Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Dez 12
publicado por José Geraldo, às 22:00link do post | comentar | ver comentários (2)
Frequentemente me pego repetindo em cochicho o que acabei de dizer em voz alta, se a pessoa a quem disse não continua por perto. Porque se ela estiver, então, costumo dizer a mesma coisa duas vezes, com poucos minutos de intervalo, para enfatizar o que estou dizendo. Geralmente uso uma frase para conectar, e então repito o que havia dito antes, com palavras ligeiramente diferentes, com poucos minutos de intervalo, só para enfatizar o que dizia.

Costumo ter animadas conversas comigo mesmo quando estou só. Estas conversas frequentemente se transformam em discussões, e já houve casos em que realmente fiquei de mal. Durante essas conversas é frequente que eu me diga coisas que não estava pensando ou encontre soluções miraculosamente para coisas que eu não estava sabendo resolver.

Quando estou escrevendo à mão, minha caligrafia muda o tempo todo. Sou incapaz de manter o mesmo padrão de tamanho de letra, comprimento de hastes, inclinação, separação silábica, formato das letras redondas, etc. Em uma mesma palavra costumo empregar dois tipos diferentes de “a”, “s” ou “r”.

Meus livros são ordenados na estante segundo um padrão de tamanhos e cores. Quanto mais alto o livro, mais para a beirada. Se dois livros forem de mesma altura, o de capa mais escura fica do lado “de fora” em relação ao centro da prateleira. Por sua vez, os meus discos são ordenados pela ordem cronológica em que foram lançados.

Devo ser o único bancário do Brasil que trabalha (frequentemente, mas não todo dia) de botinas. Gosto desse tipo de calçado desde que era adolescente e trabalhava na Cooperativa Agropecuária de Cataguases. Eu não tinha dinheiro para me vestir bem, então vivia com jeans velhos, botinas de couro e camisas brancas de algodão. Em meus sonhos eu me tornava um astro da música e esse tipo de indumentária se transformava na nova moda roqueira.

Todas estas pequenas excentricidades convivem com o fato de que sou incapaz de manter qualquer coisa organizada. Desde a minha estante de livros, que eu arrumo semestralmente, até a minha mesa de trabalho.

Esta desarrumação também é agravada pela dificuldade com que me livro de entulhos, bugigangas e velharias. Tenho ainda os carregadores de celulares que estragaram há anos, peças de computadores que nem possuo mais. Cabos e fios e caixas de aparelhos que nem lembro o que eram. Revistas que li uma vez e guardei pensando em deixar de herança para o futuro. Rascunhos de poemas e rabiscos genéricos sem nenhum sentido.

Cada vez que me mudo, tenho de rever esta desordem, e com grande dor no coração me desfaço de uma miríade de pequenas coisas — e me arrependo depois. Até hoje sonho em reencontrar nalguma caixa os dois retratos que fiz a lápis nos tempos de segundo grau, e que só sobrevivem na minha memória. Sem falar dos cadernos onde minhas amigas anotaram versos de Raul de Leôni, Vicente de Carvalho e Fernando Pessoa.

Sei, porém, que estas foram perdas irremediáveis, como as que só se pode ter na mudança. E não adianta ter saudade das casas em que não moro mais, dos livros que doei ou vendi, das palavras que disse e já não saboreio mais na boca, por mais que as cochiche. Por mais que eu lembre de manias antigas, não sou o mesmo que era, as coisas e as casas e as pessoas mudaram. Resta-me repetir palavras, fantasmas do que foi, e relembrar mentalmente  obras primas que não desenho mais.

21
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 20:30link do post | comentar
Ninguém vivia muito tempo para prestar atenção ao tempo, que era sempre o presente, cada vez que amanhecia. Significava que a noite terminara sem o encontro de uma fera, sem as garras gélidas da terra rasgarem. O passado só existia através do mito, das coisas acontecidas ninguém sabia quando, nem onde, nem com quem. O mito também era uma espécie de tempo coagulado, cíclico, interminável. Alguém poderia pensar que era horrível ser um deus, e ter que refazer a criação do mundo sempre, ter que viver sempre a fazer as mesmas coisas.

Mas quando justamente ninguém viveria muito tempo, era possível ainda viver com vagar. Diante de tão pouco tempo, a coisa sábia que se fazia era viver cada hora com a profundidade de uma pequena eternidade. E as semanas, passadas ao mito, se acumulavam na memória sem saudade. Saudade existe quando a gente descobre que o tempo passa. Jovens demoram nisso: nenhum jovem sabe que morrerá.

Cada nova civilização descobriu um modo de criar velocidade. Mas nenhuma conseguiu a perfeição antes da nossa: somos os animais mais velozes que já existiram. Temos pressa, muita pressa, porque vivemos muito. Parece um paradoxo, visto que os homens das cavernas viviam com um peso tão diferente. Mas nós temos essa pressa porque, por mais que tenhamos esticado o cordão da vida até rebentar por si, sem crime e sem doença, a verdade é que o tempo imenso que obtivemos nos parece pouco, porque sabemos que morreremos.

Nós, os velozes, somos os primeiros mortais inteiramente cônscios disso. Sabemos disso em nossos ossos, porque os nossos olhos e mentes ainda se recusam a crer. A saudade e a pressa existem porque somos muito velhos no mundo, porque temos muitos velhos. Na época em que não havia velhos, era como se ninguém fosse nunca morrer, como se cada óbito fosse uma fatalidade, uma interferência dos deuses, alguma coisa assim. Era uma espécie de imortalidade, que terminava sempre quando alguém ou algo interferia.

Não temos tempo para viver cada dia, porque temos uma vida inteira pela frente. Uma vida inteira significa toda a vida que se pode ter. Não há outra, não há mais, não há cheque especial no saldo dos anos, não há mais gasolina para a alma. O peso disso nos faz correr, e tudo se torna provisório.

14
Jun 12
publicado por José Geraldo, às 19:37link do post | comentar
O velho relógio bate nove e quinze no peitosorrindo para um piano que tocou meu lábiocomo o som áspero da morte que vem perto.Como ando provisoriamente vivo, e vivo reto,procuro um desvio que retarde a sorte certaque aguarda os relógios, lábios e pianos.Quando achar um caminho errado destes,escondo minutos da espera que não quero.Aqui comigo nesta sombra, nesta névoa,a ilusão feliz de que tudo ainda é e nada era.

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