A primeira coisa que notei foi a mudança de foco da literatura de auto ajuda. Ela já não predomina tanto nas prateleiras e parece mais focada em livros baseados em experiências reais. Um bom exemplo é a autobiografia de Nick Vujicić, da qual havia nada menos que uma pilha de exemplares. Esse tipo de auto ajuda que agora predomina parece explorar a culpa do indivíduo como um fator motivacional: olha só, esse cara tá todo fodido e ainda assim realiza mais coisas que você. O nome do site de Vujicić é sugestivo desse apelo: “From No Limbs to No Limits” (De Sem-Membros a Sem-Limites) e a sugestão é “você, com quatro membros, não é tão sensacional quanto o Nick”.
Há duas conclusões que eu tiro disso. A primeira é que Paulo Coelho é carta fora do baralho agora: o seu estilo de auto ajuda ficcional chupando antigos textos religiosos e lendas orientais não tem o mesmo apelo porque as pessoas estão procurando coisas reais, e não invenções de magos que fazem chover. Azar da Academia que o aceitou pensando em popularizar-se entre seus leitores. A página de Paulo está sendo virada e dentro de alguns anos ele voltará a ser lembrado apenas como o parceiro de Raul Seixas em algumas de suas melhores composições. Por sorte ele aproveitou seus quase vinte anos de berlinda para ganhar dinheiro a rodo e comprar imóveis em lugares nobres, como o interior da Suíça. Vai ter uma aposentadoria de rei, e morrerá se achando um gênio, enquanto eu vou continuar aqui desconhecido no interior de Minas Gerais, o que, na cabeça da maioria do povo, significa que ele é um “sucesso” e eu, um idiota. Argumentum ad crumenam, mas o povo não liga para falácias, o povo gosta de idolatrar o sucesso, seja qual for. A vida das “famosidades” instantâneas demonstra isso: “artista” no Brasil é quem aparece na TV.
A segunda conclusão é que a auto ajuda cada vez mais se afasta do que seria chamado de “literatura”. Isso é bom para a auto ajuda, porque a literatura está moribunda, e é bom também para a literatura, porque parte de sua doença esteve relacionada à sua contaminação pela auto ajuda. Separadas, veremos como evoluem.
O sintoma mais forte de que a literatura anda moribunda é o sensacionalismo baseado no tamanho. Hoje todo mundo quer escrever trilogias ou, no mínimo, tijolaços. Argumentum ad numerum, mas o povo não liga para falácias. Quanto mais grosso o livro, maior o desafio de escrevê-lo. Desafio é vencer limites físicos, não artísticos. A maioria dos leitores de hoje provavelmente acharia que uma obra breve, como “O Apanhador no Campo de Centeio”, é inferior a um peso de porta como “Herança”, último volume da tetralogia de Christopher Paolini. O fato de se poder contar toda a história da tetralogia em vinte ou trinta páginas não faz diferença: um livro de tantas páginas merece respeito, tanto quanto os músculos criados por anos de malhação. O esforço físico importa mais que o efeito. Vivemos uma era que idolatra a teimosia. Talvez por isso o karatê, a arte marcial que idealiza o golpe perfeito, tenha saído de moda, e hoje idolatremos aquela bosta do UFC, uma espécie de briga de rua com regras, tão cronometrada quanto a “luta livre” estilo “tele-catch”, só que com sangue, para “dar realismo”. O carateca “magrelo” é zombado hoje: o objetivo do treinamento é criar massa, tal como o objetivo da literatura é criar páginas.
Isso explica porque os jovens vivem obcecados com trilogias, tetralogias, pentalogias, hexalogias, heptalogias, enealogias, decalogias, fodasselogias. Eles não têm um estilo, mas um objetivo. A ideia é vencer um desafio, não produzir uma obra.
Eu mesmo acabei recaindo nisso ao dizer, zombeteiramente, quando do lançamento de meu romance de estreia: “não produzi mais uma apostila com ISBN para valer de título na Academia, produzi um livro que tem, pelo menos, a dignidade de parar em pé na estante.” Minha declaração maldosa tinha um alvo claro, se ele está me lendo deve estar me xingando, mas tinha uma falha: ao dizer isso eu estava legitimando essas obras que proliferam páginas como um câncer prolifera células. Se o meu livro para em pé na estante, tem gente querendo escrever livros sobre os quais a estante pare em pé. Andar com tais livros é chique, isso é que é livro de macho, mesmo que sua quantidade de páginas seja anabolizada por artifícios que não acrescentam conteúdo. A velha diferença entre crescer, inflar e inchar.
Outra coisa curiosa é que a ampla maioria das obras postas nas estantes de destaque, na entrada da loja, eram literatura de fantasia. Nem estou falando de ficção científica, porque essa exige estudo até para se entender. Estou falando de fantasia desbragadamente desconectada da realidade, ambientada em países fictícios para que o autor não precisa pesquisar sobre um real e o leitor não aprenda, por acidente, algo sobre um que exista. Houve uma época em que o exotismo estava na moda, e muito jovem autor brasileiro queria se chamar Johnny e escrevia histórias ambientadas nos Istêitis, mas o exotismo contém uma busca de conhecimento, da qual a literatura de fantasia está livre, graças a Deus. Se o país e a cultura são inventados a partir do nada, então vale de tudo, dane-se a lógica, foda-se a coerência histórica. Se tudo ficar complicado, aparece um deus ou anjo ou demônio ou dragão e conserta tudo. E sempre se pode ressuscitar o morto para mais um capítulo, ou dar um reboot na história inventando que o nó que a atava era um “sonho”. E vamos que vamos que duzentas páginas ainda está pouco. O bom da fantasia é que sempre se dá um jeito de se chegar aonde se quer, os limites da realidade não interferem.
Claro que a maioria desta fantasia é obra de autores estrangeiros, em sua maioria ianques. Não é um produto cultural, é um fast food que dá mais lucro por ser importado, vindo já de fora com a propaganda grátis das redes sociais e das séries veiculadas na TV por assinatura, onde a classe média se isola da “tosqueira” da TV aberta. Sinceramente, se eu fosse começar de novo a escrever, investiria mais no meu curso de inglês, batalharia um intercâmbio, inventaria um pseudônimo anglo-saxão (aliás, inventei: em certa época andei escrevendo “coisas” sob o nome fictício de Gerald Goldman) e fantasiaria alguma terra imaginária com personagens de nomes toscos baseados em latim macarrônico, pseudogrego ou pseudohebraico. Com um pouco de sorte eu me tornaria famoso, ou então tentaria a sorte dizendo que minha obra era Escritura Sagrada.
No fim de minha visita preferi comprar um pendrive. Saí e entrei num sebo, onde comprei a dez reais o quilo obras muito mais interessantes. O que me dá medo é que os sebos do futuro serão alimentados pelas obras adquiridas hoje. Essas obras abomináveis.
O título deste texto é uma alusão a este conto.