Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
22
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 20:59link do post | comentar
Quem come ostra e camarão
come qualquer coisa,
menos escorpião.

21
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 00:23link do post | comentar | ver comentários (2)
O vazio da existência exige que vivamos coisas grandes, posto que não somos grandes. Cada geração padece da crença de que o mundo está decadente e deseja viver tempos interessantes. Isso talvez seja uma explicação para a vontade que tanta gente tem de ver acabar-se o mundo, ou então é só um pretexto para eu postar alguma coisa hoje e atrair algum tráfego…

Para ser sincero, não acredito que tanta gente acredite no fim do mundo, sequer de brincadeirinha. Com tanta coisa séria para se brincar, a sedução do apocalipse acaba merecendo a mesma explicação que a crença propriamente dita nele. Por que, com mil cometas chamejantes, as pessoas querem tanto que o mundo acabe?

Com algum sentimento metafísico poderia eu dizer que isso reflete a dor da morte. Como no antigo filme de zumbis que me apavorou algumas noites da adolescência: «Por que vocês comem cérebros?» — pergunta o protagonista. «Para aliviar a dor…» — responde a zumbi semidestroçada que jaz amarrada sobre uma mesa. «Que dor?» — insiste o estúpido herói, merecendo morrer cedo para aprender a ser idiota. «A dor da morte» — responde ela.

Queremos o fim do mundo porque queremos acabar com a dor, a dor de estarmos vivos. O fim do mundo é um suicídio sem culpa e sem vergonha póstuma. Ninguém falará mal ou bem de você se a sua morte ocorrer no fim do mundo, ou numa guerra. As pessoas que se voluntariam para ambas as coisas estão pensando em aproveitar uma oportunidade única, a de se matarem sem ninguém achar feio.

Isto também vale para quem só curte a brincadeira. Curte porque sabe que é mentira, mas curte porque é uma mentira que é uma utopia. Ah, como seria bonito ver os reptilianos nos matando a todos com suas bombas atômicas, esterilizando o planeta para depois plantarem seus fungos. A única coisa que separa os malucos por apocalipse dos que fazem piadas com o apocalipse é que os primeiros acham que vai acontecer, enquanto os segundos sabem que não, mas gostariam que.

E isto nos leva de volta aos zumbis. E ao inexplicável fascínio que exercem sobre jovens que adorariam ver o apocalipse zumbi acontecendo bem no seu bairro, na sua rua, na praça de alimentação do seu shopping favorito. À parte o fato de que tal coisa não vai acontecer, nada diferencia esta gente dos alegres voluntários que marcharam para as carnificinas da Primeira Guerra Mundial cantando hinos patrióticos e pensando: «ó, que coisa mais bela estar vivo para entrar numa guerra».

Só que guerra não é tão engraçado, guerra está fora de moda. Afinal, se acontecer uma teremos que enfrentar países que nos exportam refrigerantes, brinquedos ou vinhos. Melhor pensar numa guerra difusa, contra um inimigo onipresente. Zumbis ou alienígenas, tanto faz, de qualquer forma é um tipo de fim de mundo, com a vantagem de ser em câmera lenta, para dar tempo de filmar e pôr na internet. E claro, ninguém acredita nisso, tanto quanto os jovens europeus de 1914 não acreditavam que fosse acontecer uma guerra, mas desejam que ela estourasse ainda durante suas vidas, para poderem pegar seus fuzis e assinarem seus certificados de alistamento.

Formas diferentes de desejar morte, mas eu acho mais honesto quem corta os pulsos, porque assume o que quer em vez de esperar uma desculpa sobrenatural para dar um ponto final em sua dor.

03
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Minha avó costumava me contar que toda esta região era pacífica e silenciosa até a segunda década do século, que ela mesma viveu numa casinhola entre árvores, beijada pela sombra fria da mata. Mas veio o café, veio a guerra, a estrada de ferro, vieram as armas. Mataram os índios, abriram clareiras, começaram a produzir. Mas em pouco tempo a terra negou seu seio, os cafezais feneceram, os fazendeiros faliram. O povo restou pobre, em uma terra mais seca e nua. Os trilhos de ferro recuaram, abandonando estações ilhadas nas montanhas.


Nasci aqui, sentindo esse vento seco e duro que cresta a alma e corta a cara, que arranca as folhas das árvores, como se tentasse arrancar os homens da terra. Mas eles só sairão quando chegar a hora da colheita. Toda vez que eu olhava os morros erodidos, as encostas peladas, a terra retalhada com cercas e dividida em lotes de cores diferentes eu me sentia cúmplice dessa violência.

Este ano, porém, começou diferente. O cheiro do ar foi outro desde o início, os dias foram encolhendo, as noites ficando mais frias e quando eu olhava as bordas dos morros cortadas contra as nuvens eu tinha calafrios, temendo que essa Hora maldita estivesse a caminho.

Nas primeiras semanas eu me senti assim, sozinho. Não tinha coragem de falar com ninguém, porque desde menino tivesse essa fama de sensível, de fresco, de frágil. Nem os calos duros em minhas mãos, nem minhas botinas armadas com arame, nem o cheiro forte da terra em meu corpo conseguiram apagar as impressões que os outros tiveram de mim no dia em que saí de mim e disse aquelas coisas que ninguém nunca ousou repetir.

Mas quando o outono começava a envelhecer, notei que não era mais o único. Podia pressentir que os jovens estavam irrequietos  que os velhos estavam mais abatidos. Alguns sonhando em voar, outros querendo dobrar definitivamente as asas. Então senti voltando a mim a sensação, e os cheiros, que me abateram naquela tarde de criança. Eu pressenti a proximidade do escuro, eu enxerguei as dobras do destino direcionando o correr de nossas vidas para o canto da mesa, para a caçapa inevitável. Senti a Presença pela primeira segunda vez, mas não tive medo nem ódio, aliviei-me de toda irritação e adorei aquela época do ano.

Os Gonçalves então apareceram com a notícia de que estavam indo embora. Eles tinham uma fazenda grande, com várias casas, currais, tulhas, silos e cocheiras. Tinham feito um trabalho bonito, por vinte ou trinta anos, desde que o velho Nhonhô Gonçalves chegara de Itaperuna cheio de dinheiro, que as más línguas diziam ser mal havido, e comprora a terra de um colono antigo, que eu nem chegara a conhecer. Eles trabalharam muito, fizeram render o seu dinheiro, tinham vacas, tinham milharais, canaviais, um pomar que dava gosto. Então veio aquela seca longa do ano retrasado, emagrecendo o gado, matando o milho plantado, prejudicando a cana. E justo quando a seca acabava apareceu a praga da erva roxa nos pastos, intoxicando os animais famintos que comiam tudo.

Perderam muito dinheiro, tiveram que vender as vacas boas enquanto valiam alguma coisa, muitas morreram vacas de fome, muitas ficaram vacas maninas, cresceram bezerros de pelo ruço, novilhas de tetas murchas.  Um gado sem valor, em uma terra que precisava ser roçada de novo, com uma praga que ninguém sabe de onde veio, como se o próprio demônio tivesse passado semeando.

Agora estão finalmente vendendo, e é uma tristeza ver os garotos com os olhos cheios de água, tentando sorrir enquanto põem preço naquilo que nada paga. Dizem que vão comprar caminhões, ganhar a vida no transporte de carga. Enquanto eles falam eu escuto um vento soprando forte, um vento que arranca folhas das árvores. O vento que anuncia que chegou o tempo de colher. Os dias continuaram encolhendo, as noites ficando frias. Colheita no inverno, colheita mais amarga. Os jovens irrequietos, os velhos andando de cabeça baixa. Eu sei que a escuridão está mais perto, alguma presença está aqui. Parece que o clima mudou, mas eu não estou mais gostando dessa época do ano.

Sempre vivi nesta casa de fazenda. Hoje fazem dez anos que meu pai morreu. Foi num agosto ventoso como esse, talvez ali eu tenha ouvido esse vento pela primeira vez. Herdei esta terra, estas cercas, estas pobres vacas, companheiras de meu infortúnio, pobres reses que eu nunca consegui vender. Não sei bem do que eu vivo, o leite que tiro mal dá para comer. Tenho a herança de uma tia rica, o ódio de uma mulher que me deixou. Faz muito tempo que não tenho medo, muito tempo que não sentia nada mau. Tinha aprendido a conviver com esta terra, deixar crescer o mato, receber a chuva, proteger a ave, abrigar o bicho. Dizem na cidade que eu também virei meio bicho, só porque não consegui cortar a árvore que nasceu debaixo do Mustang que ficava na garagem. Garagem que já caiu de podre porque não a uso: por que me enjaular entre dobras de ferro e produzir fumaça ruidosa pelo mundo? Vou a pé aonde vou, e sempre é perto. Dizem na cidade que a lucidez também me deixou.

Os Gonçalves eram meus últimos amigos. Catarina a última mulher que não me achava louco. Teria sido minha esposa se eu quisesse, me ajudaria a cuidar de meus coqueiros, meus horta, minhas laranjeiras, de todos esses pássaros que pousam na varando cada silenciosa tarde. Eles me dão uma música melhor que qualquer rádio.

Ficará um buraco em forma de Catarina em minha vida. Um buraco na forma de cada amigo que vai embora, na forma de deus que nunca vi, na forma de cada alegria irrepetida que nunca descobri.

Então esta tarde veio o homem de longe, com cabelos penteados, camisa branca de riscado roxo. Enverga botinas pontiagudas, sem esporas, porque sua montaria é dessas de que não gosto.

Ele me falou de coisas que não entendo — como dinheiro, eucaliptos e carros. Fala em derrubar estas espertas, angicos, paineiras, jenipapos, imbaúbas e ipês. No lugar de todas estas cores e perfumes diferentes, uma árvore apenas há de imperar, com sua resina roxa, seu aroma doce.

“Apenas oito anos”, ele diz, “e pode-se vender a um preço exorbitante. Tão exorbitante, aliás, que eu estou disposto a contratar agora a venda, para protegê-lo da possibilidade de que em oito anos tanta gente tenha plantado que o preço nem seja mais exorbitante. Aproveite esta oportunidade única na vida, está na hora de ganhar dinheiro outra vez, sacudir a poeira desta terra adormecida.”

Eram palavras bonitas, mas eu só consegui me fixar nas listras roxas de sua camisa, pensar nas folhas roxas da praga que matou o gado dos Gonçalves e vai levando embora Catarina. Nada de bonito pode vir de alguém que usa roxo. Cor de morte, cor de hematoma, cor de luto de homem, pois homem não se veste de viúva.

“Uma terra tão grande normalmente a gente oferece em parceria, mas se o senhor preferir podemos fazer-lhe um preço muito bom por seus cento e vinte alqueires.”

Não, não venderei a terra, nem plantarei eucaliptos. Tenho trinta anos e ainda tenho alguns mognos para ajudar a crescer. Espero um dia estender minha rede entre os dois jacarandás que plantei na entrada do terreiro, como sentinelas a bloquear a entrada de qualquer carro.

“Sua propriedade vai ficar isolada entre todas as outras, única ilha de mato e pasto sujo num mar de montanhas verdejantes de reflorestamento.”

Que seja, mas há uma beleza nas ilhas. As únicas que eu conheço são as que existem no rio, que eu costumo contemplar quando vou à cidade receber alguma venda, verificar a renda que me legou a minha tia e fazer minhas compras. São pedaços bonitos de terra que resistem no meio do rio, deixando a água passar ao largo, a turbulência ir embora. Resistem à enchente até. Que seja, minha fazenda será uma ilha. E eu o habitante feliz, Robinson Crusoé eternamente a espera de que não me resgatem dela. Espero viver muito, tenho de me cuidar. Enquanto estiver vivo talvez consiga proteger o trinca-ferro, o mão pelada e a preá.

Que sopre o vento o quanto quiser. Que leve embora as folhas doentes das árvores. Pode ser o tempo de colheita delas, mas as folhas vivas, que ainda bebem a seiva da terra, estas não vão ser arrancadas pelo primeiro vento.

Quando ele foi embora eu senti a escuridão mais perto do que nunca. Senti uma presença estranha aqui por perto. Estava perto da noitinha, mas eu não tinha medo. Faz muito tempo que não acontece nada estranho, esta terra nunca me fez mal. Nunca fizera mal aos índios que ficaram, os que a entenderam.

Mas o calafrio continuou, uma sensação de algo forte caminhando entre os galhos emaranhados, algo acinzentado, peludo e frio. Não tenho medo, mas não saio à noite quando pressinto isso. Fico na varanda contemplando o escuro, e o escuro me contemplando com seus olhos amarelos, que às vezes piscam. Acho que o estranho não deveria ter sido tão ousado, não a ponto de vir aqui em carro conversível.

Os grunhidos que ouvia longe, contidos, pareceram mais perto. Os olhos não estavam me olhando enquanto eles estalavam na noite. Ouvi o motor de um carro acelerar ao máximo, bater contra a minha porteira com a força de quebrá-la, mas por felicidade desapareceu pela estrada aos poucos. Pude ouvir o motor um longo tempo, como se a distância não aliviasse o pé do estranho de camisa roxa. Que nunca mais voltou, nem voltaria sob a mira de uma espingarda.

Ele talvez não saiba, mas não deveria ter falado comigo tão ríspido. Todos me chamam de louco, mas ninguém me incomoda. Não desde que o filho do Gracindo, aquele idiota, veio tentar caçar minhas capivaras. Eu o proibi, adverti, implorei, mas ele me estapeou, abusando de sua força e me chamando de maricas. Entrou na mata e não voltou. Sua mãe só o viu de novo embrulhado em plástico preto, uma fotografia ampliada colada no lugar do rosto.

Tentaram me acusar, mas não havia como associar minhas mãos com aquelas marcas, meus dentes com aqueles nacos de carne arrancada. Mataram uma pobre onça nestas redondezas e deram o caso por terminado. Isso é o que a polícia diz, mas ninguém nunca mais entrou na minha terra pensando em caçar. O povo daqui é mais esperto que esses polícias que vem de Ubá ou Muriaé, e não entendem a língua da terra. A diferença é que eu, diferente do povo, não tenho medo. Não vou me deixar levar.

Os Gonçalves foram embora hoje. Estava lá na despedida, barbeado pela primeira vez em meses. Uma cena de fazer chorar, os pobres homens, despossuídos de suas vidas, condenados a vagar no mundo conduzindo máquinas, a maldição da terra. Catarina estava entre eles, parecia mais triste que todo mundo. Não fui o único a notar que lhe haviam dado remédio outra vez, e amarrado suas mãos e pés.

Voltei para casa triste, sentindo a vida me escapar. Sentei na varanda olhando a noite, ouvindo os curiangos no terreiro, e sentindo falta dos olhos amarelos que me acompanhavam nestas solidões frequentes.

Então ouvi de novo o grunhido, e tampouco tive medo. Tanto faz à vida, se a gente morre tarde ou cedo. Mas a fera não tentou morder, nem veio junto a mim. Apareceram os seus olhos, amarelos, na penumbra do terreiro. E no dia seguinte eu encontrei na horta um lenço arrebentado, como se tivesse amarrado os punhos de alguém.

22
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 23:15link do post | comentar | ver comentários (1)

Anteontem concluí a postagem do nova e melhorada versão do conto Os Estranhos e achei melhor mover todas as informações sobre ele para um texto em separado, se possível acrescentando um pouco mais de informação.

Os Estranhos é um conto de terror do gênero pós-apocalíptico inteiramente baseado em dois sonhos que eu tive, ao longo de uma mesma noite, em 1996. No primeiro sonho eu estava no jardim de uma casa estranha, no alto de uma montanha, acompanhado de pessoas desconhecidas, ocupado em livrar-me de um cadáver enquanto contemplava, cheio de pavor, a presença de criaturas que voejavam sobre o vale abaixo, deitando sua sombra sobre a cidade de onde, no sonho, eu tinha saído. No segundo sonho eu estava esgueirando pelas sombras de minha própria cidade, tentando sair dela a pé, sem saber como entrara, e encontrava sinais preocupantes de uma presença maligna.

Primeiro texto meu publicado após onze anos de afastamento da literatura, sua versão original saiu na coletânea «Solarium», da Editora Multifoco, em 2009, representando um momento importante na minha vida, por três razões. Foi a minha primeira obra publicada em onze anos, a minha primeira incursão no terror e o início de minha relação com a Editora Multifoco, que viria a publicar o meu primeiro romance, Praia do Sossego.

Sobre meu afastamento da literatura, isto será assunto para a minha autobiografia, se um dia quiserem que eu escreva uma. Sobre minha incursão no gênero terror, isto tem a ver com as minhas leituras de então: Lovecraft e Poe, principalmente. Além disso, eu estava envolvido com uma comunidade de literatura no Orkut e encontrava lá muita gente interessada no gênero: acabou sendo natural que eu me interessasse por ele na busca de leitores.

Foi ummomento marcante para mim, não apenas porque eu superei uma fase na qual eu me limitava a apenas blogar ocasionalmente coisas que escrevia, mas também porque foi a primeira vez que me disseram ter selecionado um texto meu para publicação. Não creio que eu mesmo teria selecionado aquela versão dOs Estranhos, mas gosto realmente é algo que não se discute: vários dos leitores da antologia Solarium lembraram do meu conto na hora de citar os melhores do livro.

De qualquer forma, nunca fiquei satisfeito com a maneira como conduzi a versão preliminar. Obcecado com a ideia de agradar a um público mais amplo, tentara incluir um núcleo romântico: dois casais em crise que acabam se “trocando.” Foi uma péssima ideia, segundo o que hoje penso, porque eu não dediquei à construção do relacionamento complicado dos quatro personagens toda a atenção que era necessária para dar credibilidade à mudança de parceria. Nem haveria espaço, em tão poucas páginas, para ser bem-sucedido nesta tarefa. Por isso esperei até esgotar-se a primeira tiragem da coletânea e pedi licença à editora para retrabalhar o texto e publicar uma versão revista e expandida. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que os termos do contrato não proíbem a republicação nestas condições, nem sequer para as coletâneas cujos contratos ainda estão na vigência (dois anos)!

Devidamente autorizado, fiz todas as modificações que gostaria, inclusive restaurando o argumento original da história, no qual a casa no alto do morro não era um refúgio proposital dos protagonistas, mas apenas um lugar aleatório, poupado da invasão dos Estranhos, e não havia nenhum relacionamento romântico conturbado. A versão aqui publicada é mais fiel aos dois pesadelos que me serviram de base e, apesar de mais longa, é mais enxuta e fácil de ler.

Se algum dia publicar este conto em livro, ele deverá formar uma obra única, sem qualquer divisão em partes. Só fiz diferente aqui no blog porque reconheço que meus leitores não teriam boa vontade em ler uma obra de sete mil palavras de um fôlego só.

Parte IParte IIParte III

18
Dez 11
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar

À medida em que nos aproximávamos da cidade, sentíamos o ar mais opressivo, mais parado, mais agônico no peito, como se uma mão forte pousasse sobre nossos corações, segurando o tórax em cada inspiração. O ar parecia partido em flocos, granulando nossa visão, ou seria apenas a ilusão que a penumbra traz aos olhos despreparados de quem, como nós, viveu uma vida inteira sob luzes artificiais?

Quando chegamos à primeira rua, pudemos ver a primeira alteração significativa da realidade: tudo parecia muito abandonado, como se as coisas novas não fizessem mais sentido. Como se o tempo estivesse avançando rápido, ou recuando, como se uma espécie de putrefação tivesse vindo com os Estranhos.

O primeiro edifício significativo por que passamos foi uma oficina mecânica. Vários veículos ali estavam abandonados, alguns com as entranhas extirpadas, como pacientes em meio a uma operação. Minha reação diante deles foi paradoxal: fiz-lhes um respeitoso aceno e balbuciei uma oração automática. Na ausência dos cadáveres de seus donos eu reverenciava aquelas máquinas, que podiam servir-lhes de cenotáfios.

Mais abaixo pela avenida chegávamos ao estranho monumento a que chamáramos de "Caldeirão da Bruxa" quando crianças. Normalmente uma rotatória movimentada, com todo tipo de veículo chegando e saindo da cidade por ali. Mas desde nossa entrada na cidade já esperávamos que estaria silencioso e calmo de podermos andar pelo meio da pista. Foi só um pouco mais adiante que começamos a ver sinais preocupantes de coisas que haviam realmente acontecido: ossadas, humanos, caídas pelo chão, incompletas, com sinais de justiça sumária. Aqui e ali fogueiras extintas. A brancura daqueles ossos, quase luminosa sob a rara luz de uma noite de lua nova, me fazia pensar em seres asquerosos que os teriam limpado de uma maneira horrível.

Porém, na avenida não parecia ser possível que ainda acontecesse violência alguma. Passamos diante de uma padaria saqueada, imaginei os ossos do padeiro caídos por detrás do balcão. Um avental azul ensanguentando me fez pensar na balconista vesga que tinha um namorado tatuado e sonhos de se tornar dentista fazendo uma faculdade que não teria nunca como pagar trabalhando ali. Uma pequena tragédia terminada, certamente, com a chegada deles.

Foi então que Madalena, falando com cuidado para que as palavras mal fossem audíveis, me fez perceber o que eu já pressentia, mas não aceitava:

— Não vamos achar nada útil nessa visita.

— A não ser o que pudermos aprender, não é?

— A morte não ensina nada a quem morre.

Não lhe respondi, continuei olhando à esquerda e à direita, tentando imaginar lugares de onde pudesse extrair suprimentos ou objetos úteis. Mas suspeitava que cada faca estivesse cega, que cada lanterna estivesse quebrada, que cada pilha estivesse sem carga.

Porque era incrível a rapidez com que a decrepitude se instalara. Havia erva crescendo sobre os prédios e casas, arrebentando por entre os paralelepípedos, as raízes das casas estavam crescidas medonhamente e sombras escuras corriam pelos cantos, de sombra a sombra.

— Ratos…

Não eram ainda nem nove da noite quando chegamos à praça ao pé do morro e miramos as árvores que ladeavam a Catedral.

— Ainda tem coragem? — perguntou-me Madalena.

Não lhe disse que sim nem que não. Estava ocupando percebendo como o mundo andava estranho. Amassando folhas de árvores para ver se estavam mais secas, pisando no chão com força para ver se não estava esfarelando sob meus pés.

— Ratos, morcegos, insetos…

— Também percebi — ela disse — que tudo que era cultivado está morrendo. Flores plantações, toda forma de cultura. Mas não é surpresa isso, não há ninguém mais cultivando.

— Só não quero que o dia nos surpreenda nessa cidade de pesadelo. Vamos logo ver o que viemos ver, e embora depois.

Subimos o Morro da Catedral mais cuidadosamente ainda. Com o resto da bateria da máquina fotográfica eu registrava tudo que pudesse ser interessante, mesmo sem saber se um dia encontraria fotógrafo onde revelar as imagens ou mesmo computador para descarregá-las. Também evitava vê-las pela tela para não gastar a bateria. Não me lembro quantos flashes foram: havia, de fato, muita coisa interessante para se fotografar. Mas Madalena me chamou à razão:

— Podem perceber-nos pelo flash.

Guardei a câmera em minha sacola, com muito pesar, e continuei trocando passos mecânicos e decidos pelos degraus da escadaria acima. Como se tivessem me hipnotizado.

Chegando à praça percebemos, então, que não estava deserta como o resto da cidade. Apesar de escura como uma cisterna, havia nela um contínuo movimento de sombras fúnebres, cada uma parecendo ter algo a fazer num maquinismo infernal. Dezenas ou centenas de Estranhos perambulavam como formigas, entrando e saindo das ruas laterais, carregando pequenas sacolas e caixas. Foi só então que percebi que eles, apesar de sua aparência diurna formidável, eram pequenos e tinham uma forma quase humana.

A imensa porta da Catedral estava escancarada, abria-se como uma boca monstruosa em direção à cidade, como se faminta por ela. De dentro vinham murmúrios e sopros que pareciam musicais. E pelas portas laterais entravam e saíam os Estranhos, leves sobre o chão, como se já não pertencessem a este mundo.

Tive medo de que pudessem ver-nos. Madalena me abraçou, já temendo o momento em que todos nos cercariam para um linchamento ou pior, mas logo até ela se acalmou: aquelas criaturas passavam por nós sem perceber-nos, pareciam passar até através de nossos corpos, cegas e insensíveis à nossa existência, pelo menos enquanto não dizíamos nada. Não, não tive a coragem de dizer coisa alguma, muito menos Madalena.

Ela me levou pela beira da praça até o muro do Colégio, onde nos escondemos na sombra para descansar, ainda sem coragem de dizer palavra alguma. Depois me arrastou até uma das janelas, cujo vidral se quebrara com alguma pedra ou violência parecida. Dentro estava uma algazarra de mantos, albornozes e vestidos. Faces idênticas, plácidas, pálidas, contritas em alguma forma de emoção incompreensível. Todos vestidos de cores escuras e misturadas, como se um acidente de tinturaria houvesse manchado de luto todas as cores floridas.

Mas os Estranhos eram, como eu pude então perceber, pelo menos parecidos com humanos. Talvez humanos até! Mas como?

Permancemos ali, olhando para eles por quase meia hora. Não havia sentido no que faziam, no que diziam. Aos poucos o medo de que nos vissem foi passando, substituído pela impressão de que não nos veriam nem se deixássemos uma bomba na Catedral. Por fim, enjoado daquilo, puxei Madalena pela mão e saímos da praça.

Descemos de novo pela longa escadaria e passamos em frente à Prefeitura, em cuja fachada, pendurada como um corte de carne no açougue, estava imóvel e úmida, sem oscilar um milímetro no ar parado da noite, uma rota e suja Bandeira Nacional. Saudei o sofrido Pavilhão Auriverde com saudades do que ele representara, mas o que ali estava era o cadáver de um ideal antigo.

Quando já nos sentíamos totalmente perdidos, vimos uma luz brilhar na escuridão. Era uma luz pequena e rútila, que mal conseguia se filtrar por cortinas escuras e gretas, uma luz presa num porão. Procuramos em torno do prédio até acharmos uma porta. Com certa facilidade Madalena a abriu usando alguma coisa que extraiu de sua cabeleira, demonstrando habilidades que eu não conhecia.

Entramos pisando com leveza, tentando não acordar nenhum espírito do local, mas foi uma precaução quase desnecessária diante do ruído incessante que perpassava os corredores daquele prédio. O local havia sido uma escola, conforme me lembrava vagamente. Longos corredores cheios de eco, ladeados de portas que se sucediam como as notas de uma flauta, terminando em uma sombra sinistra, onde nenhuma estava aberta, mas apenas gretas de luz filtravam por ao rés do chão. Em condições normais, teríamos medo. Mas a certeza da morte nos havia despido disso. Tínhamos apenas cuidado e curiosidade.

A porta da primeira sala estava aberta. A luz que víramos não era de nenhuma espécie de lâmpada ou artefato de intenção semelhante. Provinha do zumbido de uma complexa aparelhagem de vidro e metal, que era manipulada com uma vagareza terna por mãos pálidas e magras, que saíam de albornozes escuros.

Havia vários dos Estranhos naquela sala, cumprindo tarefas diversas, todas de alguma forma girando em torno do misterioso maquinismo. Todos estavam completamente cobertos pelas roupas negras, todos tinham pesadas máscaras cobrindo suas faces, como a proteger-se da toxicidade daquela luz que nos atraíra. Olhando melhor, tive a impressão de que a palidez daquelas mãos não era natural, era do material com que haviam feito luvas, também para guardar-se dos efeitos daquele aparelho.

Madalena me puxou pelo braço, sinalizando à frente. Obedeci sem perguntar. Quando tomei o primeiro passo, um dos Estranhos olhou exatamente em minha direção, como se alertado pelo meu movimento, ou por algum ruído meu, ou pela simples agitação do ar. Eu me plantei, apavorado, sem conseguir erguer o pé para continuar andando. Porém, a expressão no seu rosto, se possuía uma, ficava oculta por detrás de uma máscara negra e brilhante que obscenamente evocava traços humanóides, mas não exatamente humanos. Direcionei toda a minha vontade para congelar os meus músculos e impedir que eu fraquejasse. Naquele instante o juízo me voltou e eu percebi o quanto fora louco de buscar entrar no antro dos Estranhos. Maldita a minha curiosidade. Eu não temia pela minha vida, mas por algo muito pior que poderia acontecer.

Aos poucos, a fixidez da expressão do Estranho, isenta de qualquer menção a levantar-se ou a chamar algum dos outros, pelo menos de forma visível, me fez ver que ele não estava me vendo. Talvez estivesse ofuscado pelo excesso de luz que havia naquela sala, ou talvez fosse mesmo cego. Sei que me mantive ali imóvel, segurando a respiração devagar, torcendo para meu coração bater o mais baixo possível. Minhas pernas começaram a doer, mas aquele olhar gélido ainda me encarava, e eu o encarava de volta, como quem mergulha no abismo. «Maldito, está esperando acostumar-se à luz para poder me ver.»

Fui salvo pelo que, na hora, pensei ter sido um simples acaso feliz: a máquina, por alguma razão, pareceu desconcertar-se e começou a produzir fumaça e forte cheiro de ozônio penetrou o ar. Seguiu-se uma série de silvos baixos e ritmados, como sussurro muito apertados. O Estranho volveu os olhos para a aparelhagem que começava a piscar em muitas cores e eu aproveitei aquela nesga de instante para avançar os pés e chegar a Margarida, que estava paralisada na sombra providencial entre duas portas. Mas ela certamente sabia, tão bem quanto eu, que a sombra nada significava para os Estranhos. Foi a minha vez de puxá-la pelo braço. Arrastei-a pela porta de banheiro. Não sei o que foi que me levou à conclusão, que se mostrou correta, de que o banheiro não teria nenhuma serventia para eles.

Encostei a porta com muito cuidado e ficamos sozinhos na privacidade precária daquele banheiro escuro. Sem podermos sequer sonhar a possibilidade de acionar um interruptor de luz. Tateei pelas paredes de azulejos e levei-nos até uma das privadas, no canto oposto, suficientemente distantes da porta para podermos ofegar em paz relativa.

Nenhum de nós tinha coragem de falar. O medo retornara. Os Estranhos tinham deixado de ser figuras fantasmagóricas de crepom negro que voavam sobre o vale, ou fantasmas de pessoas partidas, ou aparições inexplicáveis. Haviam adquirido uma apavorante materialidade, uma maldade que era difícil negar. Uma maldade que não derivava de suas intenções desconhecidas, mas de sua mera e total Estranheza.

Após conseguirmos regular um pouco a força da respiração, tratamos de sair da arapuca em que nos metêramos. Subimos em um dos vasos e alcançamos a janela. Com dificuldade a abrimos, mais por não querermos fazer nenhum ruído do que por sua resistência. E então saímos para o jardim da escola, próximos ao muro.

Para saltar o muro não tivemos tanto cuidado, mas tivemos a sorte de a escada do zelador ainda estar funcional, apesar da grossa camada de ferrugem que a cobria. Pisamos de novo em liberdade, a horrível liberdade, no gramado fedorento das margens do córrego. Felizmente ele era estreito e pudemos saltar à outra margem, escalar o barranco até a rua e tomar o caminho mais rápido para fora daquele inferno de cidade.

Andávamos devagar, querendo muito evitar que nossos calçados fizessem ruído no chão. A partir daquele ponto percebemos que muitas das casas ainda eram «habitadas» — se é que os estranhos podem ser considerados habitantes de algum lugar. Em uma das casas, pudemos ver, pela janela escancarada, um grupo deles examinando um violino, torturando-o para que produzisse grunhidos horrendos, para aparente satisfação do grupo. Estavam tão absortos nisso que não nos notaram passando. Tinham por aquele pobre violino um interesse que me pareceu tão genuíno e humano que quase tive esperanças.

Havíamos chegado à parte mais plana do vale onde a cidade se erguera. Ali era uma antiga praça de comércio, transformada num apinhado estacionamento onde os automóveis pareciam caramujos abandonados por moluscos mortos. Passamos por eles sem reverência, buscando sair da cidade pelo caminho mais curto. Quando pisávamos o asfalto, enfim, olhamos para trás e vimos todo o vale negro, sem luz nenhuma que denunciasse o frêmito ininteligível dos Estranhos. Erguia-se um sol mortiço detrás da Montanha, filtrando raios magros através de nuvens lerdas e gordas que se amontoavam no horizonte. Atravessáramos a cidade, a pé e temerariamente, em uma única noite.


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Dez 11
publicado por José Geraldo, às 22:32link do post | comentar

As silhuetas deles poluem agora a visão do horizonte. Há dias que têm estado assim: patrulhando o céu de uma forma quase apática, mas voejando pelo vale como ilhas de escuridão, rutilantes, intangíveis, deitando sombras sobre casas e árvores, fazendo-nos tremer por dentro como se soubéssemos de algo. Mas não sabemos de nada.

Apareceram do nada, sem que estivéssemos preparados para qualquer uma reação. Cortaram-nos uns dos outros, como peças de um tabuleiro cujas casas apareceram subitamente muradas. Estamos presos onde estamos, cada um dentro de onde estava quando tudo aconteceu. Apenas acenos nos contam de quem há nas outras casas, todos trancados e em silêncio, à espera de que a sombra passe e o sol brilhe de novo no jardim.

Devo dizer que nós, cá nesta casa, tivemos sorte. Por estranho que possa parecer estávamos no fim de uma festa, perto do amanhecer. Quando percebemos o acontecido, aqui ficamos, contemplando. Os estranhos nadando na límpida atmosfera da manhã, insondáveis, indiferentes, e todos aqui imersos na poeira e na fumaça de um fim de festa, cansados, sonados, de hálito pesado na boca e suor pregado na roupa.

Ficamos porque tínhamos medo, claro. Não vou inventar nenhuma estratégia, nenhuma razão psicológica ou curiosidade científica. Ninguém aqui é desse tipo. Éramos apenas clientes de um clube de strippers isolado na segurança de uma montanha, fora dos limites da cidade. Lugar privilegiado para contemplá-la, para antecipar quando a polícia vem. Cá estamos nós, alguns homens perdidos, algumas mulheres perdidas. E como o mesmo adjetivo é diferente em cada sexo!

Os Estranhos chegaram, como eu disse, de uma forma tão súbita que nem mesmo os notamos. Tentamos entender algum propósito, algum plano, mas eles não parecem possuir nenhum. Agem de uma forma quase vegetal, flutuam preguiçosamente, como poças de estagnação transformadas em balões, em silêncio, com uma lentidão que apavora.

Madalena chegou à janela na terceira manhã, pela primeira vez. Tinha sido das mais assustadas, mais cheia de culpas, mais supersticiosa. Agarrara-se com seus ícones de bolso e suas figurinhas de gesso e balbuciara tantas palavras que ficara rouca. Tinha medo de demônios e de anjos, de morrer cedo ou de viver "daquele jeito". Seu profundo medo a purificou, deu-lhe uma forma estranha de pudor, de dignidade. Limpou-se de toda pintura e escovou os dentes até remover deles todo resto ou gosto de pecado. Depois pendurou um crucifixo no peito, por fora de uma camiseta de malha escura, e andou entre nós, de cabelos soltos e desgrenhados, quase como uma sacerdotisa.

Mas dizia que ela chegou à janela naquela terceira manhã e observou longamente os espasmos dos Estranhos, ouviu indiferentemente os estalos da estática no rádio, como um espectro irritante de um além tão próximo. E naquele momento, de seu peito socado de tanto choro e vela, brotou uma conversa coerente, finalmente:

— Desta distância é quase impossível saber quantos são.

O senhor grisalho a quem ela se dirigiu não pareceu compreender, preocupado que estava em engolir o máximo do uísque barato, como se esperasse pela redenção de um coma alcoólico antes que o destino o rendesse. Mas eu estava perto, compreendi o esforço que ela fazia para romper o casulo do medo, e lhe recebi com palavras tranquilas:

— Também tenho dificuldade para contar. Às vezes a gente fica com a impressão de que parecem enxamear pelo mundo, outras vezes, que são só alguns que ficam se revezando aqui em volta. Não sei, o que eu sei é que eles parecem dominar os dias, e não há nada que eu saiba que a gente possa fazer.

Os olhos dela continuaram vidrados na paisagem, enquanto a boca falava com uma coerência típica dos traumatizados:

— Parecem grandes pedaços de cartolina, ou de feltro fosco, ou de camurça negra, não sei. Parecem bater asas, contorcer-se, como se estivessem vivos, quase os escuto estalando, como morcegos voando na escuridão do meio dia.

No momento em que ela o disse, também tive, pela primeira vez, a impressão de que ouvia um estalo. E mais ainda:

— Mesmo eles sendo tão completamente negros, dá para sentir, bem de vez em quando, um leve brilho negro, como se o sol os afetasse.

Madalena não me ouvia, ou não dava sinais de me ouvir.

— Parecem bailando no ar, tão inocentes, tão sem maldade, num ritmo lento e seguro, até bonito, como se nem pudessem voar.

Interrompeu-nos um ruído de cadeira caindo. Madalena acordou de seu transe místico e eu finalmente consegui parar de encarar seus olhos negros. O farmacêutico se enforcara. Amarrara o currião na trave da mão francesa e em torno do pescoço, depois chutara a cadeira em que subira, e seu largo corpo, flácido e pálido, saco de vícios e vaidades, estendeu o couro até quase os seus pés tocarem o chão. Havia uma curiosa ironia em ver aquilo: mais três ou quatro milímetros e ponta de seu sapato poderia tocar o chão, se ele quisesse ainda tocar o chão.

Tentamos ainda socorrê-lo, mas não havia o que fazer: os cento e sessenta quilos desajeitados do suicida não eram fáceis de carregar, não depois de dois dias sem uma refeição de verdade, não pelas duas únicas mulheres que estavam na sala, junto comigo, o velho bêbado e o bibliotecário cego — homens inválidos e putas cansadas, reduzidos à feminilidade da espera enquanto os másculos heróis se divertiam com baralho e boquetes no andar de cima. Quando finalmente desceram para ver o que era, os dois olhos do farmacêutico já estavam esbugalhados e a sua língua, roxa e roliça como uma berinjela, mal cabia em sua boca.

— Mas que merda! Esse pacote de banha tinha que se matar bem aqui na sala, no meio do bar! — berrou o Tenente Marcelo, ainda se achando um digno militar, apesar das calças mal abotoadas e do bafo grosso de álcool que espalhava no ar.

Com gestos rápidos ele determinou: cortaram o cinto e deixaram o amontoado humano se estender no chão, sobre a poça de urina e fezes líquidas que descera no momento final. Depois enrolaram o tapete e o levaram para fora. Mas como era dia e as sombras haviam se agitado temporariamente, não ousaram muito mais que abandonarem-no diante da casa, no gramado próximo à piscina que ninguém mais tinha coragem de usar.

A experiência pareceu afetar a todos, pelo menos temporariamente, mesmo os mais empedernidos, os que ainda esperavam, usando o resto de seu dinheiro para pagar por favores sexuais, mesmo as mais alienadas, que ainda se vendiam esperando ter algo a fazer com as joias e as notas de cem. Ninguém subiu para o segundo andar naquela tarde, em vez disso gastaram longos banhos, como se o corpo do pobre farmacêutico obeso lhes houvesse contaminado com algo incompreensível.

Madalena, que voltara à janela para contemplar os Estranhos, atraiu-me até lá. O senhor grisalho, ainda preocupado em beber até a inconsciência, retomara seu assento junto à parede e encarava a garrafa de Orloff como um desafio. Mergulhava a cereja em calda, como se para adoçar a própria morte, e sorvia goles curtos.

Os outros foram vindo, depois de seus banhos, e se instalando no saguão para beber. O assoalho de madeira estava ligeiramente mais claro no lugar onde se estendera o tapete, restando como sinal da morte que ali pousara. Do lado de fora, o cadáver jazia enrolado, próximo à piscina.

Os Estranhos pareciam comportar-se de uma forma ligeiramente diferente. Com movimentos ligeiramente mais rápidos, com uma tendência incômoda de fazerem círculos que pareciam aproximar-se da montanha, como se ela, de repente, lhes atraísse algum interesse. Como se eles já não tivessem a antiga inocência, a indiferença que notáramos. Não sei se fui o primeiro a perceber isso, mas o disse a Madalena:

— Tenho a impressão de que estão querendo ocupar o vale inteiro. Estão circulando mais longe, como urubus procurando carniça.

— Não tenho certeza se sabem da carniça — ela me interrompeu — mas é bem claro que estão circulando uma área mais larga. Dá para ver que estão mais longe uns dos outros.

Naquele momento um grupo, em estratégica fila, como uma esquadrilha decolando para a guerra, subiu do chão junto a um galpão distante, ao lado de uma soturna igreja aonde eu, funcionário burguês, ateu e forasteiro, nunca pusera os pés. Vê-los sair de lá me fez ver, talvez pela primeira vez, que eles eram menores do que pareciam quando voavam pelo céu, tão desfraldados e escuros.

Subiam do chão se desdobrando, se espalhando, jogando vestes imateriais em torno de algum vácuo igualmente ralo. E quando chegavam à altura das nuvens, já pareciam pipas monstruosas que tapavam o sol, sem que sequer uma gota perfurasse sua seda.

Enervado com a movimentação dos Estranhos, que parecia ter se tornado ameaçadora, procurei outras coisas para olhar, seres em que pensar. Mas apenas encontrava o tapete enrolado perto da piscina. Enquanto engolia em seco e criava coragem para sair da janela e buscar água morna para aliviar a garganta irritada, percebi que alguém mais notara o morto: um grande tatu, de pernas peludas e orelhas frenéticas, correu do mato até ele, sem temer nenhuma presença de humanos, como se soubesse já que nós não sairíamos da casa por nada desse mundo. E ao aproximar-se do pacote fúnebre que enfeitava o jardim do bordel, ele encostou o seu focinho na fibra antiga, ansioso como quem entra num banquete, e foi se enfiando pelo túnel de tecido adentro, produzindo movimentos asquerosos, repetitivos, mastigatórios.

Madalena fez uma careta de horror, imaginando o que poderia estar acontecendo ali, quando, então, um horror maior aconteceu: o tapete, deixado numa posição quase precária do jardim, perturbado pelo fossar do animal, começou a girar lentamente sobre si, ganhando velocidade no declive, cada vez mais velocidade, aproximando-se da grande ribanceira, desenrolando-se inominavelmente enquanto se movia, até que o corpo volumoso do farmacêutico apareceu sob o sol, e ainda instável, rolou pela montanha abaixo, para espanto e tristeza do tatu, que o olhou caindo como quem vê meio pão com manteiga caído da mesa com o lado cortado para baixo.

Os Estranhos ficaram ainda mais agitados. Naquele momento eles definitivamente pareceram perceber a casa. Mas, para nossa sorte, era já uma tarde velha, que se carcomia em noite.

— Madalena, eu vou embora.

— Para onde?

— Dentro de duas horas terá anoitecido, e eu não quero ver outro dia aqui dentro nem por nada nesse mundo. Vou pegar o carro e seguir para Juiz de Fora.

— O que você espera ver em Juiz de Fora?

— Não sei, mas não vou ficar aqui esperando a morte chegar, porque é o que vai chegar amanhã.

— Será que ainda existe Juiz de Fora?

— Não sei, pode ser que os Estranhos estejam somente aqui.

— Nesse caso, você tem certa razão em querer ir. Faz sentido querer avisar o mundo.

— Mas o mundo não precisa de aviso. O mundo já deve saber. Quando começou, quem tinha internet mandou o seu recado. Quem tinha telefone, telefonou. Quem pôde fugir, fugiu.

— Pensando bem, a linha telefônica tem estado muda desde que aconteceu. Não tem eletricidade, não tem nada no rádio.

— Sem eletricidade não tem como saber se ainda existe televisão, se a internet está no ar, se o até mundo ainda existe. Mas, principalmente, não dá para saber se é só aqui, ou se foi no mundo inteiro.

— Gostaria de ter um binóculo.

— Já não viu o bastante?

— Nesta vida  já vi tudo que não queria, mas ainda tem muita coisa que eu queria ver.

— Uma saída daqui, por exemplo?

— Não, o que são as manchas brancas lá embaixo no asfalto.

Saí de perto dela para buscar água. Só mesmo muita sede me força a beber água morna. Mas estendi minha saída até a garagem, lá fora. Uma temeridade. Por alguma razão eu deixara de ter medo dos Estranhos. Entrei em meu carro, abri o porta-luvas e retirei de lá a minha câmera fotográfica. Não era um binóculo, mas tinha uma teleobjetiva bastante poderosa. Suficiente para satisfazer Madalena, ela, que tinha fama de se satisfazer com substitutos do que a maioria das mulheres quer. Minha barriga estava tão cheia d'água que a sentia sacolejar quando andava. Com dificuldade a água morna se agarrava em meu estômago, só a força de vontade a impedia de subir.

— Não é um binóculo, mas deve alcançar uma imagem boa lá de baixo no asfalto, Madalena.

Ela tomou a câmera de minhas mãos, eu me aproximei de seu rosto, para ensiná-la a manipular os maquinismos analógicos daquele monstro fora de moda, do tipo que ainda funcionava com filmes. De tão perto o perfume dela não parecia tão vulgar, havia algo de doce nele, cheiro de xampu barato, de suor de puta, mas cheiro que convidava.

Aos poucos as lentes foram perfeitamente ajustadas à distância, e as manchas brancas se discerniram em ossos limpos, humanos. O sol brilhava neles, como em flores de margaridas em um prado verde, o gramado da minha escolinha de infância, coalhado de florezinhas brancas, o gramado onde, um dia, uma outra Madalena, negrinha e bonita, mais velha e mais sabida, me agarra pelo pé, me derrubara como um bezerro de rodeio, e me roubara vinte beijos, para depois sair andando, rindo, dizendo que os havia roubado e não devolveria nunca. Tinha sido um dia divertido quando eu chegara em casa, ainda chorando, traumatizado, dizendo ao meu pai que ela me havia roubado tantos beijos, e não os queria devolver. A risada de meu pai ecoou na minha lembrança. Aumentou a tristeza de ver aqueles ossos. Haveria ainda um dia para as crianças correrem livres sobre os prados?

— Madalena, não vou passar outra noite aqui. Vem comigo?

— Vou. Aonde?

— Quero ir ao centro da cidade, descobrir o que fazem os Estranhos durante a noite.

— É loucura.

— E é exatamente por isso que eu vou fazer. De que adiante ficar aqui em companhia de tanta gente mentalmente sã?

Ao dizer-lhe isso nos viramos para ver os outros homens, quase estuporados de tanto beber. As outras prostitutas se injetavam coisas inomináveis nas veias.

— Eu quase poderia ir agora. Não quero morrer aqui dentro como um passarinho abandonado na gaiola pelo dono. Não sei se Juiz de Fora existe ainda, por isso eu não vou lá, vou ao centro da cidade ver o que fazem à noite esses Estranhos. Acho uma resposta ou uma morte rápida, qualquer coisa é melhor que isso aí.

Madalena fez que sim.

— O que levamos?

— Uma moeda de ouro sob a língua seria uma boa ideia.

Mas levamos mais do que isso: banhados e vestidos com adequadas roupas negras, saímos da casa tão logo a primeira estrela veio. Logo notamos como o fundo do vale, onde a cidade se deitava, parecia tão mais escuro do que deveria. Era a falta absoluta da iluminação.

Descemos, em silêncio e bem devagar, a mesma encosta que o farmacêutico descera com tanto estrépito. Cadáveres adiados são mais lentos que os cumpridos para certas coisas. Era difícil tentar falar: o ar tinha um peso, um cheiro de medo que embriagava. Apesar disso, escolhemos o caminho mais rápido, mesmo sendo o mais devassado. À luz do dia, qualquer coisa que tivesse olhos nos veria descendo pela encosta do morro e seríamos ossos no dia seguinte, mas era noitinha e eu não tinha medo de olhos.


23
Set 11
publicado por José Geraldo, às 20:20link do post | comentar | ver comentários (1)

Denilson Ricci, responsável pelo Site Lovecraft está prestes a lançar ao mundo um dos mais ousados projetos editoriais independentes dos últimos tempos, talvez o mais ousado da década até agora. Movido apenas pelo trabalho de voluntários (tradução, revisão, ilustração, projeto gráfico, catalogação) e com a proposta de venda a um grupo fechado de compradores, ele pretende dar à luz um volume que deve, em breve, ser referência para autores brasileiros de ficção científica e horror: a primeira edição abrangente das obras de H. P. Lovecraft no Brasil.

O objetivo é ambicioso: reunir as obras mais significativas do mestre do horror cósmico, tanto em prosa quanto em verso, em um volume ilustrado e acompanhado de prefácio e de uma longa biografia do autor. Espera-se que o volume tenha mais de 400 páginas! Além disso, a edição será em formato grande, em papel de primeira qualidade, em vez das edições de bolso que normalmente são reservadas para os gêneros “menores” (como a ficção científica e o horror) pelas editoras tradicionais.

Esta edição foi possível porque toda a obra do autor encontra-se em domínio público no Brasil desde 2007, considerando que ele morreu em 1937. Mas de nada adiantaria a obra estar disponível se Denílson não conseguisse reunir, através da internet, uma variada equipe de pessoas de todas as partes do país, das mais diversas profissões e interesses. Tradutores, revisores, críticos, biógrafos, desenhistas, designers. Coordenando um grupo de dezenas de pessoas, separadas pelas distâncias físicas e culturais que a Internet, e apenas ela, permite vencer, o editor nos traz a esse momento glorioso, em que nasce, quase de um parto, um livro destinado a ser referência pelos anos que hão de vir.

Sinto profundo orgulho de ter colaborado nesse trabalho, com a tradução de nada menos que quatro contos do Mestre, dos quais três devem ser aproveitados nesse primeiro volume:*

  • A Busca de Iranon (The Quest of Iranon),
  • Um Sussurro na Escuridão (A Whisperer in Darkness),
  • O Habitante das Trevas (The Haunter of the Dark)
  • O Depoimento de Randolph Carter (The Statement of Randolph Carter)

Visite o Site Lovecraft para mais informações, e prepare alguns cobres para comprar, até janeiro ou fevereiro, a primeira edição de luxo e independente das obras de H. P. Lovecraft no Brasil.

Sugiro fazer já a sua reserva, pois a tiragem será restrita aos que encomendarem. Eu já encomendei OS MEUS.

*Sim, ouso dizer “primeiro volume” porque seria mais do que apropriado usar o conhecimento já adquirido e fazer um segundo volume. O autor tem obras em quantidade suficiente para alimentar várias repetições desse projeto. E eu ainda sonho, muito em traduzir para o português The Dream-Quest for Unknown Kadath.


10
Set 11
publicado por José Geraldo, às 16:41link do post | comentar | ver comentários (1)

Jó era um homem justo. Na velha terra de Uz não havia ninguém tão querido e nem tão invejado. Era rico, mas a riqueza não o havia estragado, em vez disso, fazia dela um instrumento para ajudar o próximo — e era justamente por isso que o tinham em tão alto apreço.

Tinha sete filhos e três filhas, de sua única e amada mulher. Todos já casados e com as respectivas famílias bem encaminhadas. Viver entre os filhos e netos, isso era o que tornava Jó um homem realmente feliz, a riqueza era algo com que ele contava de uma forma quase natural.

A riqueza de Jó havia sido herdada, em grande parte, de seu falecido pai, mas ele a havia aumentado com seu trabalho duro. Tornar-se rico ficara especialmente mais fácil depois que os filhos cresceram, pois passaram, também eles, a contribuir para o crescimento da propriedade. Desta forma, Jó possuía extensos rebanhos de gado, que pastavam pelos campos sob o cuidado de centenas de empregados, com seus cães. Estes animais, entre os quais muitos escravos, como era costume na época, eram saudáveis e bem tratados. Comprar uma rês de Jó era negócio bom sempre — e essa reputação só ajudava a torná-lo um homem mais bem-sucedido.

Por tudo isso, evidentemente, Jó era grato a seu deus. Prestava seu culto doméstico de forma minuciosa e, por via das dúvidas, sempre sacrificava em nome dos filhos, para o caso de algum deles esquecer-se. Desta forma ficava garantida a satisfação do deus, diante de qualquer eventualidade.

Não havia, portanto, aos olhos do povo de Uz, nenhum defeito de caráter que pudesse ser imputado a Jó. Ele era tão perfeito que só poderia mesmo existir como um personagem literário. Mas a vida de Jó estava para mudar, para pior, graças ao seu deus.

O deus de Jó era dado a bravatas e apostas, além de ter o péssimo hábito de ter entre seus servidores celestiais criaturas de caráter duvidoso. Esses defeitos o tornavam propenso a cometer erros, ou melhor, atos que aos olhos dos comuns mortais parecem erros mas que, nas palavras do deus, reveladas a profetas, seriam “parte de um grande plano”.

Um belo dia estava Jeová — esse era o nome do deus de Jó — fazendo aquilo que se faz lá no céu quando os anjos apareceram para fazer o que os anjos fazem na presença de deus, quando Satanás — um servidor celestial particularmente capcioso — apareceu no meio eles, aparentemente de forma costumeira. Digo isso porque Jeová o reconheceu, cumprimentou e chamou de lado para uma conversinha amigável:

— E então, Satã, o que tem feito, meu filho?

— Velho, o Senhor sabe como é, estive andando lá pela terra, de um lado para o outro, só azarando…

— Ah, então deve ter visto o Jó…

— Jó, Jó… — engasgou Satanás sem se lembrar do nome.

— Ora, Satã, está ficando gagá antes de seu pai? Jó, aquele cara lá da terra de Uz que gosta de mim mais do que a minha mãe!

— Mas o Senhor não disse para a gente que não teve mãe, que sempre existiu, essas coisas?

— Bem, eu não tive mãe ainda, mas isso é complicado demais para vocês anjinhos entenderem. O que importa é que esse Jó é o maior dos meus fãs, um amigo meu de toda confiança, homem da mais estrita fidelidade. Eu dormiria pelado com ele numa cama sem medo de nada.

— Olha, pai… não fica falando essas coisas que Baal e Marduk reparam. Você nem imaginam a fofoca que esses dois arrumaram sobre os deuses gregos, por muito menos.

— Qué é isso, moleque? Está me estranhando? Sou espada! Espada de fogo!

— Ah, então `tá. Mas o Senhor me falava de um tal Jó…

— Sim, o Jó. Duvido que haja alguém no mundo que tenha tanto amor por mim quanto ele!

— Pai, que é isso!? O Senhor está se gabando do amor de um homem?

— Meu filho, tal como você que é anjo, não tenho sexo. Estou falando de amor espiritual! Você não entende?

— Claro que não, Pai. O Senhor me criou para desconfiar de tudo, para discordar de tudo, para encher o saco de todo mundo. Sou cricri desse jeito porque o Senhor me fez assim.

— É mesmo, da próxima vez que eu for criar um universo não vou brincar de novo dessa história de bem e mal, livre arbítrio etc. Vai todo mundo me obedecer, e pronto!

Satanás ficou quieto. Quando Jeová começava a divagar sobre seus planos para o “próximo universo” o céu inteiro tinha medo. Afinal, para criar um novo universo seria preciso acabar com o primeiro, incluindo todos os anjos, santos e alminhas pagãs.

— Mas o Senhor falava do Jó, e eu não acreditava que ele pudesse ser tão santo.

— Está duvidando de mim, filho? Eu sei tudo!

— Todo pai diz isso — sussurrou Satanás.

— O que foi que você disse? — trovejou Jeová.

— “Todo poderoso Pai do Céu”.

— Ah, bom. Mas se você duvida de mim, aposto com você como a fé do Jó é inabalável. Olha lá!

Jeová mostrou Jó e sua casa através de um “mar de bronze” que havia diante do trono. Estavam todos celebrando uma festa familiar, ao redor de uma farta mesa. Satanás olhou com interesse aquela cena, tentando identificar pecados para cutucar e, depois de alguns minutos, atalhou:

— Que fé coisa nenhuma, ele gosta do Senhor porque é rico. Veja como a mesa dele é farta, veja as roupas de lã alvíssima, a casa de pedra em que vive! Nenhum rico amaldiçoa a Deus, mas aposto que se o Senhor o fizer ficar pobre ele o xingará.

— `Tá apostado! Se eu ganhar você me devolve sua beleza?

Esta foi a primeira aposta feita por Jeová naquele “dia”, mas não a primeira. Satanás sabia muito bem que ele não sabia perder, mas fora criado com uma insaciável ambição. Por isso engoliu em seco, hesitando topar, mas tinha tanta certeza de que humanos, especialmente os do Antigo Oriente Médio, eram umas bestas que topou:

— Se eu ganhar eu quero um terço das estrelas do céu.

— Fechado. Mas não tire a vida e nem a saúde de ninguém, somente riquezas. Você disse que ele me amaldiçoaria se ficasse pobre!

Satanás desceu do céu com a missão de acabar com a riqueza de Jó e fazê-lo blasfemar. Começou a trabalhar logo que chegou a Uz. Arranjou uns capangas barra-pesada que atacaram os campos de Jó, roubando as reses e degolando os empregados. Depois uns anjos vingadores que eram amigos seus reuniram umas nuvens e trouxeram granizos e coriscos para matar as ovelhas e cabras. Estas deram um trabalhão, pois esse bicho ruim não morre fácil: foi preciso um meteorito de meia tonelada no meio da testa de cada uma, mas finalmente morreram, bicho ruim de morrer que é cabra! Por fim as caravanas de Jó foram atacadas e saqueadas por caldeus.

O pobre homem ficou mais pobre que Jó, digo, ficou pobre! Vocês entenderam. Mas continuou tranqüilo, ao lado da mulher e dos filhos. Satanás ficou fulo, mas não tinha mais nada a fazer, porque Jeová já estava com seu Olho-Que-Tudo-Vê bisbilhotando para ver se ele não trapaceava. Voltou ao Céu e teve de entregar sua beleza ao bondoso e onipotente Deus-Pai. Como resultado, virou um bicho esquisito com uma pelagem que parecia de rato, asas que pareciam de morcego, cabeça que parecia de cabra e todo torto. Os anjinhos lourinhos riam dele (como são maus os inocentes anjinhos lourinhos e como Satanás desejou empalar cada um deles e pôr para assar numa fogueira). Enquanto chorava de raiva, Jeová se gabava:

— Tá vendo como Jó é cheio de fé!?

Satanás vociferou entre dentes que haviam ficado fedidos e pontiagudos:

— Mas também… Riquezas vêm e vão e, se ele tem fé, talvez imagine que um dia ganhará de novo. Mas se ele perder a família, que é algo que não se ganha de novo, daí ele ficará triste e vai xingar o Senhor.

— Aposto que não!

— Então tá, eu quero ter um rabo gordo e com uma ponta de flecha no fim se ele não te xingar quando eu matar todo mundo da casa dele!

— Tá feito! Se você ganhar, ficará com um terço das estrelas do céu, embora isso não tenha valor algum porque nós dois sabemos que o céu é só uma abóbada sobre a terra e as estrelas são faisquinhas sem graça que eu pus lá brilhando.

E assim Satanás desceu do Céu pela segunda vez, cheio de ódio, disposto a foder com Jó como pudesse para fazer aquele palerma blasfemar logo. E para não ter trabalho, assim que Jó saiu de casa para trabalhar (em sua nova rotina, trabalhava de 7 às 17 para sustentar a casa), mandou um terremoto que fez a casa cair e matou os seus filhos, genros, noras, netos e também um ricardão que andava por lá. Sobraram apenas Jó e sua mulher, que já era uma senhora de meia-idade.

Com esta catástrofe muitos teriam blasfemado, mas Jó era um sujeito muito zen (ainda que vivesse milhares de anos antes da existência do Japão). Deu um grande suspiro, chorou, chorou, mas não amaldiçoou a Deus.

Satanás, é claro, ficou “pluriputo” da vida, mas nada podia fazer. Pensou em fugir e se esconder debaixo de uma pedra em Plutão, mas Jeová já o tinha visto. Veio chegando, arrastando a sandália na areia, com as mãos para trás, todo irônico, falando com um curioso sotaque mineiro:

— Pois é, Satã. Ó só, o home num xingou não…

Satanás exalou um suspiro de auto-piedade e Jeová, num gesto rápido, puxou um pêlo da bunda do ex-anjo e criou uma cauda longa, grossa, molenga, vermelha e com uma ponta-de-flecha no fim.

Humilhado e sedento de vingança, Satanás soltou os cachorros:

— Mas também você fica trapaceando! Não pode tocar no Jó! Não pode! Puta merda! Enquanto aquele £¢³¬{¢{%@ estiver com saúde vai tolerar tudo! Olha só, ele virou o guru daquela gente! Todo mundo acha que ele é santo porque aguenta tudo calado! Ainda lhe resta saúde e dignidade e isso é suficiente. Se bobear ele vira profeta até! Mas retire sua saúde e faça o povo perder o respeito por ele que ele vai xingar o Senhor e todas as hostes do céu!

— Você acha?

— Acho!

— Aposto que não!

— Aposto que sim, mas só se você me der poderes quase iguais aos seus e me deixar dominar a Terra para sempre! Quero ser Senhor do mundo inteiro!

Num ato indigno de um ser onisciente (e ainda menos digno de um ser sumamente bom), Jeová consentiu que Satanás sacaneasse Jó pela terceira vez, apostando contra a fé de Jó a sorte de todo um planeta e de todas as futuras gerações de pessoas e animais.

E assim Satanás desceu do céu com a missão de acabar com todo o respeito de que o pobre Jó ainda gozava. Fez com que ele adoecesse de uma moléstia que causava bolhas fedorentas e urticária pela pele, além de purgar pelos cantos dos olhos. Coçava tanto que ele só conseguia ficar nu se raspando com um caco de telha. Para aliviar a coceira, ele chafurdava numa poça de lama como um porco. Seus cabelos caíram e, como ficava nu, todo mundo percebeu que ele tinha um bilau pequeno.

As pessoas começaram a achar que ele estava doido ou, pior, que ele tinha secretamente cometido um imenso sacrilégio para que os deuses o ferissem tanto. Assim ele perdeu todo o respeito e os seus discípulos e amigos o abandonaram. As crianças riam dele. Sua mulher fugiu de casa com um entregador de kebab. Mas não antes de humilhá-lo publicamente dizendo:

— Veja só o que aconteceu, caro Jó. Perdeste fortuna, família, amigos, saúde e até o respeito de teus semelhantes. Olha que vida miserável estás levando neste poço de lama. Ninguém merece viver assim, nem o pior dos criminosos. E tudo isso foi teu Deus maluco que causou, ou deixou que alguém causasse. Amaldiçoa esse tirano ingrato para ele te mandar um corisco na moleira e te matar, porque só morrendo para ficar livre desse seu Deus.

Jó se recusou a amaldiçoar a Jeová, mesmo porque isso não impediria que sua esposa o abandonasse. E assim perdeu a última pessoa que tinha ao seu lado.

Somente três amigos permaneceram fiéis. Compadecidos da desgraça de Jó, foram conversar com ele. Ao ver o estado em que o amigo estava os três ficaram tão chocados que levaram sete dias tentando criar coragem para chegar perto e puxar assunto.

Mas ele resistiu longamente às ponderações dos seus três melhores amigos, por mais sete proverbiais dias, até que, por fim, com a cabeça confusa de tanto argumento para lá e para cá — e também um tanto oca pela fome e pelo sofrimento — acabou cometendo uma blasfêmia “técnica”, que é algo mais ou menos como um “jogo perigoso” do futebol. Deus viu o seu pé alto e não gostou.

Sim, ele blasfemou por causa de um deslize com as palavras. Não xingou a Deus, mas duvidou de sua bondade, dizendo que não poderia ser por própria culpa que sofria:

— Ó Deus, foste tu que me atiraste aqui nesta lama, e não me ouves quando te peço piedade. Não posso fazer nada contra o teu poder, mas por que tu atacas a um pobre mortal como eu? Terei cometido algum pecado grave sem o perceber? Mas se é contra mim que diriges sua ira, por que mataste meus filhos e meus empregados?

Do céu Jeová contemplava tudo com um interesse de voyeur. Quando Jó blasfemou, Satanás, que estava ao lado do Senhor dos Exércitos, caiu naquela gargalhada que seria imortalizada pelo cinema:

— Uauhahahahaha!

Jeová ficou vermelho-roxo-verde-abóbora.

— Pague a aposta, Pai!

Diante dos milhares de anjos que o olhavam, Jeová não teve como fugir. Cedeu a Satanás um terço de seu próprio poder.

— Muito bem, e agora vou lhe fazer “Senhor do mundo”.

Satanás saltitou sobre seus cascos de bode, todo feliz, achando que tinha ganhado, mas Jeová o agarrou pelos chifres e o atirou no mundo com tanta força que destruiu a Atlântida. E do alto do céu lhe gritou:

— Você queria tanto o mundo! Pois bem, vais ficar preso nele para toda a eternidade, Surfista de Prata!

Sangrando e ainda tentando curar suas muitas fraturas e dentes caídos, Satanás olhou para cima e perguntou:

— Quem?!

Jeová mordeu a língua:

— Desculpe, o incompetente do escritor confundiu as historinhas.

Tendo feito isso, resolveu tentar limpar a cagada toda que tinha feito. Desceu do firmamento a bordo de uma tempestade das mais tonitroantes e foi parar no Oriente Médio, vociferando:

— Vou mostrar a essa cambada quem manda no pedaço!

Chegou na terra de Uz ainda quente de raiva. Jogava coriscos para todo lado, relampejava, esbravejava e fazia chover como nunca chovera lá. De fato, quase nunca chovia lá. Para completar, causou uma erupção vulcânica e derrubou um meteoro. Depois de meter medo até nas pedras e fazer com que as pessoas fugissem para suas casas ou se entocassem em cavernas, assumiu uma forma apresentavelmente humana—apesar dos cabelos de fogo, dos olhos chamejantes, do tamanho descomunal e de uma nuvem escura para esconder sua face—e apareceu diante de Jó e seus amigos, que estavam acovardados como coelhinhos num canil.

— E então, fiquei sabendo que havia uns carinhas por aqui duvidando de minha sabedoria, onipotência, justiça e blá-blá-blá…

Três sorrisos amarelos cumprimentaram o avatar de Jeová:

— Quê é isso, Senhor. Imagina… Vossa magnanimidade é reconhecida pelos quatro cantos da terra. Vós brilhais com justiça e…

— Calem a boca, seus puxa-sacos falsos!

Fez um silêncio total na galáxia.

— Vocês se acham inteligentes? Quem vocês pensam que são para acharem que sabem alguma coisa, suas amebas? Por acaso já contaram as estrelas do céu e os grãos de areia da praia? Hem? Hem? Hem? Pois é, fui eu quem criou a terra, enchi os rios, fiz a serra e não deixei nada faltar! Eu sei de tudo, eu sou quem sou, eu sou o oni-plus-ultra. E vocês são nada! Vocês são uns macacos pelados que ainda nem saíram da Idade do Ferro! Como ousam querer entender os meus desígnios secretos?

Tendo assim exibido sua pirotecnia e feito todo mundo sair cagando de medo, completou:

— Muito bem, Jó. Para lhe provar que eu sou-quem-sou, que eu mando e desmando, faço e desfaço. Vou desfazer tudo o que lhe fiz!

— Ó Senhor dos Exércitos! Vós sois mui justo e mui amável! Magnânimo! Ave!

— Tá, pára! Eu já sei que você só diz isso porque eu estou te pagando!

Jó calou a boca, para evitar que Jeová se enfezasse e mudasse de ideia. Depois de se ajeitar na nuvem, começou a arrumar as coisas.

— Fica saudável!

Jó ficou imediatamente curado de suas pústulas, de um princípio de cirrose que desenvolvera no tempo das vacas gordas entupindo a cara de vinho e cerveja e ainda ficou livre de umas cáries e gengivites. Sua pele ficou mais fresca que uma casca de pêssego.

Jeová olhou para Jó e acrescentou:

— Fica limpo também que você está fedendo mais que um porco suado!

Imediatamente apareceram uns anjinhos que lavaram e perfumaram tanto o pobre Jó que a Terra de Uz ficou cheirando a Jó por cinco séculos.

Jeová olhou de novo, pensou um pouco, olhou para um lado e para o outro para ver se não tinha ninguém olhando e fez o pinto do Jó crescer seis centímetros. Vendo isso Jó caiu no chão de Joelhos dizendo:

— O Senhor, eu não sou digno de tanta bondade!

— Se não parar de me bajular eu o deixo careca!

Jó imediatamente calou-se.

— Pois bem, aparece aí um cabelo… louro… liso…

— Muito bem. Terminei com você!

— Mas Senhor! Vai me deixar pelado aqui no meio do povo? Isso não é pecado?

— Humpf!

E ao resmungar isso, Jeová fez com que Jó se tornasse não apenas o homem mais bem-vestido do Oriente Médio, mas também o mais sortudo para ganhar dinheiro.

— Agora, Jó, vamos trazer de volta a sua família.

Depois de fazer Jó ficar jovem, bonito, louro e rico, Jeová começou a caçar um jeito de trazer de volta da morte os filhos, filhas, escravos, camelos, ovelhas e cabras do Jó—enfim, todos os seus bens materiais. Mas não se lembrava de jeito nenhum de como fazer. Pediu licença a Jó um minutinho e foi até sua nuvem, pegou seu celular e ligou para Satanás:

— Satã. Eu estou achando que eu lhe passei por engano o meu poder de trazer os mortos à vida… Dá para você me devolver? Eu vou precisar dele para cumprir a promessa que fiz aos judeus… sabe como é…

Satanás gargalhou de novo e desligou. Então Jeová voltou da nuvem meio sem jeito e disse a Jó:

—  O negócio é o seguinte, Jó. para deus nada é impossível, mas ao mesmo tempo é contra as minhas regras trazer alguém de volta da morte. Isto só será possível no Juízo Final, entende?

O pobre Jó, que já estava sentindo o gosto de ter de volta seus queridos filhos e filhas, começou a chorar.

— Ora, o que é isso, Jó. Eu vou te compensar. Você vai ser sete vezes mais rico do que antes, os seus novos filhos e filhas serão mais bonitos que os primeiros…

Jó não estava nem um pouco preocupado com isso:

— Senhor, eles não tinham culpa de serem feios, eu os amava mesmo assim!

Então Jeová se lembrou que não passara a Satanás um poder para o qual nunca dera grande importância. A um gesto de seu dedo, ele “secou todo pranto e toda lágrima” de Jó, fazendo-o esquecer de sua mulher infiel e dos filhos mortos.

— Agora, Jó, você vai voltar ao convívio dos homens, vai encontrar uma mulher mais nova e mais bonita e vai ter outra penca de filhos.

E o Jó, o Zumbi feliz desceu para a cidade de Pasárgada cantando aleluias e lá pôde ter a mulher que quis na cama que escolheu.


03
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 11:37link do post | comentar
Você tem exatamente três mil horas para parar de me beijar – Cazuza.

Estava escuro ainda quando Manoel acordou. A cerração ainda recobria as encostas da serra e as estrelas estavam sumidas no meio de tanta umidade no céu. Mas tinha ficado difícil continuar dormindo, e ele não sabia porque. Dentro da barraca o frio não entrava tanto, o saco de dormir isolava bem a umidade, mas de alguma forma ele acordou e foi se sentar, ainda enrolado nos agasalhos que catou da mochila. Acendeu o fogareiro e começou a esquentar água para preparar um café solúvel. Reparou então que as outras barracas estavam vazias.

“Mas com mil diabos, aonde esse pessoal foi parar no meio da noite?”

Subitamente lembrou de um sonho que tivera, um sonho molhado com algum tipo de criatura sensual. Por alguma razão inexplicável, no sonho, os seus companheiros de acampamento fugiam esbaforidos, como ratos diante do ronronar de um gato esfomeado. Mas ele ficara. Sentiu retornar à boca o estranho gosto de água de mina, de caneca de latão, de colher oxidada. Gosto rico em ferro.

“Devo ter mordido o lábio, ou estou com as gengivas inflamadas outra vez.”

A água começou a formar bolhas na caneca.

“Onde estará o maldito pote de café?”

Saiu tateando pela escuridão, tentando que a pouca luz das labaredas lhe mostrasse o caminho. Então sentiu novamente arrepiar a nuca, uma sensação que lhe lembrou o sonho. Virou-se assustado, poderia ser uma onça. Mas não era, era só uma mulher. Uma mulher bonita, embora não extraordinariamente bela. A mulher do sonho — ora bolas! Tinha um ar de camponesa, as unhas malfeitas, o cabelo ligeiramente emplastado de umidade.

— De onde você veio?

A mulher não deu sinais de compreender o que ele dizia. Repetiu a pergunta. Ela pelo menos pareceu perceber que tinha sido uma pergunta. Disse-lhe algumas frases em uma língua desconhecida:

— Nu înţeleg ce spui, draga.

— Hem? O que…?

Então era uma gringa. Inútil esperar que ela mantivesse uma conversa normal. Aproximou-se do fogareiro e finalmente viu a lata de café, tombada junto à mochila de um dos companheiros de acampamento. Abriu-a e já se preparava para derramar um pouco na água que já estava prestes a ferver quando resolveu tentar alguma mímica para falar com a estranha. Esfregou a mão no braço, tentando dizer que estava frio e apontou-lhe a água quente e o café.

— Café?

— Da, o cafea mica. Vă rugăm să…

O café ficou pronto instantaneamente, tal como a embalagem prometia. Só não ficou bom. Mas no alto da serra qualquer bebida quente era maravilhosa àquela hora da madrugada velha.

Por alguma razão não conseguia evitar os arrepios na nuca e os nós na garganta. Tinha vontade de correr, de chorar ou de pelo menos dar um berro animalesco. Mas não o fazia. Não sabia porque deveria. Não conseguia entender como se segurava. Terminou de tomar o café, ainda esfregando os olhos para espantar o sono. A mulher ali estava.

Aproximou-se dela com cuidado e curiosidade e loucura. Ousou tocar seu queixo duro, era frio como uma das pedras. Puxou seu rosto para cima e mirou naqueles olhos que redemoinhavam como o Estige e o Aqueronte. Veio puxando lentamente para perto de si aqueles lábios rasgados na carne pálida. Ela não resistiu, ainda que o deslocar de seu rosto fosse pesado, e voluntário. Havia momentos em que até lhe parecia que era o queixo dela que empurrava a sua mão.

Dois pares de lábios se tocaram. A troca de calor parecia provocar oscilações coloridas em sua imaginação. Lembrou-se de uma letra de música, queria que o beijo nunca terminasse. “Estamos, meu bem, por um triz, pro dia nascer feliz.”

Seus olhos queriam fechar-se, mas sua mente, arrepiada como os cabelos de um cavalo assustado por um lobo, insistia que não. Então, por uma sorte destas que ampara aos tolos, conseguiu contemplar a própria mão e notou nela veias saltadas que antes ela não possuía. Então o sonho voltou com mais força à sua lembrança e descobriu por que todo o seu ser queria gritar e fugir da presença da estranha.

Atirou-se ao chão como pôde, desprendendo os seus lábios dos dela. Mas ela não o soltou. Apenas conseguiu, por efeito da surpresa, fazer com que o equilíbrio de ambos oscilasse no mesmo instante. Caíram sobre o fogareiro, o gás escapou e envolveu-os em chamas, brevemente. Ela o soltou, deixando um rugido demoníaco sair de sua boca. Enquanto ela gritava, rolou sobre a grama úmida, apagando as chamas. Ela batia as mãos contra as vestes negras, completamente atarantada.

Se tivesse juízo, teria fugido como os demais. Teria aproveitado o sol que dentro em pouco assombraria a paisagem, como prometia a nesga láctea no horizonte. Mas como fazer isso com aquela beldade? Encheu a caneca de água fria da fonte e atirou sobre ela, apagando as chamas.

Ela se calou, intrigada. Uma fumaça branca ainda subia do tecido, a pele estava avermelhada em vários pontos, talvez do fogo, talvez do jorro de energia adquirido. Um forte cheiro de cabelo queimado empestava o ambiente.

— De ce am fost salvat? De ce am fost salvat, draga?

Um comprido raio de sol atravessou as nuvens e atingiu a encosta da montanha desolada. A mulher deu um gemido e cobriu o rosto com os cabelos falhados pelas queimaduras. Depois disso Manuel não se lembra mais de nada. Lembra-se apenas de ter acordado com tapas no rosto e gotas de uma água fria que parecia flocos de geada que derretiam com o calor de sua pele.

— Quem é o veado que está me molhando…?

Nem acabou a frase. Os seus amigos estavam todos em volta, assustados.

— Que merda foi essa que você fez, Manuel?

O fogareiro estava derrubado, e um largo trecho de grama seca estava queimado.

— Vocês não tinham ido embora?

— Embora para onde? Acordamos com os seus gritos, maluco!

Manuel já se erguia, confuso e imaginando que estava louco. Então sentiu outra vez o arrepio na nuca, com uma força tão grande que era como se lhe socassem pelas costas: como não reparara antes em tantos fios grisalhos e tantas rugas de expressão no rosto dos colegas de faculdade? Olhou a própria mão, vincada de veias. E notou, com um horror que nem teve a coragem de mencionar, pedaços de tecido preto ao lado da pedra à beira do barranco.


22
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 16:00link do post | comentar | ver comentários (1)

Recuando mais no tempo, nos porões do site do André Dahmer, eis esta preciosidade, digna de comentários indizíveis. Quantos de nós não nos sentimos assim, às vezes?

O clima de cordialidade não disfarça um fato: os personagens desta tirinha não são felizes. Tanto “Romano” como seu colega são esvaziados (“descarnados”, na verdade) pela dedicação extrema a realizações que não são de seus projetos pessoais. É fácil imaginar porque eles se sentem assim: a falta de sentido é um mal que acomete a muitas pessoas no mundo de hoje, pessoas que não encontram uma razão para olhar-se no espelho e ver-se como indivíduos perfeitos e livres, dotados de uma missão. Eis o problema dos pobres esqueletos desta tirinha: eles vivem para o trabalho, somente para o trabalho.

No ônibus, o personagem da primeira tirinha encontra um homem que exibe orgulhosamente o próprio filho, dizendo “já trabalha comigo”. A criança, desde cedo, se acostuma a uma vida sem sentido, uma vida apenas de trabalho. All work and no play makes Jack a dull boy. Esta situação, porém, não causa aversão, mas orgulho. Tanto assim que, no quadrinho final, o homem exausto que deixou a repartição na sexta-feira “morto de trabalhar”, um pouco antes de desfalecer em seu caixão, à luz da lua, recomenda ao filho que ele “arrume um estágio logo”. O estágio, rito de passagem, é uma espécie de circuncisão mental a que todos são obrigados. Trabalhando desde cedo o garoto não terá tempo para desenvolver fantasias, tornar-se-á “seco”, “descarnado”, “morto de trabalhar”.

Este não é um quadrinho que exige muita reflexão, não há aqui muita filosofia. Apenas muita amargura e realismo, ainda que apresentado sob a capa do fantástico, esta licença poética que nos permite penetrar mais profundamente na realidade.


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