havia nada. A não ser aquela sensação de que uma mão tocava minha nuca. Mas daquela vez uma mão estranha, grande e bruta.
Abri a porta do carro e saí correndo de medo pelo asfalto afora, sabendo que seria inútil. Um homem alto, de barba grisalha, peito largo e mãos enormes, trajando um uniforme militar de séculos atrás estava parado exatamente sobre a longa faixa amarela. Ele tinha uma expressão cansada e certamente inofensiva no rosto, muito embora sua figura parecesse ameaçadora. Em parte porque seu abdômen estava manchado de escuro — talvez de sangue.
— Encontrei-a finalmente! Deus, como a procurei, bruxa maldita! — ele parecia falar comigo, mas ao mesmo tempo não.
— Acompanha-me! Tenho algo que devo dar-te!
Antes que eu pudesse dar meia volta ele já estava tão junto a mim que não tive como me recusar a acompanhá-lo. Só então percebi que ele não estava só: havia pelo menos quatro outros, também uniformizados, junto com ele.
— Já que vamos seguir juntos, seria interessante, para mim, saber com quem estou indo — aventurei-me.
— Não te preocupes, sei quem és. E sabes quem sou. Isso basta-nos.
Chegamos a uma grota cheia de mato onde havia uma casa arruinada que, curiosamente, parecia menos arruinada à medida em que chegávamos mais perto. Junto à porta estava uma pá. O barbado, que parecia o chefe, indicou-a e disse:
— Para que não digas que sou impiedoso, tens todo o tempo do mundo para encontrá-la. Ela está dentro de uma arca perfeitamente lacrada que enterrei em algum lugar próximo ao rio. Se a encontrares nas próximas horas, ainda estará viva e deixar-vos-ei seguir livres e sem culpa. Se não a encontrares até o amanhecer, ela estará morta e tu também!
E desembainhou uma espada militar, que brandia no ar, enlouquecido.
— Vai! Que te estou esperando aqui! Subitamente me dei conta da presença, nas cristas dos morros em torno, silhuetas escuras de soldados usando quepes coloniais e levando mosquetes espreitavam o vale, movendo-se orquestrados pelos gestos da brilhante lâmina da espada de quem devia ser seu comandante.
Tomei a pá em minhas mãos trêmulas e me pus a caminhar em direção ao marulho de uma água próxima que deveria ser o Rio. Uma voz feminina, já familiar, soou em meu ouvido.
— Desta vez o enganaremos! Posso dizer onde estou!
Mantive silêncio, mentalmente perguntando a quem quer que estivesse falando o que deveria fazer. Então o meu pé sentiu um trecho mais fofo na terra dura e estéril daquela região cheia de maldições.
— É aqui! Cava e encontrar-me-ás! O bode velho vai ter de encontrar outro modo de torturar-nos!
— Não pode! Ele disse que era para cavar junto ao rio, que ainda está longe!
— Cava! — sussurrou a voz em minha cabeça, imperiosamente.
Pus-me a cavar com uma energia que não sabia ter, causando uma agitação entre os soldados nos morros. Pás e mais pás de terra amarela e visguenta eu atirava longe, como se fossem uma impureza que eu deveria dispersar enquanto eles murmuravam: eu tinha que ser rápida, pois quando a notícia de minha sorte chegasse ao bode velho ele viria para me matar.
Logo a pá bateu contra metal e soou um som rouco e breve. Comecei a limpar em torno com as mãos e achei um cadeado negro e gigantesco. Bati nele a pá com toda a força que queria ter, uma, três vezes. Ele partiu-se até com facilidade, como se fosse feito de ferro mal fundido.
Dentro do baú havia um esqueleto que já nem tinha mais cheiro de putrefação. Nenhum sinal de roupas. Os cabelos, que pareciam ser negros, cresciam em torno do crânio como erva sufocando uma árvore. Uma suave poeira subiu daquela urna improvisada, perdida por séculos, fazendo-me tossir com o seu cheiro acre: poeira de pele e músculos, restos mortais, mortíferos.
Olhei em torno, temendo a chegada do bode velho e seus capangas. Mas não havia ninguém por ali, apenas os braços magros das árvores e uma lua redonda que sibilava no céu como uma televisão fora do ar.
Fechei a tampa do caixote e olhei as minhas mãos sujas, sentindo-me estúpida. Outro delírio, desta vez sem febre, talvez tivessem razão e eu estivesse perdendo meu juízo. Caminhei até a fonte do ruído molhado e encontrei um regato bem menor do que o “rio” que o velho mencionara. Lavei nele as minhas mãos e o meu rosto, mas não tive coragem de tomar de sua água. Ela podia ser bela sob aquele luar, refletindo aquelas estrelas que são apenas sombras das estrelas que existiram há muitas eras, mas podia estar contaminada, podiam aqueles reflexos ser enganosos de uma paz e de uma inofensividade que não eram reais. Tal como não fora real a sensação de ter encontrado o fantasma que me fizera cavar aquela urna esquecida.
Pus-me a chorar outra vez. Olhei para as minhas mãos: elas sangravam de calos e feridas. Algumas unhas partidas, nas outras o esmalte descascado. Olhei para mim mesma, coberta de terra amarela, suada e descabelada. Joguei mais água no meu rosto, nos meus cabelos. Tinha a terrível sensação de que a poeira morta daquele cadáver secular tinha aderido à minha pele, que eu também cheirava a morte e a século.
Então decidi que precisava voltar para casa, que minhas férias tinham sido um grande malogro, que a minha vida não tinha sentido algum — a não ser, talvez, trabalhar para manter vivas outras pessoas, todas elas infelizes de algum modo. Mas não podia me matar, já tinha dívidas demais com Deus para querer contrair mais uma.
O caminho de volta passava pela curiosa grota onde estava o caixão e seu esqueleto nu. Parei de novo ao lado dele e me detive por alguns instantes a pensar em quem estaria ali sepultado. Uma forma terrível e humilhante de morrer: enterrado vivo e nu. Quem cometera essa maldade merecia bem mais do que o inferno pode oferecer. E enquanto isso, Deus se preocupa com quantas orações fazemos e se não beijamos a pessoa errada.
Tratei de fechar o caixão o melhor possível e devolvi-o à terra. No dia seguinte procuraria a Universidade. Os arqueólogos ficariam felizes de achar aquilo, teriam muitas teorias e teses e artigos — como gostam muito de fazer. Mas eu não queria saber de nenhuma teoria, o susto real fora o bastante.
No que me preparava para sair de lá, pegar o carro e retornar à realidade, ouvi um som qualquer por perto. Não sei dizer que som foi. Se foi um soluço, se foi um choro, se foi galhos estalando com o peso de um pé. Foi uma sensação morna, de presença humana, traduzida em algo que parecia um som, mas poderia ser só uma premonição.
Procurei em torno, à luz vaporosa da lua, e notei, outra vez, a casa antiga e quase arruinada. Era de lá que vinha a sensação arrepiante que eu tinha. Não foi fácil criar coragem para entrar lá, mesmo que eu não andasse dando muito valor à vida. Eu não me importaria de morrer, isso era verdade, mas ainda tinha a mesma aversão à dor que sempre tivera. Cheguei com cuidado, mas logo notei que isso não era preciso: quem ali estava não tinha condições de me causar mal nenhum. Era uma mulher miúda e muito branca, com cabelos muito compridos, totalmente nua e muito magra, como se tivesse ficado sem comer por vinte dias ou mais — o tempo exato desde que eu começara a sentir as misteriosas aparições. Ela estava amarrada sobre uma cama e no lençol, em torno de sua vagina, havia uma poça de sangue.
Ela não era realmente idêntica à assombração pálida que me visitava, apenas vagamente parecida, mas de alguma forma sentia, ou temia, que ela tivesse me levado até ali de alguma forma. Acendi um lampião de gás sobre a mesa, usando os fósforos que havia sobre ela, e fui desamarrá-la.
Não estava morta, embora estivesse exangue e febril e muito debilitada. Ela abriu os olhos quando sentiu minhas mãos, tão carinhosamente quanto possível, desamarrando os seus pulsos. Olhou-me com uma expressão que não guardava surpresa, apenas alívio:
— Você veio.
Ela não falava em “tu”, ao contrário da mulher que me aparecia em pesadelos, mas isso não me parecia incongruente. Só muito mais tarde eu consegui compreender o sentido de tudo aquilo.
Não lhe perguntei o que acontecera. Não foi preciso. Vesti-a com suas próprias roupas, rasgadas e jogadas a um canto, e a amparei enquanto saíamos. Ao longe, faróis cortavam a noite: era a estrada real, afinal. Eu não estava perdida em uma Zona Amorfa, mas na Zona da Mata Mineira. Bastava seguir aqueles faróis e em algum lugar encontraria meu carro.
Quando saímos pela porta da frente, ela me apontou num canto o que parecia ser, e logo vi que era mesmo, um outro corpo, este morto, com sinais de dias de decomposição. Era um homem grisalho e calvo, que morrera com um ricto de dor no rosto, e com as mãos comprimindo a própria virilha. Só ao vê-lo eu me dei conta, sob a luz azulada e sibilante do lampião, do horrível odor de morte que empestava aquele lugar. Pobre mulher! Como ela conseguira sobreviver naquelas condições, passando fome e sede naquele lugar, por tantos dias?
Alcancei o carro. Antes que outro veículo nos cruzasse, retirei de minha mala um vestido em melhor estado e cobri a nudez da desconhecida, cuja consciência era bruxuleante como a luz de um lampião, cujo gás vai acabando. Depois saí dirigindo para um dos dois lados da estrada. Não tentei nem escolher qual.
Não a levei à minha cidade, mas a Barbacena, que afinal estava perto. Ali internei-a numa clínica discreta até que estivesse em condições de dar explicações. Mas acabei não as pedindo jamais: ao cuidar de seu corpo tão maltratado descobri, para meu espanto, a justiça poética que a natureza propiciara no caso dela.
Pois aquela mulher, que aparentemente fora sequestrada por um maníaco, para ser estuprada e morta da maneira mais horrível, não tinha as cicatrizes de uma penetração desastrada, mas aquilo que aterroriza os sonhos mais profundos dos homens, mesmo os que não são capazes de estuprar uma mulher: vagina dentata.