Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
23
Fev 13
publicado por José Geraldo, às 11:13link do post | comentar
Onde algo é sacralizado, é natural que surjam os contestadores. O iconoclasmo é uma espécie de rito de passagem  para os jovens e uma marca de «independência» dos mais maduros. Provocar essa irreverência é uma maneira eficaz de manipular as pessoas: tendo um judas para chutar o indivíduo acredita que é um contestador, e obedece aos comandos, subreptícios ou explícitos, e segue mais ou menos na direção que interessa ao provocador. Identificado um alvo tido por muitos como sagrado, é muito fácil reunir uma turba de pessoas para cuspir nele, com a desculpa de que estão fazendo a revolução.

Não, eu não estou falando da religião. Estou falando do conceito de nacionalidade. Durante muito tempo nos foi vendida a ideia de que o nacionalismo era uma espécie de «doença infantil» dos estados,  e que a adesão a uma irresistível «globalização» marcaria nossa transição desta metafórica infância para uma posição em pé de igualdade diante das nações «adultas». O grande exemplo era o da Comunidade Europeia, onde nações separadas por séculos de ódios estavam se juntando para cooperarem rumo a um futuro comum. Ser um nacionalista era algo como ser fascista ou, pior, um equivalente moderno ao homem das cavernas hirsuto e renitente diante das propagandas da Gillette.

Pois bem, o tempo passou, a Comunidade Europeia entrou em crise, países mais afoitos em sua crença acabaram liquefeitos e entregues às harpias. Democracias jovens e instáveis, como as da Grécia e da Espanha, se revelaram jogos de cartas marcadas e a suposta irmandade dos povos acabou abrindo as portas para o saqueio em favor de nações mais estáveis, especialmente a Alemanha e a Grã Bretanha. Tendo renunciado às suas moedas e fronteiras nacionais, países como Itália, Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda acabaram incapazes de controlar a mobilidade de pessoas e de capitais, expondo-os, sempre instantaneamente, aos humores de um mercado financeiro que trabalha a prazos cada vez mais curtos, chegando a consumar compras e vendas a intervalos de minutos para obter ganhos de milésimos de centavos por lote de papeis.

Os estragos desse corte impensado da cerca que dividia espaços desiguais não foi restrito à economia, porém, a cultura sofreu e sofre com esse impacto, através da intensificação do impacto da cultura de massas. Se até os anos 1980 um best-seller americano ou britânico demorava meses ou anos para chegar às livrarias brasileiras, hoje ele está aqui em poucas semanas. As traduções, que eram feitas, muitas vezes, por escritores de renome (como Clarice Lispector, Nélson Rodrigues, Autran Dourado, Orígenes Lessa, Monteiro Lobato, Adonias Filho e outros), passaram a ser feitas, muitas vezes, por gente que não sabe nem conjugar o pretérito mais que perfeito. Como resultado, uma obra dispensável (como essa em que você está pensando, mas que não vou nomear para não atrair a ira dos fãs) chega ao nosso mercado antes que saia de moda, revelando sua irrelevância. Antes tínhamos acesso aos livros que mostravam ser sucessos duradouros, mesmo que literariamente sofríveis. Hoje qualquer peidinho que venda alguma coisa na Barnes and Noble recebe uma tradução nacional. E não são escritores que estão sendo convocados para fazer essas traduções, mas gente que ganha centavos por lauda e cujo trabalho é revisado por outros que não sabem nem para que serve uma vírgula. A qualidade péssima das traduções é um fato. A pressa é inimiga de qualquer parâmetro de qualidade.

E ninguém acha que isto está errado porque há um desrespeito generalizado pela língua portuguesa. Desrespeito que se aproveita desse iconoclasmo seletivo e fácil e que alimenta uma cultura de submissão. A tradução não é mais vista como uma recriação literária de um texto, mas como um trabalho reles de interpretação destinado aos boçais que ainda não sabem falar inglês. O ideal seria que todos lêssemos os originais, isso até facilitaria para as editoras multinacionais, que poderiam simplesmente importar os livros impressos nos EUA ou na Grã Bretanha, sem terem o incômodo de traduzi-los para nossa língua primitiva. Ler no original é um distintivo de alguma forma de superioridade. A língua estrangeira, por ser excludente, torna-se uma ferramenta política de valor.

O desrespeito ajuda a colonização cultural, mas porque ele ajuda a manter relações de classe, distinguindo entre os recém chegados ao consumo cultural e os que obtiveram uma educação bilíngue, ele acaba sendo alimentado. O iconoclasmo parece promissor porque o ensino de português no Brasil é uma coisa odiosa, praticada por ignorantes pseudocientíficos que brandem a gramática de uma forma que parece que as regras foram feitas para humilhar os outros. «Professores» preconceituosos, reacionários, idealizando um idioma mumificado em livros, desatentos aos fenômenos linguísticos em curso e obcecados em negar algo que a ciência já sabe há mais de oitenta anos: a dicotomia entre a língua escrita e a falada. É muito fácil odiar o Professor Pasquale e seu DOPS linguístico, o Professor Napoleão e o seu nazismo gramático, vários outros com seus preconceitos, limitações e desprezo pelo povo.

Desprezar o povo e desprezar a língua são atos contínuos. Não é possível respeitar o primeiro desprezando o segundo, e nem vice versa. O suposto respeito que os gramáticos normativos têm pela língua idealizada em que crêem traz embutido o desprezo pelo povo que a «corrompe». Mas o desprezo pelo povo significa o desprezo pela verdadeira língua, em nome do amor a uma entidade abstrata, calcificado em dicionários e antologias. O amor ao que não existe é um comovente testemunho do conservadorismo ignorante.

Então, sabendo que o ensino formal da gramática normativa é uma violência, fica fácil usá-lo para desqualificar não o reacionarismo linguístico de gente que considera a língua coloquial uma «corruptela», mas a própria língua. Isso nos conduz a um caldo de cultura no qual muitos jovens crescem desprezando o português pelos mais variados pseudomotivos, simultaneamente a uma valorização exacerbada do inglês e até mesmo de idiomas estrangeiros que parecem tão alheios a nossa realidade, como o japonês ou o alemão.

Dada a importância atribuída à língua estrangeira, chega-se ao absurdo de confinar o português a um papel estritamente doméstico, o que foi exatamente o processo através do qual línguas antes pujantes, como o galês, o basco, o dálmata e o gaélico entraram em extinção. Dizem que precisam do português para comunicarem-se com o vizinho, mas do inglês para falar com o mundo. No fundo sonham com o dia em que poderão falar em inglês com o vizinho. Sente-se que para muita gente ainda ter que falar português é só um incômodo necessário.

Os argumentos políticos são os mais absurdos. Há pessoas que acreditam que não devemos resistir à imposição da cultura de massas anglo americana e seu idioma somente porque, em algum momento do passado, o português nos foi também imposto. O encontro desse «pecado original» de nossa identidade nega o seu valor diante de um processo que pode suprimi-la?

Para diminuir ainda mais a importância do português como veículo de identidade nacional, há pessoas que procuram negar a realidade do predomínio da colonização portuguesa, dizendo que «a maioria» dos colonos brancos do Brasil é de italianos, alemães e outros povos europeus. Claro que este argumento só existe onde existe muita ignorância ou então em cidadezinhas do interior onde predominam tais comunidades de colonos. Uma pessoa com conhecimento amplo do país sabe muito bem que o elemento luso é o único que está presente em todas as regiões, predominando na maioria das cidades, exceto naquelas onde houve um influxo excepcional de colonos europeus. Nossos sobrenomes são evidência disso.

O tal iconoclasmo a que me refiro se expressa quando se procura justificar a aceitação da imposição cultural estrangeira com uma negação de uma suposta «obrigação moral de ter alguma espécie de amor pela língua portuguesa». Obviamente não podemos esperar que todos tenham as mesmas fidelidades e cumpram igualmente suas obrigações morais, mas uma pessoa que rejeite tais sentimentos em relação à sua própria língua os rejeita também em relação a si mesmo, pois nega o valor de algo que lhe é próprio enquanto empresta tal valor a algo que é alheio. Não é indício de maturidade aceitar a submissão a outrem.

A evidência de que os mesmos que negam esses laços afetivos com o português os transferem para o idioma estrangeiro se revelam quando essas pessoas dizem que o inglês tem «palavras mais legais» que o português, o que é uma forma de dizer que se sentem mais tocadas em suas sensibilidades pela fonética e pela morfologia de outro idioma. Para essas pessoas, o português é uma língua «desengonçada» e «difícil». E por temerem soar desengonçadas e difíceis elas procuram usar o inglês o máximo possível, em seus nomes (muitas vezes escrevendo errado), em suas gírias, no que puderem.

Outros justificam seu desprezo enxergando no inglês qualidades que o português supostamente não teria: «uma rica literatura» (argumento muito usado por pessoas que não têm muito hábito de ler literatura, claro), uma tradição mais antiga (argumento muito usado por quem não pesquisou a história de ambos os idiomas, e portanto não sabe que o inglês moderno remonta ao fim do século XVI enquanto português moderno data do início do século XV) ou uma maior adaptabilidade.

Entre essas qualidades do inglês estaria a sua «facilidade», enquanto o português seria muito difícil. Certamente facilidade é um conceito plástico, que se moldará à mão de quem o manipule. Dependendo de quais características resolvamos comparar, é possível provar que quase qualquer idioma é mais fácil que outro. Mas é fato que a percepção do português como uma língua extremamente difícil é algo que existe mais na cabeça do brasileiro do que na realidade prática. Estudos internacionais sempre classificam o português como uma das doze línguas mais fáceis de se aprender para falantes de qualquer língua indo-europeia. As razões para isso são várias: vocabulário predominantemente derivado do latim, resultando em grande número de cognatos com vocábulos internacionalmente conhecidos, sistema ortográfico simplificado, gramática sem declinação nominal e sem distinções honoríficas, alfabeto latino, abundância de material de estudo etc. As pessoas que acham português difícil certamente nunca nem tentaram aprender línguas como alemão, russo, estoniano, húngaro, grego, polonês, árabe, coreano, mandarim, hindi, finlandês, irlandês, tcheco ou romeno.

Sabendo que o português é internacionalmente reconhecido como uma língua fácil de aprender, conclui-se que vê-lo como difícil é pura má vontade, desinformação ou manifestação de uma dificuldade para o aprendizado de línguas que se manifestaria em relação a qualquer outra língua. Mas não podemos nos esquecer, como já disse em artigo recente, que o nosso sistema educacional possui um status de verdadeira praga do Egito e que, como começamos dizendo acima, a praga do gramaticismo normativo grassa sem freios por suas campanhas.

O certo é que, no frigir dos ovos, não interessa ao Brasil e nem aos brasileiros que a nossa língua seja relegada a um plano secundário, que nossa literatura não seja defendida e que nossa cultura seja descartada. Precisamos trazer o português para mais perto de nosso dia a dia, dar mais peso à nossa literatura e defender nossa cultura. Isso, claro, não se fará com leis, nem cotas e nem exigências. Precisamos é consertar nosso sistema educacional, para que futuras gerações de jovens frustrados por não conseguirem aprender corretamente sua língua não cresçam com desprezo por ela e sua tradição.

10
Out 12
publicado por José Geraldo, às 21:38link do post | comentar | ver comentários (1)
Tradução de um trecho avulso de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (obra que se acha em domínio público, tradução feita por mim, ao improviso, já aviso). Com um título novidadoso, homenageante aos recentemente condenados. Dedicado aos que foram condenados, independente de serem ou não culpados, não pelo que fizeram, mas pelo que são.

Disse-lhe o gato
ao rato: «Venha
logo seu bobo
jogarmos
um jogo:
Vamos
ambos
à lei.
Eu lhe serei
promotor
e tu réu.
Venha agora
o tribunal
não demora.
Julgaremos
teu mal
no final.
É que
hoje estou
sentido
e vazio
e mal consigo
o que sirva
para fazer.»
Disse-lhe
o pobre rato
ao gato:
Um júri assim
de improviso,
companheiro,
sem juízo e
nem jurado,
tão sorrateiro
seria errado,
uma perda
de tempo.»
«Júri
e juiz
posso eu
mesmo ser»,
Explicou,
esperto,
o bichano.
«Farei
de tudo
no ato,
que a ti, rato,
réu nato,
condenará,
sem pena,
ao prato.»
Permita a reprodução em qualquer meio, com crédito ao tradutor, que soy yo, se possível sempre com link.

26
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 11:05link do post | comentar | ver comentários (3)

Eu sempre achei que trabalhos de fôlego mais longo são difíceis de terminar. Levei nove anos para escrever meu primeiro romance, “Praia do Sossego”, que agora está finalmente sendo publicado. Levo já mais de três anos trabalhando no meu segundo romance, “O Reino Esquecido”, que está a três quartos de ser terminado (mas exatamente o quarto que falta é o mais difícil). Levo já mais de dois anos trabalhando no meu terceiro romance, “Serra da Estrela”, que ainda está longe da metade. Curiosamente já terminei o meu quarto romance, “Amores Mortos”, isso porque o construí a partir de histórias anteriormente escritas de forma independente, mas utilizando um mesmo personagem principal.

Em conjunto esses romances terão aproximadamente mil páginas páginas (225 delas de “Praia do Sossego“ e 240 de “Amores Mortos”, “Serra da Estrela” já tem 140 e “O Reino Esquecido” deverá passar de 250 ainda este ano; porém somente o primeiro deles está medido em termos de “livro” mesmo, os outros ainda estão em laudas, e devem ficar maiores, visto que “Praia do Sossego“ teve 196 laudas).

Citei esses números para lhes dar uma ideia do tamanho do desafio que está sendo traduzir “A Casa no Fim do Mundo”. O romance de William Hope Hodgson não é nada pequeno. A sua versão original em inglês, publicada em formato americano, tem 160 páginas. Traduções do inglês para o português costumam ficar entre dez e quinze por cento mais longas (devido à estrutura sintática de nossa língua). Estimo que o tamanho em laudas da tradução deva ultrapassar duzentas, e a publicação em formato brasileiro deverá ficar ainda mais grossa que “Praia do Sossego”. A vantagem é que não precisarei imaginar a história, me bastará encontrar as melhores palavras para traduzi-la.

Comecei esse trabalho em março, durante minha licença médica para operar um cálculo renal “encroado”. Ainda durante a licença, fui até o capítulo doze. De lá para cá (segunda metade do mês de abril, mais maio e junho) consegui avançar até o capítulo dezoito (que estou começando a traduzir exatamente hoje). Publicando à razão de um capítulo por semana e traduzindo um capítulo a cada quinze dias, em nove semanas (aproximadamente dois meses) estarei publicando o capítulo vinte e traduzindo o vinte e um. Em onze semanas o ritmo de publicação me alcançará, exatamente no capítulo vinte e dois.

Isso quer dizer que eu preciso melhorar o ritmo, e logo, ou então perderei o ritmo regular de publicar um novo capítulo toda terça feira. E o romance tem vinte e oito capítulos!

O problema é que traduzir já está me ocupando quase todo o tempo que deveria estar dedicando a escrever. Não é nenhuma novidade para vocês que me leem que eu sou um autor amador, que só posso escrever nas horas vagas. Desde que publiquei o primeiro capítulo, em 16 de abril já se passaram setenta dias, e a minha produção de textos novos foi a seguinte: seis crônicas, três textos de crítica, três contos, dois poemas, uma tradução. Comparando com qualquer outro período desde o início desse blog, estou em um ritmo de criatividade muito menor. Excetuando textos antigos republicados (que foram o grosso da produção nos primeiros seis meses), este blog vinha mantendo um ritmo muito melhor. Vamos comparar com os primeiros setenta dias do ano, entre 1 de janeiro e 11 de março: oito crônicas, um texto de crítica, nove contos, um poema, uma tradução.

Pode parecer uma redução pequena, apenas cinco textos, mas há que considerar que o tamanho médio dos textos produzidos nos primeiros setenta dias do ano era muito mais longo. Pelo menos três contos alcançam fácil as vinte páginas. Um deles até estava dividido em três partes, cada uma delas com pelo menos nove páginas.

Fiz este cálculo para lhes dar uma ideia do quanto é trabalhoso traduzir. Um trabalho que muitas pessoas não reconhecem. Um trabalho que é até meio braçal, de tão penoso, mas que exige uma sensibilidade semelhante à da criatividade, na escolha de palavras e na construção das frases. Sem falar que ainda terei de revisar tudo, quando tiver terminado, a fim de poder publicar.

Pense nisso da próxima vez em que pegar um livro traduzido: verifique o nome de quem traduziu, conheça o nome do sujeito. Se gostar, procure por outros livros traduzidos também por ele. Vamos valorizar o trabalho dos tradutores. Eu mesmo só tive essas ideias depois que me dispus a traduzir um romance e pude ver o quanto dá trabalho. Meu respeito a todos os tradutores profissionais deste país, graças a quem podem ler obras oriundas de outras literaturas.


19
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 17:49link do post | comentar
Há cem bilhões de flocos de neve girando na fúria do cosmosCada um deles é uma galáxia, um bilhão de estrelas ou mais,E cada estrela, um milhão de terras, um gigantesco sol ardenteNo alto de algum céu, talvez brilhando sobre alguém.E bem no fundo de um floco de neve, flutuo em silêncio.Eu sou infinitesimal, impossível de ver.Sentado na pequenina cozinha de meu lar pequenino,Contemplo através da janela um universo de flocos de neve.Mas minha alma é muito maior do que este meu minúsculo eu,Estende-se pela nevasca, como uma rede pelo mar adentro.De todos os lugares adoráveis aonde meu corpo não pode ir,Eu toco a beleza e a abraço no seio de minha alma.E é tão breve e rápida esta minúscula vida minha,Como uma única semínima na marcha do tempo.Mas minha alma é a música, e vem desde tempos antigos.Antes de vestir a face humana, antes de levar meu nome.Porque minha alma é muito mais velha que o meu ser fugidioE sabe descrever a aurora do tempo como memórias de infância.Ela é uma fagulha produzida na escuridão tempos atrás,O que meu corpo esqueceu, continuo a lembrar em minha alma.Então vivemos juntos a vida, minha alma gigante e o mínimo eu.Uma aparência de eternidade, outra fumaça soprada na brisa.Uma oceano que permanente, outra uma onda súbita e fugaz.Contando as galáxias flocos de neve, juraria que somos iguais.Oh, minha alma pertence à beleza, me leva a alturas sublimes,Ensina-me histórias sagradas, santifica minha vida minúscula,Faz ponte entre as eras, dissolve as fronteiras dos ossos,Pinta para sempre uma face corajosa nesse momento passageiro.

11
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 18:25link do post | comentar | ver comentários (6)
Inicio hoje um projeto de longo prazo, de traduzir para o português o romance “The House on the Borderland”, publicado em 1907 pelo inglês William Hope Hodgson. Trata-se de uma obra obscura da literatura gótica britânica (a meu ver imerecidamente esquecida), que está de certa forma relacionada a dois outros textos do mesmo autor, merecedores ambos de mérito literário: “The Night Land” (A Terra Noturna) e “The Boats of the Glen Carrig” (Os Botes do Glen Carrig) — uma obra de ficção científica e um romance de capa e espada mesclado com fantasia e piratas.

Acredito que as três obras tenham grande potencial de atrair leitores modernos, especialmente porque, ao traduzi-las para o português, tenho a oportunidade de remover o principal defeito do original: o estilo excessivamente arcaizante e empolado que o autor empregou naquelas duas, ou a relativa falta de polimento que caracteriza “A Casa no Fim do Mundo”. Tais defeitos fazem com que muitas pessoas que se interessariam pelo tema em si destas histórias acabem se afastando. Mas uma tradução é sempre uma oportunidade de recriação do original. Embora não me julgue à altura de um Eça de Queirós, proponho-me a fazer pelas obras de Hodgson algo análogo ao que o genial autor de “Os Maias” e “A Relíquia” fez com “As Minas do Rei Salomão”, do obscuro H. Ridder Haggard.

Esta postagem servirá de índice para que os interessados na leitura possam acompanhar o progresso, em estilo folhetim, de meu trabalho de tradução.
Introdução do Manuscrito pelo AutorCapítulo I — A Descoberta do ManuscritoCapítulo II — A Planície do SilêncioCapítulo III — A Casa na ArenaCapítulo IV — A TerraCapítulo V — A Coisa no AbismoCapítulo VI — As Coisas SuínasCapítulo VII — O AtaqueCapítulo VIII — Depois do AtaqueCapítulo IX — Nos PorõesCapítulo X — Os Tempos de EsperaCapítulo XI — A Busca nos JardinsCapítulo XII — O Abismo SubterrâneoCapítulo XIII — O Alçapão no Porão MaiorCapítulo XIV — O Mar do SonoFragmentos [continuação do capítulo XIV]Capítulo XV — O Ruído na NoiteCapítulo XVI — O DespertarCapítulo XVII — A Redução da RotaçãoCapítulo XVIII — A Estrela VerdeCapítulo XIX — O Fim do Sistema SolarCapítulo XX — Os Globos CelestesCapítulo XXI — O Sol EscuroCapítulo XXII — A Nebulosa EscuraCapítulo XXIII — PimentaCapítulo XXIV — Passos no JardimCapítulo XXV — A Coisa da ArenaCapítulo XXVI — O Ponto LuminosoCapítulo XXVII — ConclusãoLuto
Algumas Palavras Sobre a Obra de William Hope Hodgson
O romance inicia com a seguinte nota:
A partir do Manuscrito descoberto em 1877 pelos Srs. Tonnison e Berreggnog nas Ruínas ao Sul do Povoado de Kraighten, no Oeste da Irlanda. Aqui transcrito, com Notas.
ATUALIZAÇÃO: A versão definitiva, que disponibilizarei em formato e-book, terá o título «A Casa no Limiar», conforme sugerido por um leitor. 

ATUALIZAÇÃO em 20 de janeiro de 2013: Disponibilizado e-book em formato ePUB.

09
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 16:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Tudo começou inocentemente. Comecei a pensar quando frequentava certas festas, de vez em quando, como uma maneira de me enturmar. Inevitavelmente, porém, um pensamento levava a outro e não demorou que eu me tornasse mais do que um pensador social.

Comecei a pensar sozinho — “para relaxar”, conforme acreditava, mas eu sabia que isso não era verdade. Pensar se tornava cada vez mais importante para mim, até que eu comecei a pensar o tempo todo.

Eu comecei a pensar enquanto trabalhava. Eu sabia que pensar e trabalhar não são compatíveis, mas não conseguia parar.

Comecei a evitar os meus amigos que não pensavam, para que pudesse ler Kafka ou Thoureau no intervalo do almoço. Eu voltava para o serviço tonto e confuso, perguntando-me o que exatamente significava o meu trabalho e o que estava fazendo no mundo.

As coisas tampouco estavam bem em casa. Certa noite eu desliguei a televisão e perguntei à minha esposa o sentido da vida. Ela teve que passar aquela noite na casa da mãe, de tão amedrontada que ficou.

Logo adquiri a reputação de um pensador compulsivo. Um dia meu patrão me chamou ao escritório e disse-me: “Cara, eu gosto de você e me dói dizer isso, mas seus pensamentos se tornaram um problema real. Se você não parar de pensar aqui no emprego, você terá que encontrar outro emprego.” Isto me deu muito em que pensar. Eu voltei para casa cedo depois de minha conversa com o patrão.

— Querida — disse ao chegar em casa — andei pensando que…

— Eu sei que você anda pensando — ela disse. Pensando demais para que alguém possa suportar viver com você. Quero divórcio!

— Mas, querida, não pode ser tão grave assim!

— É muito grave — ela disse, tremendo o lábio inferior. Você pensa tanto quanto professores, e professores não ganham quase nada. Então, se você continuar pensando, acabaremos sem dinheiro.

— Este é um silogismo falacioso — eu lhe disse, impaciente, e ela começou a chorar. Foi demais para mim. Meti o pé na porta e saí dizendo que ia para a biblioteca.

Fui até a biblioteca sentindo uma vontade enorme de ler Nietzsche, ouvindo a Cultura FM no rádio. Eu acelerei até o estacionamento e corri até as portas de vidro… mas elas não se abriram. A biblioteca estava fechada.

Até hoje eu acredito que um Poder Superior estava cuidando de mim naquela noite. Ao cair de joelhos no chão diante do vidro insensível, implorando por Zaratustra, um cartaz me chamou a atenção: “Amigo, pensar demais está arruinando a sua vida?” — ele perguntava. Você provavelmente conhece esta frase: ela é encontrada nos cartazes padronizados dos Pensadores Anônimos.

E ela é a razão pela qual estou aqui hoje: eu sou um pensador em recuperação. Nunca perco um encontro dos P.A. e sempre compareço para assistir programas deseducacionais. Na semana passada foi “Big Brother”. Depois nós compartilhamos experiências sobre como evitamos pensar desde o encontro anterior.

Eu ainda tenho o meu emprego, as coisas melhoraram muito em casa. A vida parece… mais fácil. De alguma forma o mundo me parece menos complicado desde que eu parei de pensar.

Autor Anônimo. Traduzido do site “Agent Orange

13
Nov 10
publicado por José Geraldo, às 19:27link do post | comentar

Face aos protestos recebidos de nossos leitores quanto ao excesso de conteúdo pornográfico e blasfemo de nossa tradução da obra infantil “A Sweet Old Lady”, a que intitulamos “Uma Doce Velhinha”, tivemos de efetuar uma revisão do trabalho realizado pelo tradutor contratado para este fim. O escrutínio revelou algumas falhas de tradução, que foram as causadoras das passagens controversas que andaram circulando pela imprensa.

Logo no primeiro parágrafo, é preciso notar que a Senhora Barnes não era “dependente de uma cana”, pois em nenhum momento no livro ela se embriaga de cachaça. Que fique bem claro que ela “se apoiava em uma bengala” (cane).

Não existe nenhum racismo no terceiro parágrafo, pois o melhor amigo da Senhora Barnes, o motorista de táxi jamaicano Jonathon Peters, não andava “sorrateiro como um macaco”. Em vez disso esse simpático e paternal cavalheiro, que tanto ajudou os netinhos da Senhora Barnes a construírem o seu aeromodelo, tinha por hábito caminhar “suavemente como um monge” (monk).

Outro trecho de suposto racismo contra Peters, na página 92, também se deve a um mal entendido. As crianças não voltam da casa de Peters, trazendo o aeromodelo, cobertas de “sujeira de negro”, mas sim de “poeira preta” (black dirt). Quem leu o livro com atenção terá percebido que o trabalho de construção do aeromodelo foi feito no quintal, que estava seco e empoeirado. Uma poeira obviamente escura devido à fertilidade do solo na região das Apalaches.

Não procedem tampouco as acusações de pedofilia que foram feitas ao professor Williamson: ele não disse que queria ver o traseiro da Senhorita Mandelson (que tinha somente onze anos), ele apenas disse que queria vê-la de volta (“I want to see you back”). Considerando que a matéria de Williamson era de matrícula facultativa, era natural que ele tentasse convencer a garota a voltar.

Tampouco procede que a Senhorita Mandelson teria ficado excitada em ouvir o inexistente convite a um ato libidinoso, pois ela não respondeu que “mostraria a parte de cima”, mas sim que apareceria (“show up”).

Causou-nos espécie o ódio dirigido ao professor de educação física, o Senhor Crane, até notarmos a necessidade de esclarecer que ele não obrigava as alunas a correr mostrando os peitos, mas apenas as fazia correr lado a lado (abreast), como normalmente se corre em provas curtas de atletismo.

Crane certamente era um professor rigoroso e é um dos antagonistas da história, mas não por suas atividades docentes. É um erro supor que ele estuprou Peter Wordsworth durante os treinamentos de ciclismo. Na verdade Wordsworth gostava tanto de pedalar que comentou, ao sair de seu primeiro treinamento de ciclismo que se sentira “arrebatado” (“raptured”) durante as atividades. Não existe nenhum cunho sexual na frase.

Embora muita gente tenha protestado contra o baixo calão da afirmação da Senhora McAllister, na página 38. A professora de piano jamais disse às crianças que gostaria de ver um pinto outra vez. De fato ela só estava com saudade de seu povo, pois “picto” é o apelido dos habitantes das regiões costeiras da Escócia, onde ela nasceu e aonde não tinha ido fazia vinte anos.

A mesma professora protagoniza outro episódio espúrio, na página 60, quando as crianças a veem padecendo de uma paixão não correspondida por Crane. As crianças não disseram que ela parecia uma “vadia bonita”, mas sim que ela parecia “bastante distraída” (“pretty vacant”).

Por outro lado, é desastroso que tenha sido traduzido que o estudante japonês de intercâmbio, Satoru Hamashita, se realizava quando brincava com um “cacete”. Ao ler o livro, você perceberá que era exímio jogador de beisebol e que, portanto, o que lhe realizava era jogar como rebatedor (o cara que usa o bastão para rebater a bolinha).

O que a bondosa senhora Atwood promete dar ao Senhor Crane, quando ele está convalescendo no hospital é “carinho em um momento difícil” (caress under duress) e não uma “carícia na coisa dura”.

Outros trechos menos ofensivos à moral (mas certamente à inteligência) ocorrem em outros locais e também merecem atenção.

O filho do Diretor Johnson se chama Damien (equivalente a “Damião”) portanto, quando o Senhor Johnson o ouve chegar da escola chorando ele apenas diz “é Damien” e não “é o demônio”.

Ted Kelly “fraturou a tíbia” (“shin”) e não “quebrou a cara” (“chin”).

Aparentemente o tradutor desconhece que “Chinaman” (chinês) e “cinnamon” (canela) não são apenas variações de uma mesma palavra.

Os leitores devem ficar advertidos, por exemplo, que não foi o “inferno” que caiu sobre a escola na antevéspera da Páscoa, mas granizo (“hail”). Inferno é o que os nossos advogados tentarão fazer cair sobre o tradutor.

P.S. Agradeceríamos a ajuda de alguém plenamente fluente em polonês para revisar a tradução das famosas “Memórias Achadas Numa Banheira”, de Stanislaw Lem. O conteúdo sexualmente explícito da tradução que temos em mãos nos faz desconfiar que possa ter havido algum problema em relação ao original. Seria muito óbvio que o protagonista usasse a banheira com a finalidade descrita na tradução — e a obra não seria considerada de ficção científica.

assuntos: ,

03
Nov 10
publicado por José Geraldo, às 05:29link do post | comentar

Aprender coisas novas nos faz pessoas melhores, tal é o princípio básico que justifica que tanto seja investido, pelos nossos governos ou por nossas famílias, para que frequentemos escolas e adquiramos diplomas. Muitas vezes, o que é aprendido na «vida estudantil» não tem importância imediata; outras vezes, perturba o equilíbrio do aluno com a comunidade em que ele vive; outras, por fim, ele afeta o equilíbrio do próprio aluno, hipertrofiando certas áreas de sua personalidade enquanto reprime outras. Por esta razão, existe uma simbologia explícita na escolha do currículo pelo Estado e a definição de prioridades pela família ou pelo aluno: a determinação de ensinar isto, mas não aquilo é tão ideológica quanto a decisão de estudar com afinco uma matéria, mas não outras. Em ambos os casos, os valores envolvidos ficam razoavelmente transparentes.

Em nosso país dá-se uma importância enorme ao ensino de matemática e de português. Durante boa parte da «vida estudantil» somos bombardeados com cinco aulas de cada durante a semana, dez dos vinte e cinco horários disponíveis (incluindo os horários que ficam inexplicavelmente vagos) são ocupados por estas matérias, cinco aulas para cada uma. Esta ênfase pode não ser suficiente para evitar que a maioria de nossos estudantes (três quartos, na verdade) saia da escola com sérias dificuldades para entender textos simples, como vemos nesta reportagem da Folha de São Paulo ou neste estudo da UBE, mas é suficiente para inculcar nos alunos que português e matemática são matérias importantes e que história, geografia, literatura, ciências etc. não são.

Mas tudo se torna ainda mais difícil quando se adiciona a questão do bilingualismo ao complexo problema da incompetência generalizada da escola brasileira (sim, não existe palavra melhor para definir uma instituição que falha em 74% dos casos). Embora o Brasil seja um país de uma língua só, o domínio do inglês é visto, há muitos anos, como um diferencial para a construção de uma carreira de sucesso. Isto se deve a vários fatores, não apenas à hegemonia econômica americana; ainda que esta seja o principal. Saber inglês não é importante somente porque nos habilita a ter acesso a um vasto cabedal de conhecimentos produzidos nessa língua, é também um fetiche, uma distinção de elite, uma forma de exclusão social, uma ferramenta para deslumbrar os botocudos.

Isto explica porque nossa elite é tão permeável a anglicismos, especialmente em certos setores profissionais que funcionam à base de “buzzwords”, de “knowledge management” e “risk assessment” para o “empowerment” do “business” diante do “marketing” para agradar aos “stakeholders”. Complicar o que é fácil, turvar o que é transparente, são técnicas que aumentam a “importância” daquilo que se está dizendo, dá uma aura de conhecimento arcano, de língua sagrada, de ritual. Eu não entendo o que ele está falando, mas deve ser importante, porque tem tanta palavra bonita.

O inglês se presta a isso de forma exemplar. Não apenas por ser uma língua estrangeira, portanto capaz de adicionar o necessário grau de turbidez ao discurso de quem a emprega, mas também por ser a língua central, a língua do «império». Para legitimar essa patranha, essa gente cria o mito de que o português é «difícil» ou que é uma língua a que faltam certos mecanismos e vocábulos essenciais. As palavras inglesas entram no idioma porque faltam meios para expressar o mesmo conceito em português, pelo menos é a visão dos pajés que manipulam estes fetiches linguísticos para deslumbrar aos selvagens.

Claro que existem sempre certos conceitos que são difíceis ou até impossíveis de traduzir. Desafio alguém a traduzir para o inglês a palavra «saudade» ou alguma destas incríveis expressões populares que temos. Mas na cabeça de alguém que domina assimetricamente os dois idiomas (melhor o inglês do que o português) é fácil xingar de intraduzíveis palavras que poderiam ser facilmente substituídas por outras em nossa língua. Isto explica as palavras pomposas que apareceram mais acima, todas elas tidas como oráculos, como objetos sagrados e intocáveis, digo, intraduzíveis.

Certamente uma pessoa que tivesse bom domínio do português saberia traduzir a maior parte delas, mas ah… temos um problema: o português é uma língua «primitiva», ele «não soa tão bem» quanto o inglês, insn’t it?

E assim, nas calhas de roda
gira a entortar a dicção
este monturo de termos
que não acha tradução.


30
Out 10
publicado por José Geraldo, às 22:59link do post | comentar | ver comentários (1)

Era uma noite escura e sem estrelas. Estávamos em uma calmaria no Pacífico Norte. Nossa exata posição eu não sei porque o sol tinha estado oculto, durante toda uma semana cansativa de trabalho, por uma névoa fina que parecia flutuar acima de nós, pouco acima da altura de nossos mastros, às vezes descendo e envolvendo o mar em torno de nós.

Como não havia vento, tínhamos prendido o leme e eu era o único homem no tombadilho. A tripulação, que consistia de dois homens e um garoto, estava dormindo em suas cabinas enquanto Will, meu amigo e capitão de nossa pequena embarcação, estava em sua tarimba, à bombordo de sua pequena cabina à popa.

De repente, saído da escuridão que nos cercava, veio uma saudação:

— Olá, escuna!

O grito foi tão inesperado que eu não lhe respondi de imediato, tanta minha surpresa.

Ele soou de novo — uma voz curiosamente gutural e inumana, que chamava de algum lugar sobre o mar escuro a bombordo:

— Olá, escuna!

— Alô! — eu declamei, depois de recuperar minha presença de espírito — O que é você? O que quer?

— Não precisa ter medo — respondeu a estranha voz, provavelmente por notar algum sinal de confusão no tom de minha voz — eu sou apenas um… homem… velho.

A pausa soou fora de lugar, mas foi só depois que eu percebi seu significado.

— Então por que não vem a bordo? — indaguei, um tanto grosseiramente, por não ter gostado de tal sugestão de que eu pudesse ter sido assustado, mesmo que só um pouco.

— Eu… eu não posso. Não seria seguro. Eu… — a voz se deteve e houve silêncio.

— O que quer dizer? — perguntei, mais atônito ainda — Quem não estaria seguro? Onde está você?

Eu ouvi por um momento, mas não veio nenhuma resposta. Então, movido por uma súbita e indefinida suspeita de algo que não sabia o que era e que vinha até mim, eu fui rapidamente até a bitácula e peguei a lâmpada acesa. Ao mesmo tempo, bati no tombadilho com o calcanhar para acordar Will. Logo em seguida, eu estava na beirada, derramando o cone de luz amarelada na imensidão silenciosa além do parapeito. Ao fazer isso, ouvi um grito baixo, abafado, e depois o som de um chapinhar, como se alguém tivesse deitado remos abruptamente. Mesmo assim eu não sei dizer com certeza se eu vi alguma coisa, exceto que, ao que me pareceu, com a primeira luz da lanterna havia algo sobre as águas, onde pouco depois nada havia.

— Alô, você aí! — chamei — que palhaçada é essa?

Mas só se ouvia os sons indistintos de um bote sendo remado para longe na noite.

Então ouvi a voz de Will, vinda da direção das escotilhas da proa:

— O que está havendo, George?

— Vem cá, Will — eu disse.

— O que é? — ele perguntou, atravessando o tombadilho.

Contei-lhe a estranha coisa que havia acontecido. Ele então fez várias perguntas e, após um momento de silêncio, levou as mãos aos lábios e saudou:

— Olá, você do bote!

De muito longe nos veio uma resposta quase inaudível e o meu colega repetiu seu chamado. Então, depois de um curto período de silêncio, começou a crescer em nossos ouvidos o som de remos abafados, e então Will saudou novamente.

Dessa vez houve uma resposta:

— Desliguem a luz.

— O diabo é que eu vou… — resmunguei, mas Will me convenceu a fazer o que a voz pedia, e eu a ocultei sob a armurada.

— Vou me aproximar — ele disse, e o som dos remos continuou. Então, aparentemente a uma distância de doze braças, eles pararam outra vez.

— Venha para cá! — exclamou Will — não há nada para ter medo aqui a bordo.

— Promete que não vai mostrar a luz?

— O que aconteceu com você — eu interrompi — que tem um medo tão infernal da luz?

— Porque… — começou a voz, e logo parou.

— Porque o que? — logo perguntei.

Will pôs sua mão no meu ombro:

— Fique em silêncio, um pouco, camarada — ele disse numa voz baixa — deixa que eu cuido dele.

Então ele se inclinou mais sobre a borda:

— Veja aqui, senhor — ele disse — esse é um negócio bem esquisito, você chegar até nós desse jeito, bem no meio do bendito Oceano Pacífico. Como podemos saber que não é um tipo de trapaça para nos enganar? Você diz que está sozinho. Como vamos saber se não pudermos dar uma olhada, hem? Qual é o seu problema com a luz, por falar nisso?

Quando ele terminou, ouvi o ruído dos remos outra vez, e então a voz do homem, mas então a uma distância maior, e soando extremamente desesperada e patética.

— Desculpem-me, desculpem-me! Eu não devia ter perturbado vocês, mas eu só estou faminto, e também… também ela.

A voz sumiu, e o som dos remos, irregularmente agitando a água, chegava até nós.

— Pare! — gritou-lhe Will — Não queremos espantar você. Volta aqui! Vamos ficar com luz abaixada, já que você não gosta dela!

Will se dirigiu a mim:

— É um trato muito esquisito esse, mas eu acho que não há nada do que ter medo?

Havia uma indagação em seu tom de voz, e eu respondi:

— Não. Eu acho que o pobre diabo naufragou perto daqui e ficou louco.

O som dos remos se aproximava.

— Enfia aquela lampa de volta na bitácula — disse Will, e então se inclinou sobre a armurada e ouviu. Eu recoloquei a lâmpada e voltei para o seu lado. O bater dos remos parou a cerca de doze jardas de distância.

— O senhor não vai se aproximar agora? — perguntou Will, numa voz calma — eu pus a lâmpada de volta na bitácula.

— Eu… não posso — repetiu a voz. Eu não ouso chegar mais perto. Não ouso nem mesmo pagar-lhes pelas… provisões.

— Tudo bem — disse Will, e hesitou. Você pode pegar o quanto quiser levar.

— Vocês são muito bons! — exclamou a voz. Que deus, que a tudo compreende, recompense-os…

E ele parou subitamente de falar.

— A… a senhora? — perguntou Will abruptamente — ela está…?

— Eu a deixei lá na ilha — respondeu a voz.

— Que ilha? — eu perguntei.

— Não sei o nome dela — respondeu a voz — e eu queria que Deus… — ele começou, mas logo parou de novo.

— Não podemos mandar um bote ir buscá-la? — perguntou Will nesse ponto.

— Não! — exclamou a voz, com extraordinária ênfase — Meu Deus, não!.

Houve um momento de pausa e então ele acrescentou, em um tom que parecia uma reprimenda de si mesmo:

— Foi por causa de nossa necessidade que eu me aventurei, porque a agonia dela me tortura.

— Sou um brutamontes desmemoriado! — exclamou Will — Espere um minuto, seja quem for, e eu vou lhe trazer alguma coisa já.

Alguns minutos depois ele retornou, trazendo uma braçada de comida. Ele parou na armurada:

— Você não pode vir até junto da armurada para buscar? — ele perguntou.

— Não… eu não ouso — respondeu a voz, e me parecia que, em sua entonação, se podia detectar um sinal de desejo reprimido.

Então eu entendi que a pobre criatura lá na escuridão estava realmente sofrendo a falta daquilo que Will tinha em seus braços mas, por algum temor ininteligível, se recusava a abordar a nossa escuna e recebê-lo. E com essa percepção instantânea, veio a noção de que o Invisível não era um louco, mas alguém muito são que enfrentava algum horror intolerável.

— Foda-se, Will! — eu disse, cheio de consternação e de uma vasta simpatia pelo ser na noite. Busque uma caixa e vamos deixar isso flutuar até ele.

Assim fizemos, propelindo-a para longe do nosso barco, para dentro da escuridão, por meio de um gancho.

Em um minuto ouvimos a voz quase inaudível do Invisível chegar até nós, e soubemos que ele tinha apanhado a caixa.

Pouco depois ele se despediu de nós com uma bênção tão emocionada que eu tenho a certeza de que nos sentimos muito melhores por causa dela. Então, sem mais tardar, ouvimo-lo remando através da escuridão.

— Muito rápido — observou Will, com uma certa intenção de ofender.

— Espere — eu respondi — eu acho que de alguma forma ele vai voltar. Ele parecia estar mesmo precisando muito daquela comida.

— E a mulher? — disse Will, parando por um momento em silêncio, antes de continuar — é a coisa mais esquisita com que trombei desde que comecei a pescar.

— É — eu disse, e fiquei pensando.

Então o tempo passou. Uma hora, logo outra, e Will continuava comigo, porque a estranha aventura tinha acabado com toda sua vontade de dormir.

Já haviam passado quase três quartos da terceira hora quando ouvimos de novo o som de remos no oceano silencioso.

— Ouça! — disse Will, com uma discreta nota de excitação em sua voz.

— Está voltando, como eu pensei — eu murmurei.

O bater dos remos foi se aproximando, e eu notei que o rimo era mais firme e mais amplo. A comida tinha sido bem aproveitada.

Os remos pararam de bater a uma distância bem pequena de nossa armurada, e a estranha voz nos veio forte através da escuridão:

— Olá, vocês da escuna!

— É você? — perguntou Will.

— Sim — respondeu a voz. Eu os deixei muito rápido, mas… era porque a necessidade era grande.

— A mulher? — perguntou Will.

— A… a mulher lhes está muito grata neste momento aqui na Terra. Mas ela lhes será ainda mais grata dentro em breve… no Céu.

Will começou a tentar responder, com uma voz perplexa, mas ficou confuso e parou. Eu não disse nada. Estava pensando nas curiosas pausas e, além de meu espanto, estava cheio de certa simpatia.

A voz continuou:

— Nós… ela e eu… nós conversamos, enquanto dividíamos o resultado da graça de Deus e da bondade de vocês…

Will interrompeu, mas incoerentemente.

— Eu lhes peço que não… não subestimem seu ato de caridade cristã esta noite — disse a voz — e estejam certos de que este feito não escapará ao julgamento dEle.

Ele parou, e houve um minuto inteiro de silêncio. Então começou de novo:

— Nós conversamos sobre isso… isso que nos sobreveio. Tínhamos pensando em partir, sem contar a ninguém do terror que aconteceu em nossas… vidas. Ela concorda comigo em que os fatos dessa noite são parte de uma decisão especial de Deus, e que ele deseja que contemos a vocês tudo quanto sofremos desde… desde…

— Sim — perguntou Will, suavemente.

— Desde o naufrágio do Albatroz.

— Ah! — eu exclamei involuntariamente — Ele saiu de Newcastle para Frisco uns seis meses atrás e não se ouviu falar dele mais.

— Sim — respondeu a voz — mas, alguns graus ao norte da Linha, ele encontrou uma tempestade terrível e perdeu os mastros. Quando o tempo acalmou, percebemos que estava fazendo muita água e então, por causa da calmaria, os marinheiros pegaram os botes, deixando uma… uma jovem senhora, minha noiva, e eu, sozinhos no barco.

“Nós estávamos no porão, pegando alguns de nossos pertences, quando eles saíram. Eles ficaram totalmente insensíveis, por causa do medo, e quando nós subimos ao tombadilho nós só os vimos como pequenas sombras, longe no horizonte. Mesmo assim nós não perdemos a esperança: fizemos uma pequena jangada e sobre ela pusemos tudo que ela podia carregar, inclusive uma boa quantidade de água e alguns biscoitos de marear. Então, já com o navio bem afundado na água, pulamos para a jangada e demos impulso.

Mais tarde eu observei que nós parecíamos estar no caminho de algum tipo de corrente, que nos afastava do navio em diagonal, de forma que após três horas, pelo meu relógio, o casco dele ficou fora de nossa visão, embora os seus mastros quebrados ainda pudessem ser vistos por um pouco mais. Então, caindo a noite, ficou nebuloso e continuou assim durante a noite. No dia seguinte ainda estávamos envoltos na névoa e o tempo continuava calmo.

Por quatro dias nós flutuamos por entre a estranha bruma, até que, no anoitecer do quarto dia, começamos a ouvir o murmúrio de ondas que quebravam à distância. Gradualmente ele ficou mais claro e, pouco depois de meia noite, parecia soar tanto a bombordo como a estibordo, e à pequena distância. A jangada foi erguida por ondas de arrebentação várias vezes, e então entramos em águas calmas e o barulho das ondas quebrando ficou para trás.

Quando amanheceu nós descobrimos que estávamos em um tipo de grande lagoa, mas nós só notamos isso depois, porque diante de nós, em meio àquela neblina opressora, assomava o casco de uma embarcação enorme. No mesmo ato nós caímos de joelhos e agradecemos a Deus, porque imaginamos que tinham acabado os nossos perigos. Tínhamos muito a descobrir.

A jangada aproximou-se do navio e nós lhe gritamos para que fôssemos levados a bordo, mas ninguém respondeu. Então a jangada tocou o lado do navio e, vendo uma corda pendurada, eu agarrei e comecei a subir. Mas eu tive muito trabalho para subir, por causa de um tipo de fungo ou líquen que tinha crescido na corda e que também manchava o casco do navio.

Eu cheguei à amurada e a saltei, chegando ao convés. Ali eu vi que o tombadilho estava coberto de grandes manchas de massa cinza, algumas delas criando nódulos de metro de altura; mas naquele momento eu não dei tanta importância a isso quanto à possibilidade de haver gente a bordo do navio. Eu chamei, mas ninguém respondeu. Então eu fui até a porta abaixo do convés da popa, e a abri para olhar lá dentro. Havia um grande cheio de podridão, de forma que soube no mesmo instante que não havia nada vivo lá, e tendo descoberto isso eu fechei a porta rápido, porque me senti subitamente só.

Eu voltei para o lado de onde tinha subido. Minha… minha querida ainda estava sentada quieta na jangada. Ao ver-me olhando para baixo ela me perguntou se havia alguém no navio. Eu respondi que a embarcação parecia estar há muito deserta, mas que se ela pudesse esperar, eu procuraria alguma coisa que pudesse servir de escada, para que ela pudesse subir ao convés, a fim de que pudéssemos fazer uma busca por todo ele juntos. Um pouco depois, no lado oposto do convés, eu achei uma escada de corda. Levei-a ao outro lado e minutos depois ela estava lá comigo.

Juntos exploramos as cabinas e apartamentos da popa do navio, mas em parte alguma havia qualquer sinal de vida. Aqui e ali, até dentro das cabinas, encontramos aquelas manchas incomuns daquele fungo estranho; mas isso, minha querida disse, poderia ser limpo.

Por fim, tendo nos assegurado que a popa do navio estava vazia, nós nos dirigimos à proa, por entre os feios nódulos cinzentos daquela infestação estranha, e ali fizemos outra busca, que nos mostrou que não havia mesmo ninguém a bordo, além de nós mesmos.

Como isso estava estabelecido além de qualquer dúvida, voltamos à popa do navio e começamos a tentar nos acomodar como possível. Juntos nós desobstruímos e limpamos duas das cabinas, e depois disso eu investiguei se havia qualquer coisa comestível no navio. Isso eu logo confirmei, e agradeci a Deus por Sua bondade. Além disso, eu descobri uma bomba de água doce e, tendo-a consertado, vimos que a água era potável, apesar de ter um gosto um pouco desagradável.

Por vários dias nós ficamos no navio, sem tentar chegar à margem. Nós estávamos ocupados tentando fazer o lugar habitável. Mas mesmo assim nós logo notamos que nosso lugar era bem menos desejável do que tínhamos imaginado, pois embora tivéssemos, inicialmente, arrancado todas as manchas de infestação que tinham coberto o chão e as paredes das cabines e do salão, elas sempre retornavam, em seu tamanho original quase, no espaço de meras vinte e quatro horas, o que não apenas nos desmotivava, mas nos dava uma vaga sensação de desconforto.

Mesmo assim nós não nos dávamos por vencidos e recomeçávamos o serviço, e não apenas arrancávamos os fungos, mas ensopávamos os lugares onde eles tinham estado com ácido carbólico, de que eu tinha achado um latão cheio no armazém. Mas, ao final da semana, a infestação tinha crescido com toda força e tinha se espalhado para outros lugares, como se ao tocá-la tivéssemos permitido que esporos dela viajassem pelo ar.

Na sétima manhã, minha querida acordou e achou uma pequena mancha de mofo crescendo em seu travesseiro, bem perto de sua face. Com isso, ela veio até mim, tão rápido quanto ela pôde se vestir. Eu estava então na cozinha, acendendo o fogo para o desjejum.

“Vem cá, John”, ela disse, e me levou à popa. Quando vi a coisa no seu travesseiro, estremeci e naquele momento e lugar nós concordamos em sair do navio e ver se podíamos achar um lugar melhor em terra.

Rapidamente reunimos nossos poucos pertences e entre eles vi que o fungo tinha estado trabalhando, pois uma de suas mantilhas tinha uma pequena bolha dele perto da bainha. Eu atirei a coisa pela amurada sem nem dizer-lhe nada.

A jangada ainda estava ao lado, mas ela era desajeitada de guiar. Então eu baixei um pequeno bote que ainda estava na popa e por ele nós fizemos nossa viagem à terra firme. Mas quando nos aproximávamos dela, eu percebi gradualmente que o fungo maligno, que nos havia expulsado do navio, ali estava crescendo descontroladamente. Em alguns lugares ele se erguia em montes fantásticos, horríveis, que pareciam quase mover-se, como se houvesse neles uma silenciosa inteligência, quando o vento soprava neles. Aqui e ali ele tomava a forma de vastos dedos, e em outra ele se espalhava pelo chão plano, suave e traiçoeiramente. Em outros lugares, parecia árvores grotescamente enfeitadas, extraordinariamente curvadas e contorcidas. A coisa toda parecia tremer malignamente às vezes.

A princípio nos pareceu que não havia sequer um trecho da costa que não estava escondido pelas massas do horrendo líquen, mas nisso logo vi que estávamos enganados, porque a seguir, margeando a costa a pouca distância, discernimos uma mancha clara do que parecia ser areia fina, e ali desembarcamos. Não era areia. O que era, eu não sei.

O que observei foi que sobre aquilo o fungo não crescia, embora em todo o resto, exceto onde a coisa que parecia areia chegasse, em meio à desolação cinzenta do líquen, não houvesse nada além de nojentos fungos.

É difícil fazê-los entender o quanto eu fiquei feliz de achar um lugar que estava absolutamente livre da infestação, e nele depositamos os nossos pertences. Então nós voltamos ao navio para pegar coisas que pareciam necessárias. Entre outras coisas, eu consegui trazer à margem comigo uma das velas do navio. Com ela construí duas pequenas tendas que, embora muito mal feitas, serviam aos propósitos para os quais haviam sido feitas. Nelas vivemos e guardamos nossas posses, de forma que, por um espaço de quatro semanas, tudo correu calmamente e sem nenhuma infelicidade. De fato, eu posso até dizer que foi com grande felicidade, porque… porque ficamos juntos.

Foi no polegar direito dela que a infestação apareceu pela primeira vez. Era só um pequeno ponto circular, como uma pequena verruga cinza, meu Deus! Como o medo saltou sobre meu coração quando ela me mostrou o lugar. Nós o limpamos, juntos, lavando-o com ácido carbólico e água. Na manhã do dia seguinte ela me mostrou sua mão outra vez. A coisa verrugosa e cinza tinha voltado. Por um momento nós nos entreolhamos em silêncio. Então, ainda sem palavras, começamos a removê-la de novo. No meio da operação, ela disse subitamente:

“O que é isso na sua face, querido?”

A voz dela saiu aguda de tanta ansiedade. Eu levei a mão para sentir.

“Aí, debaixo do cabelo, perto de sua orelha. Um pouco mais à frente.”

Meu dedo pousou sobre o lugar, e então eu soube.

“Vamos cuidar do seu polegar primeiro”, eu disse. E ela se submeteu, apenas porque tinha muito medo de me tocar até que estivesse limpo. Eu terminei de lavar e desinfetar seu polegar, então ela começou em minha face. Depois que terminamos nós nos sentamos juntos e conversamos um pouco sobre muitas coisas, porque haviam sobrevindo às nossas vidas pensamentos súbitos e verdadeiramente terríveis. Estávamos, de repente, temerosos de algo mais grave que a morte. Falamos em carregar o bote com provisões e água e sair para o mar, mas estávamos sem esperança, por várias razões, e… e a infestação já tinha nos atacado. Decidimos ficar. Que Deus fizesse de nós o que fosse Sua vontade. Esperaríamos.

Um mês, dois meses, três meses passaram e os lugares cresceram um pouco, e surgiram outros. Mas nós lutamos tão incansavelmente por causa do medo que o seu crescimento foi lento, comparativamente falando.

Ocasionalmente nos aventurávamos no navio para buscar as provisões de que precisávamos. Ali notamos que o fungo crescia persistentemente. Um dos nódulos no convés principal logo ficou tão alto quanto a minha cabeça.

Nós tínhamos abandonado todo pensamento de abandonar a ilha. Compreendêramos que seria inadmissível ir para o meio de humanos sãos levando a coisa de que estávamos sofrendo.

Com esta determinação e conhecimento em mente, soubemos que deveríamos cultivar nossa comida e água, pois não sabíamos, àquela altura, quantos anos ainda poderíamos viver.

Isso me lembra que eu lhes disse que sou um velho. A julgar pelos anos isso não é verdade. Mas… mas…”

Ele interrompeu, mas depois continuou, de forma um tanto abrupta:

“Como estava dizendo, descobrimos que deveríamos usar de economia em relação à comida. Mas não tínhamos nenhuma ideia de quão pouco restava para economizar. Não foi senão uma semana depois que eu descobri que todos os outros tanques de pão — que eu achava que estavam cheios — estavam vazios e que, a não ser por algumas latas de vegetais e carne e coisas assim, não tínhamos nada de que depender a não ser o tanque que já tínhamos aberto.

Depois de descobrir isso eu me esforcei para fazer o que pudesse e comecei a pescar na lagoa, mas sem sucesso. Com isso eu fiquei um pouco inclinado ao desespero, até que tive a ideia de tentar fora da lagoa, no mar aberto.

Aqui, às vezes, eu pego um peixe, mas tão raramente que eles provaram ter pouca utilidade para nos salvar da fome que nos ameaçava. Pareceu-me, então, que nossas mortes deveriam ocorrer mais provavelmente por causa da fome do que pela infestação da coisa que tinha surgido em nossos corpos.

Pensávamos assim quando o quarto mês passou. Então eu fiz uma descoberta horrível. Uma manhã, um pouco antes do meio-dia, eu voltei do navio com uma porção dos biscoitos que sobravam. À entrada de sua tenta eu vi minha querida sentada, comendo algo.

‘O que é isso, meu amor?’ Eu perguntei ao saltar para a praia. Mas, ao ouvir minha voz, ela ficou confusa e, ao voltar-se, sutilmente jogou alguma coisa na direção da margem da clareira. Ela caiu perto e uma vaga suspeita tinha surgido em mim, então eu fui até lá e a recolhi. Era um pedaço do fungo cinzento.

Quando fui até ela com aquilo na mão, ela ficou mortalmente pálida, e então vermelha.

Eu fiquei estranhamente atordoado e amedrontado.

‘Meu amor, meu amor!’ eu dizia, e não podia dizer mais nada. Mas com as minhas palavras ela se descontrolou e chorou amargamente. Gradualmente, enquanto ela acalmava, eu soube que ela tinha experimentado no dia anterior e… e tinha gostado. Eu a fiz prometer de joelhos que ela nunca o tocaria outra vez, por maior que fosse nossa fome. Depois da promessa ela me disse que a vontade de comê-lo tinha aparecido subitamente, e que antes do momento de desejo ela nada tinha sentido em relação ao fungo, senão a mais extrema repulsa.

Mais tarde naquele dia, sentindo-me estranhamente inquieto e muito abalado pelo que havia descoberto, eu seguia por um dos sinuosos caminhos formados pela substância branca e arenosa que seguia por entre a infestação fungosa. Eu já tinha me aventurado uma vez por ali, mas não muito longe. Daquela vez, porém, muito distraído com um pensamento perturbador, eu acabei indo mais longe do que tinha ido antes.

Então a minha atenção voltou quando ouvi um som estranho e áspero à minha esquerda. Virando rápido, eu vi que havia movimento em meio a uma massa de fungos de formato extraordinário bem perto de meu cotovelo. Ela estava se agitando descontroladamente, como se possuísse uma vida própria. Abruptamente, ao olhar, me sobreveio o pensamento de que a coisa tinha uma semelhança grotesca com a figura distorcida de uma criatura humana. Ao mesmo tempo em que a ilusão percorria o meu cérebro, houve um suave e doentio ruído de coisa se rasgando e eu vi que uma das ramificações parecidas com galhos se destacava das massas em torno. A cabeça da coisa, uma bola cinzenta e amorfa, inclinou-se em minha direção. Eu fiquei estupefato, e o braço maligno percorreu minha face. Dei um grito assustado e retrocedi alguns passos. Havia um sabor adocicado em meus lábios, onde a coisa me havia tocado. Lambi e fui imediatamente preenchido por um desejo inumano. Eu virei e arranquei uma massa do fungo.

Então mais, e… mais. Eu era insaciável. Enquanto devorava, a lembrança da descoberta da manhã apareceu em meu cérebro atordoado. Foi enviada por Deus. Eu atirei ao chão o fragmento que segurava. Então, totalmente desgraçado e sentindo uma culpa terrível, eu voltei para o acampamento.

Eu creio que ela soube, por uma intuição maravilhosa que o amor nos dá, tão logo pôs os olhos em mim. Sua silenciosa solidariedade tornou mais fácil para mim, e eu lhe contei de meu súbito fraquejar, mas lhe omiti a coisa extraordinária que tinha acontecido antes. Eu desejava poupar-lhe de todo terror que não fosse necessário.

Mas em mim mesmo eu tinha adicionado um conhecimento intolerável, que criava um terror incessante em meu cérebro, pois eu não duvidava que tinha visto o fim de um daqueles homens que tinham chegado à ilha no navio da laguna, e naquele monstruoso fim tinha antevisto o nosso próprio.

Desde então evitamos o alimento abominável, embora a fome dele tivesse entrado em nosso sangue. Mas a nossa lúgubre punição estava sobre nós, pois dia a dia, com monstruosa rapidez, a infestação fungosa tomava conta de nossos pobres corpos. Nada que tentássemos conseguia retirá-la materialmente e então… e então nós que… que tínhamos sido humanos nos tornamos… bem, isso importa cada vez menos a cada dia. Somente que… que fomos um homem e uma donzela.

Cada dia a luta é mais terrível para resistir à tentação da fome do terrível líquen. Há uma semana nós comemos o último biscoito e desde então conseguimos pescar três peixes. Eu estava aqui pescando hoje quando sua escuna apareceu sobre mim no meio da neblina. Eu os saudei. O resto vocês sabem, e que Deus, do fundo de Seu grande coração, abençoe-os por sua bondade para com… um pobre par de almas perdidas.”

Houve o bater de um remo, depois outro. Então a voz veio outra vez, e pela última vez, soando através da bruma que nos cercava, fantasmagórica e lamentosa.

— Deus os abençoe! Adeus!

— Adeus! — nós gritamos juntos, desajeitadamente, com os nossos corações cheios de muitas emoções. Então eu percebi que a aurora estava caindo sobre nós.

O sol penetrou com um raio solitário o mar oculto, perfurando o nevoeiro precariamente, e brilhou sobre o barco que se afastava com um fogo tenebroso. Indistintamente eu vi algo balançando entre os remos. Eu pensei em uma esponja — uma grande e cinzenta esponja que balançava. Os remos continuaram a bater. Eles eram cinzentos assim como o barco, e meus olhos procuraram em vão onde era a separação entre mão e remo. Meu olhar se dirigiu, então, à nuca. Ela se movia para frente quando os remos vinham para trás. Então os remos bateram, o bote avançou, saindo do raio de luz e a… coisa, a coisa seguiu balançando através do nevoeiro.

Devido ao autor ter morrido em 1915, este texto em sua versão original encontra-se em domínio público.


02
Out 10
publicado por José Geraldo, às 12:10link do post | comentar

Minha peregrinação pela cidade de Malnéant ocorreu durante um período de minha vida não menos obscuro e dúbio que a cidade mesma e as regiões nebulosas em que se localiza. Não tenho recordação precisa de sua situação, nem posso lembrar exatamente quando e como cheguei a visitá-la. Mas eu tinha ouvido falar vagamente que tal lugar estava situado ao longo de meu caminho habitual, e quando eu cheguei àquele rio envolto em brumas que corre ao longo de suas muralhas, e quando ouvi além do rio o repicar fúnebre de muitos sinos, logo concluí que estava próximo a Malnéant. Ao chegar à colossal e cinzenta ponte que cruza o rio, poderia ter continuado à vontade rumo a outras estradas que conduzem a cidades ainda mais remotas, mas me pareceu que poderia entrar em Malnéant como se fosse qualquer outro lugar. E foi desta forma que pus o pé na ponte de arcos sombrios, sob a qual as águas negras corriam em impreciso fluxo, dividiam-se nas rochas e se juntavam outra vez, em silêncio, como o Estige e o Aqueronte.

Aquele período de minha vida, eu já disse, era obscuro e dúbio, ainda mais, talvez, por causa de minha necessidade de esquecimento, minha persistente e às vezes recompensada busca de obliteração. E aquilo que eu tanto queria esquecer, mais que tudo, era a morte da donzela Mariel, e o fato de que fora eu mesmo que a assassinara, tão certamente como se tivesse sido com as minhas próprias mãos. Porque ela me havia amado com um afeto mais profundo e puro e estável que o meu, mas meu temperamento instável, minhas ocasiões de cruel indiferença ou irritabilidade feroz, haviam partido seu calmo coração. Então foi desta forma que ela buscou o conforto de um lento veneno da alma, até finalmente ser posta a descansar nas trevas das criptas de seus ancestrais. Desde então eu me tornei um vagabundo, perseguido e sempre torturado por um remorso impiedoso. Por anos e meses, dos quais não estou seguro, eu vaguei de cidade a cidade do Velho Mundo, pouco me importando onde dava, se apenas vinho ou outros agentes de estupor estivessem disponíveis… E então eu cheguei, em algum momento de minha jornada indefinida, às vizinhanças lúgubres de Malnéant.

O sol (se alguma vez brilhou naquela região) estava oculto havia muito tempo, nem sabia quanto, em um céu de vapores plúmbeos, o dia estava feio e insípido, para dizer o mínimo. Mas então, pelo espessamento das sombras e das névoas, eu sentia que a noite estava chegando, e os sinos que ouvia, embora pesados e sepulcrais em seu repicar, davam ao menos a promessa de segurança pela noite. Então eu cruzei a longa ponte e entre o portão tristemente escancarado com um apressar de meus passos mesmo sem alegria no espírito.

O crepúsculo havia atingido além das muralhas cinzentas, mas havia poucas luzes na cidade. Poucas pessoas estavam pelas ruas, e estas seguiam seu caminho com uma pressa solene, como se em algum compromisso perigoso que não admitisse nenhum atraso. As ruas eram estreitas, as casas muito altas, com balcões que se projetavam e cortinas pesadamente cortinadas ou tolhidas de persianas. Tudo era muito silencioso, exceto pelos sinos, que repicavam recorrentemente, às vezes débeis e distantes, às vezes com um clangor alto e despertador que parecia vir praticamente de cima. Enquanto eu penetrava através das sombras das mansões obscuras, através das ruas das quais um certo crepúsculo surgia para envolver-me, parecia que eu estava indo para mais e mais longe de minhas memórias a cada passo. Por esta razão eu não perguntei de imediato pelo caminho de uma taverna, mas me contentei em errar cada vez mais pelo labirinto de edifícios, que se tornava mais cinza e mais vago em meio à escuridão progressiva e o nevoeiro, como se dissolvendo-se em olvido.

Eu acho que minha alma quase estaria em paz consigo, se não fosse o toque reiterado dos sinos, que eram como os que repicam pelo repouso dos mortos, e por isso me recordavam sempre aqueles que haviam tocado por Mariel. Mas sempre que eles pausavam, meus pensamentos escorregavam de volta à calma indolente, à segurança recuperada, à vaguidão circundante… Eu não tinha ideia do quanto penetrara em Malnéant, nem por quanto tempo eu vagara entre suas casas que pareciam não poder ser habitadas por ninguém a não ser os mortos em seu sono. Por fim, no entanto, eu percebi que estava muito cansado, e pensei em pão e vinho e uma cama para a noite. Mas em nenhuma parte enquanto andara eu percebera o letreiro de qualquer hospedaria, e por isso tive de perguntar a um transeunte qualquer a direção desejada.

Como disse antes, eram poucos os que estavam fora. Naquele momento, quando me decidi a dirigir-me a um deles, parecia que não havia mais nenhum e que eu andava de rua em rua em uma fútil procura de uma viva alma.

Finalmente encontrei duas mulheres, vestidas de cinzento tão feio e frio como as dobras da névoa, e totalmente veladas, que se apressavam com a mesma determinação fúnebre que eu percebera em todos os outros habitantes daquela cidade. Criei coragem para aproximar-me delas, perguntando se poderiam direcionar-me a uma hospedaria. Quase sem pausar e sem mesmo voltar suas cabeças, elas responderam: “Não podemos dizer-lhe. Somos tecelãs de mortalhas e estivemos ocupadas fazendo uma para a donzela Mariel.” Então, ao ouvir tal nome, que de todos os nomes do mundo era o que eu menos esperava ou queria ouvir, um calafrio inexplicável invadiu meu coração, e um terrível desânimo abateu-me, como se eu respirasse o hálito da morte. Era realmente estranho que naquela cidade em penumbra, tão distante no tempo e no espaço de tudo que eu fugira para esquecer, uma mulher houvesse morrido recentemente e seu nome fosse Mariel. A coincidência era tão sinistra que um medo ímpar das ruas por que andara nasceu subitamente em minha alma. O nome evocara, de forma mais irrevogavelmente fatal que o repicar dos sinos, tudo que eu desejara em vão esquecer, as lembranças que eram carvões em brasa em meu coração.

À medida que prosseguia, com passos que haviam se tornado mais apressados, mais febris até, que os da gente de Malnéant, eu encontrei dois homens, que estavam da mesma forma vestidos da cabeça aos pés de cinzento, e perguntei-lhes o mesmo que perguntara às tecelãs de mortalhas; “Não podemos dizer-lhe,” eles responderam. “Somos fazedores de caixões e estivemos ocupados fazendo um para a donzela Mariel.”

Enquanto falavam, e se apressavam, os sinos tocaram de novo, daquela vez muito perto de mim, com um tom maior de nebulosa e sepulcral ameça em seu repicar pesado. E tudo ao meu redor, as altas e nebulosas casas, as escuras e indefinidas ruas, as raras e espectrais figuras, tornou-se parte de uma confusão indistinta de medo, preocupação e pesadelo. Momento a momento, a coincidência em que tropeçara aparecia mais bizarra ainda de se aceitar, e eu me sentia então perturbado pela monstruosa e absurda ideia de que a Mariel que eu conhecera havia acabado de morrer, e que aquela fantástica cidade estava, de alguma maneira incompreensível, ligada à sua morte. Mas isto, é claro, minha razão rejeitava sumariamente, e eu repetia para mim mesmo: “A Mariel de que falam é outra Mariel.” E me irritava além de toda medida que um pensamento tão inadequado e ridículo continuasse retornando, mesmo que minha lógica o houvesse repelido. Não encontrei ninguém mais a quem perguntar o caminho. Mas por fim, enquanto lutava com minha sombria perplexidade e as memórias flamejantes, eu me achei parado abaixo do letreiro de uma hospedaria, castigado pelo tempo, cujas letras tinham sido quase apagadas pelo tempo e pelo mofo. O edifício era obviamente muito antigo, como todas as casas de Malnéant, e seus andares superiores se perdiam no redemoinho da neblina, exceto por umas poucas e furtivas luzes que brilhavam na escuridão que descia, e um vago e musgoso odor de antiguidade saiu para cumprimentar-me quando eu subi as escadarias e tentei abrir a pesada porta. Mas esta havia sido trancada ou bloqueada, então eu comecei a bater com meus punhos para atrair a atenção de quem estivesse dentro. Após muito tardar, a dor foi aberta, lentamente e a contragosto, e um indivíduo de aparência cadavérica apareceu, com uma grave expressão de desgosto ao ver-me.

“O que deseja?” Ele inquiriu, com uma entonação ao mesmo tempo brusca e solene.

“Um quarto pela noite, e vinho.” Eu pedi.

“Não podemos acomodá-lo. Todos os quartos estão ocupados pelas pessoas que vieram assistir às exéquias da donzela Mariel, e todo o vinho da casa foi requisitado para seu uso. Você terá de ir a outro lugar.”

Ele fechou rapidamente a porta em meu rosto ao dizer as últimas palavras. E eu tive de retomar minha perambulação, e tudo o que me perturbara antes foi intensificado umas cem vezes. As névoas cinzentas e as casas imprecisas estavam cheias da ameaça da lembrança: eram como tumbas traiçoeiras das quais os cadáveres das horas mortas surgiam para assaltar-me com suas presas e garras venenosas. Eu maldisse a hora em que entrara em Malnéant, porque me pareceu então que ao fazê-lo eu apenas completara um círculo funéreo e sinistro no tempo, e retornara ao dia da morte de Mariel. E certamente todas as minhas lembranças dela, de sua agonia final e de seu sepultamento, haviam assumido a vitalidade assustadora de fatos presentes. Mas meus pensamentos ainda mantinham, claro, que a Mariel que estava morta em algum lugar de Malnéant, e por quem todos aqueles ritos de exéquias estavam sendo cumpridos, não era a mesma donzela que eu amara, mas uma outra.

Depois de percorrer ruas que ainda eram mais escuras e estreitas que todas por onde passara, encontrei uma segunda hospedaria, ostentando um letreiro similarmente batido pelo tempo, e em todos os aspectos muito parecida à primeira. A porta estava bloqueada, e eu bati com força, e não me surpreendi de modo algum quando um segundo indivíduo, de rosto cadavérico, me informou em solene e sepulcral entonação:

“Não podemos acomodá-lo. Todos os quartos foram tomados por músicos e carpideiras que atuarão nas exéquias da donzela Mariel, e todo o vinho foi reservado para seu uso.”

Então eu comecei a temer a cidade ao meu redor com medo multiplicado: porque parecia que toda a ocupação da gente de Malnéant consistia em preparativos para o funeral da tal donzela Mariel. E começou a ser óbvio para mim que eu deveria perambular pelas ruas da cidade por toda a noite sem abrigo por causa dos mesmos preparativos.

Subitamente, um cansaço arrebatador se mesclou ao terror e à perplexidade de meu pesadelo.

Não continuara por muito tempo minha peregrinação, depois de deixar a segunda hospedaria, quando os sinos repicaram mais uma vez. Pela primeira vez, pude identificar sua origem: eles estavam nas torres de uma grande catedral que pairava imediatamente acima de mim na neblina. Algumas pessoas estavam entrando na catedral, e uma curiosidade, que eu sabia ser ao mesmo tempo mórbida e perigosa, me levou a segui-los. Lá eu senti de alguma forma que seria capaz de conhecer mais do mistério que me atormentava. Estava tudo em penumbra lá dentro, e a luz de muitos pavios mal conseguia iluminar a vasta nave ou o altar. Uma missa estava sendo rezada por padres vestidos de negro, cujas faces não podia divisar claramente, seus cantos pareciam palavras em um sonho, das quais nada ouvia, e nada estava visível de forma definida no lugar, exceto um féretro coberto de tecidos opulentos no qual jazia uma forma alva. Flores de vários matizes haviam sido salpicadas sobre o féretro, sua fragrância preenchia o ar com um langor sonolento, com um amortecimento que parecia drogar meu coração e minha alma.

As mesmas flores haviam sido postas no féretro de Mariel, e desta forma, por causa de seu perfume, eu fora, em seu funeral, abatido por um entorpecimento momentâneo dos sentidos. Vagamente eu percebi que alguém me acotovelara. Com olhos ainda fixos no féretro, eu perguntei:

“Quem é que jaz ali, por quem é rezada esta missa e tocados estes sinos?”

E uma voz lenta e sepulcral respondeu:

“Eis a donzela Mariel, que ontem morreu e que será amanhã enterrada nas criptas de seus ancestrais. Se é seu desejo, pode aproximar-se e mirar seu rosto.”

Então eu percorri o corredor da catedral, até junto do féretro, cujos tecidos opulentos caíam até a lousa fria. E a face daquela que lá jazia, com um sorriso tranquilo nos lábios, com doces sombras sobre as pálpebras fechadas, era a face da mesma Mariel que eu amara, e não de outra. As vagas do tempo congelaram seu fluxo, e tudo que era ou fora ou seria, tudo do mundo que existira além dela, tornou-se como sombras vacilantes, e da mesma forma que antes (passadas eras ou minutos) minha alma foi trancada no inferno de mármore do supremo luto e arrependimento. Eu não podia me mexer, eu não podia gritar nem chorar, porque minhas lágrimas se tornavam em gelo. E então eu soube com certeza terrível, que aquele único evento, a morte da donzela Mariel, tinha sido arrancado de todos os outros acontecimentos, tinha sido separado da sequência do tempo e achado para si um cenário de penumbra e solenidade adequadas, ou talvez até construído em torno de si aquela enorme e labiríntica urbe, para ali aguardar meu retorno em meio às névoas do esquecimento. Por fim, com um imenso esforço da vontade, eu retirei meus olhos dela, e deixei a catedral em passos apressados, apesar de tolhidos pelo chumbo de minhas pernas, para buscar uma saída daquele labirinto horrível de Malnéant, para procurar o portão por onde entrara. Mas isto não foi de forma alguma fácil, devo ter vagado por horas pelos becos, opressivos e sem saída como tumbas, e pelas tortuosas e convolutas vias, até que me achei em uma rua familiar e dela fui capaz de dirigir meus passos com alguma certeza. E um mormaço fraco brilhava através das nuvens de um dia amortecido e nublado que nascia além das névoas quando eu cruzei a ponte e cheguei outra vez à estrada que me levaria para longe daquela cidade infeliz.

Desde então eu tenho vagado por muitos lugares. Mas nunca mais procurei revisitar aquele reino antigo de nevoeiro e de neblina, por medo de que chegar outra vez a Malnéant e descobrir que sua gente ainda está ocupada com os preparativos para as exéquias da donzela Mariel.


mais sobre mim
Março 2013
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30

31


comentários novos
Ótima informação, recentemente usei uma charge e p...
Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
Já ia esquecendo de comentar: sou novo por aqui e ...
Essa modificação do modo de ensino da língua portu...
Chico e Caetano, respectivamente, com os "eco...
Vai sair em inglês no CBSS esta sexta-feira... :)R...
Posts mais comentados
pesquisar neste blog
 
arquivos
blogs SAPO