Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
09
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 21:57link do post | comentar

…ou não andavam tão bem acompanhados. Era um mundo melhor, no qual você não se fazia ouvir nem na esquina, mas podia pelo menos desfrutar da doce sensação de que as suas ideias não seriam incompreendidas e ridicularizadas por idiotas.

O ser idiota é um ser coletivo, gregário, agremiado, associado, mesmo que informalmente. Ninguém consegue ser realmente um idiota quando está sozinho porque o eco das paredes nos dá a estranha sensação de que não somos geniais ou, ainda pior, de que nossa genialidade nunca será compreendida. Em ambos os casos poupamos o mundo de nossas palavras por tempo suficiente para que amadureçam, ou amadureçamos, ou emudeçamos, ou apodreçamos.

Um grupo de pessoas apenas moderadamente bobas pode transformar-se em uma turba vociferante de trogloditas. Um babaca não comprará uma briga contra o carinha que lhe «olhou torto» na rua, um grupo de babacas pode massacrar um mendigo pelo prazer de ouvir ossos quebrando. Coletivamente, a idiotice se potencializa. Mas remova cada um dos idiotas de seu bando e você terá um gatinho educado. Sem «amigos lá fora» para impor sua interpretação idiota do mundo, o gatinho aprenderá a negociar, a conversar. Esta é a grande virtude das prisões: as prisões deveriam ser o «cantinho pensamento» para os meninos maus da sociedade. Infelizmente, vivemos numa sociedade em que os castigos são vistos como manifestações autoritárias da tradição. Talvez sejam, mas negociar uma entrada honrosa no mundo adulto é algo que já saiu meio de moda. Todos querem entrar arrombando, pisoteando, idioteando.

O mundo era melhor no tempo em que não havia tantos bandos de valentes, no tempo em que os valentes se orgulhavam de resolver sozinhos. Hoje em dia, já que estamos ficando modernos, resolvemos redescobrir a Idade Média e trouxemos de lá o que os franceses chamavam de melée, a guerra bruta e desorganizada que só terminava quando os vivos começavam a tropeçar demais nos mortos. A guerra estúpida e bárbara contra a qual a civilização procurou impor códigos de cavalaria, tréguas dominicais, direitos de asilo, honra militar etc. Briga em porta de escola é um choque de bandos, ninguém ali possui individualidade, são idiotas que se entregam ao espírito do bando — e todo bando é necessariamente idiota, todo partido é utópico, toda associação é ingênua, todo grupo é meio besta. Houve um tempo em que afirmar-se como indivíduo era sinal de honra. Hoje, a folha de grama que se destaca é aparada.

Conformem-se, garotos que estão hoje nas escolas. Vocês não terão a permissão de viver com a liberdade que eu vivi. Eu vivi sob uma ditadura os meus tempos de escola, mas vivi mais livre do que vocês. Porque as correntes com que nos amarramos a nós mesmos são as mais difíceis de romper. Quem romperá a corrente de massificação, de idiotização? Experimente gostar de uma garota diferente, ouvir uma música diferente, passar por uma rua diferente, vestir-se com uma roupa diferente. Escárnio, no começo, xingamentos, pouco depois, talvez uma pedrada na testa ou, se for possível, um linchamento. Moral ou físico, já tanto faz. Não existe muita vida depois que você perde o direito de ser você mesmo. E passa a ser um dos idiotas do bando.


05
Nov 11
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar

Você provavelmente nunca ouviu falar de Charles Kembo. Acontece que ele se tornou hoje o pivô de uma das notícias literárias mais interessantes do ano, ao tornar-se o autor do livro “A Trindade dos Super-Garotos, Livro I: A Busca pela Água”. Aparentemente não há razão alguma para que o caso seja “interessante”, mas o caso merece atenção.

Antes de tudo, é preciso dizer que a obra citada é bem justamente o que parece: uma trilogia de ficção científica protagonizada por jovens que salvarão o mundo de uma catástrofe. Mais do mesmo, óbvio. Você já leu esta história tantas vezes que não precisa ler mais esta para saber quase em detalhes tudo que acontecerá. Eu não li, mas as poucas informações que pude obter sobre o livro (que não pretendo comprar, pois meu dinheiro não dá em árvore) me fazem supor que os jovens correspondem a todos os modelos prefabricados de personagens heroicos adolescentes que aparecem nos livros mais vendidos atualmente. Portanto, a menos que Charles Kembo seja um artista genial com as palavras, o livro dele é provavelmente ruim. Acontece que o título por ele escolhido para o primeiro volume de sua trilogia não sugere que ele seja.

Ademais, o canal através do qual esta obra chegou a ser publicada não é nem um pouco recomendável: trata-se da famigerada PublishAmerica (cujo link não incluo para não gerar receita para picaretas), famosa por ter aceitado um pastiche intitulado “Atlanta Nights”, criado por alguns autores filiados à Associação Americana de Autores de Ficção e Fantasia (SFWA), mais um programa de computador. O caso está arquivado aqui (em inglês, sorry). Mas incluo um resumo abaixo, para benefício dos que não sabem inglês (e também da preguiça peluda que em que às vezes certos leitores se metamorfoseiam em noites de lua, cheia ou não, em uma estranha licantropia). Se você já conhece o caso, preferiu ler o texto que está no link ou se simplesmente confia em minha palavra, de que a PublishAmerica deveria chamar-se PublishIt!, salte os parágrafos comentados a seguir.

Muitos autores filiados à SFWA (e também jovens autores não filiados, mas que buscavam conselho) reclamavam das práticas da PublishAmerica, uma editora de fachada que se fazia passar por “tradicional”, mas que apenas arrancava dinheiro dos ingênuos. Esse tipo de empresa é chamada nos EUA de “author mill” (moinho de autores).
As reclamações variavam desde a qualidade da revisão e do projeto gráfico até à falta de promoção, passando pelos altos preços cobrados dos autores (você que escreve deve ter encontrado algo parecido aqui no Brasil, não?). Diante da divulgação destas reclamações pela SFWA (em sua página Writers Beware, ou “Atenção Autores”), a PublishAmerica defendeu-se atacando, de forma arrasadora, não apenas os autores reclamantes, mas todos os autores de ficção científica e fantasia. Segundo a PublishAmerica, o insucesso dos autores não se devia à falhas da editora, mas à falta generalizada de qualidade das obras destes gêneros, que, por serem relativamente fáceis de escrever, atraem um grande número de incompetentes, que se escondem atrás da fantasia para não terem que fazer pesquisa e nem preocupar-se com a verossimilhança de suas histórias. Ainda segundo a editora, os altos preços cobrados eram destinados especificamente aos autores de tais gêneros, pois em relação a eles não havia a menor possibilidade de sucesso devido à péssima qualidade das obras, e o dinheiro assim obtido seria investido nas carreiras de outros autores, mais talentosos.
Diante destas acusações graves e arrasadoras (com as quais eu concordo em parte, mas não em relação a todo e qualquer autor de ficção científica e fantasia), a SFWA se propôs a uma vingança: humilhar a PA provando que eles publicariam qualquer coisa desde que o autor estivesse disposto a pagar, e publicariam não apenas sem revisar, mas até sem ler.
Os autores se propuseram a escrever um livro que não apenas fosse terrivelmente ruim (mal escrito e incoerente), mas também cheio de erros óbvios: dois capítulos com a mesma numeração, um número de capítulo faltando, um capítulo com numeração menor que o anterior, personagens que não apenas morrem e depois reaparecem, mas até mesmo mudam de sexo de uma página para outra. Um dos capítulos foi produzido através de um programa de computador chamado Bonsai Text Generator, que produz frases gramaticalmente corretas, mas absolutamente sem sentido, a partir de um outro texto longo dado como amostra.
A obra assim produzida foi submetida à apreciação da PublishAmerica e não apenas foi aceita (com as congratulações e elogios de praxe, acompanhadas da “perspectiva de tornar-se um sucesso”) como foi supostamente “revisada” e “formatada” para impressão. Tendo coletado as provas (através de comunicações via e-mail) os autores foram aconselhados por um advogado a não assinar o contrato (pois incorreriam em falsidade ideológica) que permitiria a publicação (pois causariam prejuízo intencional). Preferiram divulgar amplamente o caso, achando que haviam obtido sua vingança.
Infelizmente, o mundo não é justo. Nasce um idiota a cada dia, e o fluxo contínuo de idiotas mantém a PublishAmerica funcionando e ganhando dinheiro até hoje. Talvez a PublishAmerica tivesse razão.

O que torna o caso de Charles Kembo literariamente interessante não são os aspectos intrínsecos de sua obra (que é provavelmente lixo), mas as circunstâncias que envolvem o autor. Se você já ouviu falar de “literatura marginal”, deveria engolir em seco, pois trata-se de muito mais do que isso: Charles Kembo é um assassino condenado à prisão perpétua por vários crimes ocorridos entre 2002 e 2005, um perfeito exemplar da fauna norte-americana de serial killers.

Por chocante que esta revelação possa parecer, ela traz à baila um debate importante para a literatura: até que ponto devemos separar a vida e a obra de um indivíduo. Recentemente, no Brasil, houve um sério debate sobre a proibição (ou pelo menos a restrição da divulgação) da obra infantil de Monteiro Lobato porque o autor era manifestamente racista. Charles Kembo é comprovadamente um assassino cruel e calculista, sem nenhum remorso. Isto, claro, é muito pior do que ser meramente racista. Ainda mais: ele está vivo, pronto para causar mais mortes se sair da cadeia, enquanto Monteiro Lobato, do túmulo, não pode produzir mais nenhuma frase racista além das que cometeu em vida. Quando do debate sobre a obra do criador do Sítio do Picapau Amarelo, defendi a tese de que as obras deviam ser analisadas em seu contexto, e não à luz dos defeitos do homem que as produziu, pois se formos policiar o caráter dos indivíduos para julgar o que fazem, então praticamente não haverá obra neste mundo que possa ser aceita, pois todos são, de alguma forma, moralmente reprováveis, ainda que apenas pelo bolinho que roubaram da vendedora ambulante quando crianças. Mas será que eu tenho a coragem de pregar o mesmo no caso de um assassino que se torna escritor?

No caso em questão eu não preciso me preocupar, porque o livro escrito pelo serial killer é uma porcaria óbvia. Ou melhor, pensando bem, preciso preocupar-me sim, porque a história recente nos tem mostrado que porcarias óbvias estão se transformando em livros muito vendidos e influentes. Não cito nomes porque não estou a fim de levar pedradas hoje, mas provavelmente você que me lê deve ter na cabeceira pelo menos uma obra que, se algum dia acumular mais leituras, se envergonhará de admitir que leu.

Então, se a falta de qualidade da obra não nos permite afastar a possibilidade de que ela faça sucesso (da mesma forma que a picaretice da PublishAmerica não a impede de continuar tendo um grande número de clientes até hoje), precisamos analisar o caso com atenção, e três perguntas se configuram:

1 - É aceitável que um criminoso tente tornar-se um artista? Vivemos a ilusão de que a cadeia é uma instituição que se propõe a regenerar o criminoso. Ao mesmo tempo convivemos com a existência no mundo de penas capitais e de prisão perpétua, que negam a possibilidade de regeneração de alguns criminosos ou, alternativamente, negam a aceitabilidade de que, tendo cometido certos crimes especialmente graves, alguém tenha o direito de querer regenerar-se. Existem até estudos psiquiátricos fundamentando que certos indivíduos, os tais “sociopatas” seriam criminosos incuráveis. Temos então duas posições possíveis, antagônicas.

A primeira nos diz que o indivíduo que comete um crime, qualquer crime, tem o direito de regenerar-se e eventualmente retornar ao convívio da sociedade, tendo cumprido sua pena. Se aceitarmos esta tese como correta, então não podemos negar a Charles Kembo o direito de aspirar a ser um escritor. Afinal, escrever é um tipo de trabalho (ainda que muita gente ache que não), inclusive um que tem grande potencial para utilização em tratamento psicoterápico ou psiquiátrico, devido à possibilidade que oferece de se ter acesso aos processos mentais do paciente. Permitir que um criminoso escreva é permitir que ele produz extenso material que pode ser utilizado para analisar seu comportamento e seus processos mentais, o que pode ser útil para definir se ele pode ser ressocializado.

A segunda posição nos diz que existem certos crimes para os quais não há e nem pode haver perdão ou regeneração, apenas a vingança. Você comete o tal crime e a sociedade se vinga de você, aprisionando-o pelo resto da vida em um cubículo, com acesso controlado a todas as coisas que definem a vida livre de um cidadão (ar puro, sol, liberdade de expressão, direito de ir e vir etc.), ou então matando-o de forma mais (enforcamento, apedrejamento, garroteamento, empalamento, linchamento, afogamento, sufocamento) ou menos (envenenamento, guilhotinamento, fuzilamento) dolorosa. Nesse caso a pretensão literária de um condenado à pena perpétua é uma violação de sua reclusão, e deve ser impedida.

2 - Quais os riscos envolvidos em ler uma obra produzida por um criminoso? Esta pergunta embute o conceito de que as pessoas são influenciáveis por aquilo que leem, o que eu acho correto, e que os autores conseguem fazer com que suas obras influenciem os leitores sempre em uma direção deliberada durante o ato da escrita, o que já acho altamente discutível. O grande problema com esta pergunta é que ela ignora um fato: não existe fundamentalmente nada diferente na mentalidade de um delinquente que não tenha pelo menos uma vez passado pela mente de alguém que nunca delinquiu.

A diferença é que algumas pessoas resolvem não fazer certa coisa, enquanto outras resolvem fazer. Podem existir razões que condicionam a escolha para uma direção ou para outra, mas existe também a sublimação: a possibilidade de converter um impulso destrutivo em uma ação não destrutiva. Um piromaníaco pode tornar-se um especialista em efeitos especiais, a fim de saciar sua vontade de ver as coisas queimando através da encenação de incêndios em cenários. E uma pessoa com tendências sádicas pode contentar-se em escrever livros profundamente violentos, detalhando torturas e mutilações espantosas. Nesse sentido, pelo pouco que li dos dois, existe mais violência na obra de um autor incensado, como Chuck Palahniuk, do que na tímida obra infanto-juvenil de Charles Kembo. Então é óbvio que o perigo de uma obra escrita por um assassino em série não está no seu conteúdo, visto que obras ainda mais violentas podem ser produzidas por pessoas de bem, que nunca fizeram mal a uma mosca. Se chegamos a esse ponto do raciocínio, fica a dúvida: qual seria, então a natureza do perigo envolvido na leitura de uma tal obra?

3 - Quais as motivações pelas quais Charles Kembo escreveu sua obra? Esta terceira pergunta é a consequência lógica da dúvida mencionada no item anterior. Se nos parece óbvio que o livro escrito por um criminoso violento e impiedoso não possui elementos tais, evidentemente isso se deve às motivações pelas quais a obra foi escrita. Quando Charles Kembo estava matando pessoas (sempre brancas, adultas e de classe média para baixo) ele tinha um determinado recado para a sociedade. Agora que ele está escrevendo, pode ser que ele tenha outro recado, relacionado ou não. Se existe um recado subjacente, então existe um perigo também: poderia o autor estar querendo passar algum tipo de mensagem codificada para alguém fora da cadeia? Ou está apenas querendo atrair simpatia para sua causa? Não custa lembrar que o famoso “Maníaco do Parque” pôde escolher uma esposa entre centenas de candidatas, jovens bonitas e estudadas — e não precisou escrever nada.

Penso que existem no mundo muitos livros mais perigosos do que qualquer obra escrita por um assassino confesso e condenado, como Charles Kembo (por quem, admito, desenvolvi certa simpatia ao escrever estes comentários). O autor dos “Protocolos dos Sábios de Sião” foi um funcionário público respeitável, que provavelmente morreu sem saber das consequências nefastas de seu patético esforço para convencer o povo russo de que todos os males do país eram resultado de um complô secreto dos judeus. É espantoso que tal livro tenha ensejado uma guerra mundial e justificado o massacre de dezenas de milhões de judeus ao longo do século XX (não estou me limitando aos judeus mortos pela Alemanha nazista, mas incluindo os linchados ou executados pela URSS, pela Turquia, pelas nações árabes após a partilha da Palestina e até pelos EUA). Dificilmente a obra humilde de Charles Kembo provocará algo de tal gravidade — e eu duvido muito que seja esta a sua intenção, a menos que ele tenha uma personalidade de vilão de desenho animado.

Como você já deve ter percebido, as respostas para estas três perguntas são difíceis. Para a primeira é possível simplesmente deixar que cada leitor escolha uma, de acordo com suas opiniões. Mas para as duas outras não há como achar explicação, somente poderíamos ter resposta se pudéssemos ler a mente do autor.

O resultado desta falta de solução é o espanto com que contemplamos o esforço literário de um condenado por tantas mortes. Cabe perguntar que tipo de gente se interessaria em ler tal livro? Que tipo de gente lê livros apelativos, pornográficos, violentos? Que tipo de gente desenvolve simpatia por criminosos (a ponto até de querer casar com eles)? Que mundo é esse, meu Deus?

Eu só sei de uma coisa: continuo mantendo a minha opinião. A obra é uma coisa separada do artista. Não me importa se quem a produziu era o maior dos depravados, desde que a obra produzida seja boa. Eu até acho aceitável rejeitar obras que tenham sido produzidas especificamente através do crime (uma obra escrita, por exemplo, com o sangue das vítimas do assassino, ou o seu diário “de campo” seriam totalmente inaceitáveis), mas se a obra não está diretamente conectada, na posição de “resultado” com o ato do criminoso, que mal há nela? Muitos autores foram, em algum momento de suas vidas, condenados (alguns até a morte). Tal condenação tem efeito retroativo para desqualificar as suas obras? Ou somente as obras produzidas depois dos crimes são “ruins”. Uma pessoa que comete crimes (especialmente crimes em série) não tivera sempre dentro de si o impulso para o mal?

Se não quisermos ter que responder a estas questões bizantinas, teremos que nos contentar com a solução pela simplicidade: julgue a obra por si, de forma que o autor possa até ser elevado ou rebaixado por ela, mas não deixemos que os erros ou acertos do autor interfiram nos erros ou acertos de sua obra. Pois, não custa lembrar, aquilo que é válido para o mal igualmente vale para o bem: devemos ler avidamente os livros péssimos escritos por pessoas de ótimo caráter?


17
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 12:12link do post | comentar

Continuando nossa série de análises sobre as sensacionais tirinhas do André Dahmer, hoje analisaremos uma que será realmente polêmica, e atrairá a ira de centenas de pessoas contra mim e fará com que muitos de meus amigos fiquem horrorizados, me excomunguem, me xinguem ou digam que estou louco, coisas assim:

Aqui não há necessidade de muita sutileza para entender a filosofia que está sendo apresentada. Antes que comecem a chover pedras e protestos, vamos explicar uma coisa bem claramente: não me parece que André Dahmer, nesta tirinha, esteja duvidando ou afirmando qualquer coisa a respeito de Deus em si. O tema é muito outro: ele está ironizando certas pessoas que falam em nome dEle.

O diálogo que vemos no primeiro quadrinho reúne um homem de físico avantajado e outro que aparenta ser, além de menos fisicamente dotado, também idoso. O homem de físico avantajado, segundo podemos deduzir de sua fala, tem o hábito de extorquir dinheiro das pessoas usando violência e/ou ameaça de violência. Ele está preocupado com a descoberta de que suas atitudes agora são criminosas. O velho então lhe lembra que é possível legalizar suas “atividades”, adaptando-as aos novos tempos. Vemos claramente nesses dois quadrinhos iniciais que os dois personagens são símbolos, e não indivíduos. O primeiro simboliza a máfia, o criminoso, essas coias. O segundo simboliza o jurisconsulto, o estadista, o espertalhão. Do diálogo entre os dois brota o “novo homem” do terceiro quadrinho: um personagem que ainda tem debaixo da roupa os músculos do tempo em que batia nos outros para roubar dinheiro (restos de um poder temporal?), mas que em vez disso extorque dinheiro usando meios mais sutis.

Para mim esta tirinha é um ataque às instituições religiosas em geral, vistas como um meio de vida para seus membros, que se aproveitam do temor sobrenatural do povo para obter dinheiro. Sob o disfarce de uma preocupação com o bem estar alheio, o ex mafioso lembra aos fiéis que "Deus precisa de dinheiro".

Não acho que os quadrinhos sejam uma referência exclusiva à Igreja Católica. A simbologia católica aí empregada serve apenas para identificar adequadamente que o personagem se tornou um líder religioso. Outras instituições religiosas não têm uma simbologia tão transparente que permita identificar de forma inequívoca a função do líder. Tendo dito isso, acho que não sei dizer mais nada sobre o quadrinho, apenas que o acho genial.


07
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 23:06link do post | comentar | ver comentários (1)

Quando ocorre uma tragédia de grandes dimensões humanas, algo infelizmente frequente, há muitos que se apressam em dizer que “este mundo está é perdido” e que nós vivemos o suposto “final dos tempos”. Quem estuda a História da humanidade a fundo sabe muito bem que jamais deixou de haver este conceito tão popular, de que o mundo “está acabando”, mas apesar de tudo o mundo segue aí, firme e forte em sua marcha rumo ao caos. Podem me acusar de insensível, mas a verdade é que quando fazemos uma análise detida da realidade, o que vemos é que o caos não é um acidente, o caos é uma característica. O mundo vai continuar, monstruoso e caótico como sempre foi.

Em um de seus discursos contra o conspirador Catilina o romano Cícero, contemporâneo ou quase do lendário Jesus Cristo, lamentou a decadência dos costumes de sua época: “Que tempos, que costumes!” — ou, como se dizia em latim: “o tempora, o mores”. Invectivas semelhantes podem ser encotradas por toda parte nas literaturas antigas: Egito, Índia, Mesopotâmia, Grécia. Não foram os gregos que imaginaram que viviam uma insossa “Idade do Ferro”, estágio final de degradação da humanidade, que já havia passado por uma Idade do Ouro, uma Idade da Prata e uma Idade do Bronze?

Mas apesar de toda a lamentação dos que contemplam as mudanças, “o novo sempre vem”, como profetizou Belchior, antes de desaparecer.

Talvez a coisa mais difícil a enfrentar nesse mundo não seja a existência propriamente dita de injustiças e violências, mas o fato de que o mundo continua depois. Como sentenciou Millôr Fernandes, em sua peça “A História é uma História”: “O crime foi espantoso, mas o morto nem liga.”

Apesar de tudo que vivemos, apesar de tudo que nos fizerm (de bom ou de mau), se amanhã estivermos mortos ou esquecidos a marcha amoral do mundo vai continuar. Com ou sem as ararinhas azuis extintas, o mundo vai continuar. A roda inexorável da História vai seguir adiante e o “fim dos tempos” é apenas um desejo que o injustiçado tem de que o seu sofrimento seja o derradeiro sofrimento, de que sua morte seja mais significativa do que todas as demais que aconteceram antes. É apenas uma forma de se sentir especial: achamos que o mundo está acabando porque achamos que sofremos mais do que sofreram nossos pais, pois antigamente “era melhor”.

Quando nascer o amanhã, haverá outras mortes, outros crimes, mais caos. O mundo continuará com as garras vermelhas de sangue, de culpados e inocentes, indistintamente. A poesia não morreu em Auschwitz, ao contrário do que disse um poeta soviético cujo nome não vou pesquisar agora na Wikipedia. Aliás, hipócrita este poeta que não via o caos doméstico, mas tinha a permissão de dramatizar as valas e os fornos alemães.

Somos assim ainda. Somos ainda cegos demais para entender que somos insignificantes, que nossa morte, nosso sofrimento, nada disso representa uma ameaça à continuidade do mundo. Muito pelo contrário: é nosso sonho louco de que possuímos alguma capacidade de afetar a continuidade do mundo que está colocando em risco a nossa própria continuidade enquanto espécie.

Não é o fim dos tempos, é apenas “o de sempre”. Violência é o mel do homem. Com ela estupramos a natureza e criamos para nós um espaço muito maior do que as nossas savanas originais. Nesse momento em que o caos nos aflige de tantos lados simultâneos, com seu ruído e sua cara feia, somos apenas codornas apertadas numa gaiola. O caos é apenas uma estratégia evolutiva: nós nos destruímos para abrir espaço porque estamos sufocados demais pela presença do outro.


22
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
Quando contemplas o abismo, o abismo também te contempla. — Nietzsche.

Quando Roberto e Teresa foram vistos a sair da cidade para um passeio no campo ninguém podia imaginar o que estava por acontecer naquela tarde. Naquele domingo nada de especial parecia estar ocorrendo aos olhos de quem os visse passar no jipe: eram os mesmos sorrisos, a mesma falta de precaução que é tão característica do amor.

Iam a um desses lugares calmos onde se pode nadar e permanecer por horas sem ser molestado pela presença de seres humanos. Havia uma piscina natural cercada de areia fina e pedras, próxima a umas colinas ermas de onde não se ouvia nenhum rumor de civilização e podiam ficar à vontade. Lá chegaram pelas duas ou três da tarde. Deixaram as roupas sob uma árvore e foram nadar. Ela despiu-se porque fez questão de, naquele momento, estar nua. Roberto nunca entendia estas insistências que lhe ocorriam. Para ele tanto fazia uma coisa ou outra, não entendia a magia da nudez. Nenhum prazer ele sentia nisso.

Ela saiu sorridente da água fria e estendeu uma toalha sobre um trecho de gramado e deitou-se. Tudo parecia estar tão bem. Mas não aos olhos de Roberto.

Ele foi até o jipe, tomou o embrulho de papel pardo que estava sob o banco do motorista e aproximou-se a passos curtos e leves. Estava pronto, ou assim pensava. Num gesto muitas vezes ensaiado rasgou o envelope com fantástica rapidez e segurou o revólver com firmeza.

Teresa estava entorpecida pelo calor gostoso do sol e deixava que seus raios dourassem sua pele. Nada percebera. Roberto então aproximou-se, saltou sobre ela, segurou sua boca com a mão esquerda e encostou o cano do revólver sobre o mamilo esquerdo, um pouco para dentro do peito. Disse friamente: “Você não vai me estragar a vida, sua piranha. E nem esse bastardo que você carrega no bucho e não é meu”.

Pôr um momento os cavalos ergueram suas cabeças sobressaltados, quando um grito tentava rasgar a tarde. Mas depois voltaram a pastar na mesma tranqüilidade de antes. A cidade não ouviu e o rio continuou a correr discretamente.

Roberto olhou as mãos, surpreso com o seu ato, mas faltou a coragem de punir-se. Olhou em torno e não havia mesmo testemunhas, a não ser os pássaros. Cerrou os olhos e saboreou de novo a intensidade de haver matado, não lhe sobreveio nenhum sabor especial. O sol brilhava igual, o mesmo vento sacudia as folhas, nenhum silêncio novo amaldiçoava o ar e nenhuma atmosfera diferente envolvia a paisagem.

Saciado nesta certeza, abriu de novo a sua perspectiva em direção à realidade e viu apenas o que viu. Apesar do estrondo da arma de fogo ninguém viera acudir e o eco tivera tempo de estender-se ininterrupto até morrer de repetir-se.

Agora estava incrivelmente só, mas o arrependimento não vinha. Teresa jazia a seus pés, uma flor vermelha amanhecia em seu peito e o vento não desistira de agir em seus cabelos. Soltou a arma, depois apanhou de volta, racionalizado: não poderia deixá-la onde poderiam encontrar.

Assim iniciou-se o trabalhoso processo de ocultação de toda prova que lhe fosse possível identificar. Embrulhou o corpo na toalha, nu mesmo, e ocultou-o entre duas pedras, sob uma árvore, dentro da corrente do rio. Era verão e muitas chuvas fortes costumavam ocorrer ao anoitecer. A próxima provavelmente a levaria água abaixo.

O resto dos pertences, embrulhou num saco de plástico e enterrou na margem, um buraco de um metro e pouco de fundura pareceu suficiente. Depois de alisar a areia o quanto pôde, achou que já estava bem perfeito. Escondeu a arma outra vez debaixo da poltrona do carro e deu as costas a quem fora seu amor.

Antes de chegar ao pé do morro olhou de volta como se quisesse confirmação de que ela não se levantara. Não havendo sinais de atividade, continuou andando em direção ao jipe. Ao tocar a fria maçaneta da porta lembrou-se subitamente do que realmente fizera, uma escuridão baixou em seus pensamentos e uma náusea cruel comprimiu o seu estômago até o almoço cair ao chão.

Respirou fundo, buscou forças e limpou o amargo-ácido que ficara na boca com um bochecho do resto de água mineral que ficara na garrafa de plástico. Então pôr um momento se deu conta de haver lágrimas em seus olhos.

Quis raiva, como se elas fossem uma cobrança injusta que Teresa ainda lhe fazia, mas já se sentia a pisar num pântano: o pranto saiu grosso e entrecortado, com dentes rangendo, calor no rosto e tremor nas mãos que apertaram-se no vazio até as unhas ferirem a pele. Chutou com fúria os duros pneus, cuspiu o resto do amargo, arrancou cabelos e sentou-se ao volante para acalmar-se. Quis ouvir uma canção, ou um ruído que rompesse a redoma de silêncio que o comprimia e acusava. Mas as mãos tremiam a ponto de não conseguirem sintonizar o rádio e a ponto de deixarem cair as fitas.

Olhou para cima, esperando que Deus mandasse o seu anjo para fender-lhe o crânio com uma espada flamejante mas havia apenas nuvens desmaiadas escorregando pelo céu azul-aço. Xingou e Deus não o puniu. Gritou e ouviu só o silêncio que insistia. Lembrou-se de estar a vinte quilômetros da estrada principal e este pensamento, que a princípio fora providencial e confortável, pareceu naquele momento desesperador. Apenas grilos denunciavam a sua premeditação.

Enquanto se vestia começou a refletir sobre as possíveis conseqüências de seu ato. Algumas nuvens negras a mais toldaram o horizonte, mas era apenas chuva.

Caminhou de volta sem saber porque o fazia. Talvez vontade de vê-la viva. Mas viu apenas a verdade e isto o fez ouvir mais alto o zumbido/grito do silêncio no fundo de seus ouvidos. Sentou-se numa pedra e pôs-se a contemplar o cadáver, como se nunca antes houvesse tomado consciência da beleza manifesta nela.

À medida que os lábios que beijara alteravam sua cor e exalavam últimos vestígios de calor e os olhos iam se vidrando até assumirem uma crueldade acusadora, relembrou cada instante de ciúme e ao reler seus atos a certeza que o movera dissipou-se em contradições que o fizeram rir. A morte parecia santificar o corpo profanado pelo amor torto que lhe dedicara e violado pelo tiro, última dádiva de quem pouco soubera dar. A inofensividade angelical que havia nela morta!…

Não suportou mais. Um mugido interrompeu a sua dor. Era uma boiada tocada por alguns cavaleiros. Então se deu conta da besteira de ainda estar ao lado do cadáver, levantou-se, desceu rapidamente o morro e tomou o jipe. Dirigiu com saudades e sentiu os solavancos no fígado e nos rins. Ao passar pela primeira ponte de madeira teve ganas de atirar fora o revólver, mas pensou a tempo de interromper o gesto: sendo ainda tão perto seria um lugar provável para que procurassem.

Passou por um homem de ar triste e dentes enegrecidos de cáries que ia em uma charrete, olhou-o com toda a naturalidade que foi possível, mas ainda assim levou a impressão de que ele retivera o seu rosto na memória. As árvores às vezes pareciam dobrar seus galhos sobre a estrada para decapitá-lo.

Atraído por um ruído de cachoeira tomou um desvio, metros depois parou à beira do abismo e contemplou um amplo vale em cujo outro lado despencava uma cascata formidável duma altura de uns setenta metros. A água se despedaçava nas pedras como um copo de vinho que cai da mão.

O sangue retornou à lembrança, Armando olhou suas mãos, certamente impregnadas do doce cheiro da pólvora. O estômago agora exigia alimento. Desceu. Sentir-se pisando o chão de novo deu-lhe de volta um pouco da sensação de estar vivo que parecera estar definitivamente perdida.

A cachoeira chamava e a grama estalava de prazer sob os seus pés. Sentou-se no chão, descalçou os pesados sapatos de motociclista, o súbito vento neles enterneceu-o a ponto de querer chorar, cada dedo gritava de felicidade ao pisar livre. As saudades desapareceram porque era um belo mundo novo, sequer relatado por testemunhas humanas. Muitas eram as novas terras a explorar, muitos os mares novos a navegar.

O vento se intensificou, como num convite. Arrancou a camisa com um ímpeto apaixonado, desfez-se da calça. Em torno ninguém estava. As vozes de Legião estavam no abismo e lhe contavam que os boiadeiros haviam encontrado o corpo, que na verdade havia um arraial perto da colina, que o homem da charrete era bom fisionomia, que muita gente os tinha visto deixar a cidade, e Deus também sabia. Mas o vento o acarinhava com uma ternura que o fazia chorar.

De repente acordou do devaneio se sentindo estúpido por estar lá nu e ouvindo pensamentos que não deviam ser os seus. Ergueu-se do chão para seguir fugindo. Se fosse pego, haveriam de pegá-lo longe. Havia esperança, apesar do medo.

Tirou o revólver de dentro do bolso da jaqueta, olhou-o firmemente amaldiçoando-o. Fora ele que possibilitara a loucura. Não fosse ele e Teresa estaria ainda viva. Arrojou-o longe dentro do abismo e abaixou-se para pegar de volta as roupas que estavam pelo chão. Afinal, não fora tudo mera deformação da realidade pelos seus sentidos enlouquecidos pela culpa?

Decidido a levar adiante a vida que quase fora desperdiçada por um simples escorregão, Armando tomou uma estrada diferente da que percorrera na vinda e voltou à civilização.

Texto escrito originalmente em 2002.

03
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 22:08link do post | comentar
Ao mesmo tempo oriental e desorientado
o cãozinho deu no jardim e ficou parado
pela morte que se apanha no mínimo tato.

Deram-lhe bola ou a comeu por destino.
A meia-noite chegou cedo, chegou dura
com estrelas demais e sem promessas.

Assoviaram de algum lugar no escuro,
o silêncio dos olhos empoçados
não se alterou nem de leve.

O silvo passou no ar como uma outra pedra.

Originalmente escrito em 1997. Direto do “Túnel do Tempo”


29
Nov 10
publicado por José Geraldo, às 13:54link do post | comentar | ver comentários (1)

Durante décadas o Brasil assistiu ao surgimento e ao crescimento do poder paralelo do tráfico no Rio de Janeiro, à sombra de um coquetel de incompetência, indiferença e conveniência. Causas que me esquivo de analisar a fundo, mas que os cariocas certamente entendem bem melhor do que eu, que olho de fora e com apenas solidariedade. A derrocada deste poder paraestatal que pareceu, em certo momento, triunfar sobre o Estado — sentimento magistralmente expresso pelo gaiato que certa vez declarou que «o crime organizado triunfa sobre o governo desorganizado» — deu-se no entanto, na esteira de um curioso fenômeno sociológico que quase ninguém ainda percebeu. Do que estou falando? Bem, «tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você».

Tudo começou quando o crime organizado rompeu o acordo tácito que sempre teve com a imprensa sensacionalista: «nós fazemos a notícia, vocês fazem o noticiário». A morte de Tim Lopes sinalizou que os líderes do narcoestado em gestação haviam começado a perceber na imprensa uma fonte de problemas, não mais uma aliada. Se antes os repórteres construíam as reputações de «malvadões» — de que tanto gostavam os jovens semianalfabetos e descalços que se alçavam ao poder propelidos pelo vício das classes superiores — agora ela passava a incomodar, à medida em que expunha os excessos a que os baronetes do tóxico haviam chegado, em sua ditadura sobre as vidas dos habitantes das localidades onde haviam se instalado. Tim Lopes morreu para mostrar que a favela não era um lugar pitoresco — ao contrário do que décadas de políticos conciliadores e ONGs escorregadias tentaram fazer ver.

Mais importante do que tudo: Tim Lopes era empregado de um Leviatã midiático bem musculoso, embora ferido, as Organizações Globo. Sua morte coincidiu com a derrocada definitiva da televisão aberta no Brasil, destinada desde já a transformar-se cada vez mais num monturo fétido de sobras. A Rede Globo de Televisão, cabeça deste império, precisava buscar outras frentes de expansão para precaver-se contra a iminente e inevitável decadência de suas receitas de publicidade oriundas deste veículo. Neste contexto, a exploração de novos mercados midiáticos já era uma realidade, mas faltava à Globo obter o impacto necessário para fincar bandeira.

Ao mesmo tempo, a política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro dava sinais de agonizar: nada parecia funcionar, nada parecia adiantar. Nesse cenário de desespero, em que todos pareciam desorientados, especialmente os pobres diabos que conviviam com loucos toxicômanos tarados armados de AR-15 na vizinhança, era absolutamente imperioso encontrar um herói. Melhor ainda se este herói, bem na tradição do herói brasileiro, não fosse um self-made man ou um cavaleiro solitário, mas um líder — algo de que tanto carece esse país.

Com a colaboração dos melhores cérebros que o dinheiro pode contratar, com atores globais em profusão, aproveitados da geladeira obrigatória por que passam para evitar desgaste de imagem, eis que surge «Tropa de Elite», o filme que transforma o antes pouco conhecido Batalhão de Operações Especiais da polícia fluminense em um fenômeno de mídia inusitado e inédito. «Tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você». A mensagem é dirigida ao traficante, e tem a intenção de profecia: um dia a casa vai cair e vai ser o caveira que vai dizer «perdeu, playboy» para o traficante descalço e sem camisa, cuja prisão emblemática funciona quase como símbolo heráldico da luta de classes, como expressão caricatural da subjugação do povo pela elite, quando incomodada.

Criado o mito do BOPE como reserva incorruptível dos valores da «boa polícia» e fixada a imagem do Capitão Nascimento como verdadeiro super-herói brasileiro, a Rede Globo entregou, de bandeja, nas mãos de um dos poucos governadores competentes que o Rio de Janeiro já teve desde que me entendo por gente, um cartucho de legitimidade para as forças da ordem, uma potência que poderia ser usada para terraplenar o crime organizado sem necessidade de ser politicamente correto. O povo carioca queria sangue, estava cansado de dar o próprio sangue e exigia o sangue dos bandidos (mas urina nas calças também serviria).

Não é necessário entrar nos detalhes de cada ato ou de cada política que foi levada a efeito no Rio de Janeiro desde que o primeiro Tropa de Elite invadiu a cultura de massas com sua mensagem clara de que, para o carioca e para o brasileiro, já bastava, já havia bastado há muito tempo, já havia bastado há muito tempo mesmo, só faltava os políticos, esses eternos maridos traídos, finalmente conseguirem enxergar, antes que dessem com a verdade como quem dá com o nariz na parede. O plano para matar Brizola, que aparece nessa história, não é detalhe desimportante: ele significa que é necessário matar o legado do caudilho gaúcho que introduziu a política de tolerância com a favela.

Quando Tropa de Elite saiu, alguns articulistas ventilaram na imprensa que o filme tinha uma mensagem fascista. Possivelmente. Mas poucos articulistas ventilaram que o crime organizado que se estabelecia em pseudoestado impunha, também, um totalitarismo manco.

Por isso Tropa de Elite 2 foi além do livro e colocou o Capitão Nascimento, já grisalho, tentando executar, através da política, o que não pudera executar com um fuzil na mão. Mas o poder do crime subornava deputados, juízes e sabe deus quem mais. Com o sucesso ainda maior, do segundo filme, ficou bem claro que todos que ventilassem qualquer coisa contra a arremetida inevitável contra o crime só poderiam estar mancomunados. Todos precisavam aplaudir, mesmo que tivessem as mãos sujas de sangue e o nariz entupido de cocaína.

Então, quando enfim, com apoio de blindados e bazucas, de marinha e de exército e de aeronáutica, o BOPE subiu a favela deixando atrás de si as crianças (em sua inocência) cantando o poderoso refrão, não foi inesperado que os «machos» do crime mijassem nas calças. Imaginar que dois mil homens treinados para matar estão subindo o morro atrás de você e que cada vizinho ou conhecido, de oito a oitenta anos, está com o dedo pronto para apontar seu esconderijo deve ser uma das coisas mais desesperadoras que se possa conceber. Tanto assim que o líder do Afro-Reggae chegou a declarar à imprensa que muitos chefões do tráfico estariam dispostos a render-se, que sabiam que pegariam «cana longa», alguns sabiam que até seriam mortos, mas eles pediam apenas que não fossem humilhados. Os facínoras se renderiam, até se entregariam à morte, diante de apenas a promessa de uma réstia de dignidade. Nenhum queria terminar como o Zeu, descalço e seminu, com as calças molhadas da própria urina e um olhar perdido, endurecido de medo, levado morro abaixo por um PM grisalho que tinha idade para ser seu pai. Em algum momento aquele jovem deve ter pensado na figura do próprio progenitor, de cita à mão, pronto para marcar suas nádegas de rebelde.

E assim a Rede Globo inspirou, guiu e cobriu um episódio quase orwelliano. Em que pese a necessidade de se destruir o crime, de se pacificar a cidade, de se destronar a ditadura do tóxico; é também verdade que esta destruição foi mais em efígie do que em fato, que ela foi preparada como espetáculo politicamente correto e funciona como exemplo do poder que Rede Globo ainda tem, apesar do sonho fútil de grandeza a que a Record aspira apenas. A Globo mostrou que tem o poder de produzir mais do que bordões de novela: ela produziu um mito que funcionou como instrumento de um fato histórico. Algum dia os historiadores se referirão a este ano de 2010 como o ano no qual um império midiático, ofendido em sua honra pela ousadia de matarem um protegido seu, orquestrou fria e meticulosamente, um fenômeno de massas de grande envergadura que terminou em uma cobertura jornalística de um fato real (embora transcrito da ficção).

E ficou o bordão, como um mantra a ameaçar doravante os que ousarem tentar criar outro pseudoestado ou que se opuserem à clara hegemonia cultural de que se fala: «Tropa de Elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você.»


12
Nov 10
publicado por José Geraldo, às 18:09link do post | comentar

Os pedagogos do MEC, responsáveis pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (esta peça de humor pastelão que rebatizou o ensino de português como “Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias”) acharam que não seria apropriado que a obra “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, um clássico de nossa literatura, fosse distribuída às bibliotecas de nossas escolas públicas, afinal existem nela resíduos de racismo que podem traumatizar as crianças negras ou tornar em potenciais hitlers todas as demais.

No entanto, segundo tive o desprazer de ver hoje no telejornal matutino da Rede Record, o critério para considerar impróprio o livro de Lobato parece muito mais vago do que inicialmente parecia — e ele já parecia muito vago.

O caso é que ao mesmo tempo em que pretendeu censurar um clássico da literatura por conter trechos potencialmente racistas, o MEC não viu problema algum em distribuir a mais de quarenta mil escolas do Brasil a tradução portuguesa de um mangá de Kazuichi Hanawa intitulado “Na Prisão”.

A escolha do tema já é, por si só, preocupante. Em vez de pretender ensinar conteúdos positivos para os jovens, o MEC achou que seria interessante que eles aprendessem sobre como é a vida em uma prisão japonesa. Mas me abstenho de imaginar razões para a escolha do tema e me restrinjo a tentar compreender como ou porque esta obra em especial foi aceita.

Porque Kazuichi Hanawa não a escreveu para crianças em idade escolar — e sim para adultos. No Japão o consumo de mangá e animê pelos adultos é pelo menos tão grande quanto para crianças. A temática da obra em questão não é nada “infantil”: trata-se do retrato da cruel rotina de uma prisão, na qual o protagonista encontra todo tipo de gente e ouve todo tipo de histórias — inclusive histórias que envolvem crimes sexuais (hetero e homo), uso de drogas (até injetáveis), tortura (física e mental), nudez representação gráfica de órgãos e atos sexuais (como estupro, masturbação e outras coisas).

Ressalva: como não li a obra, estou deduzindo tudo isto a partir das imagens que foram exibidas pelo telejornal e pelas descrições da obra que encontro na Internet. Mas adoraria que quem tenha lido me envie mais detalhes.

Tudo isso pode ser aceitável (e o é) numa obra voltada para um público adulto, devidamente distribuída de forma discreta e contendo na capa alerta sobre o conteúdo inapropriado. Mas como algum pedagogo resolveu achar que uma obra de conteúdo tão pesado seria apropriada para crianças que já enfrentam tanto conteúdo impróprio no mundo?

Eu ainda achava tolerável quando a obra do MEC era caracterizada apenas pela incompetência (que tantas vezes levou este órgãos a escolher os piores livros didáticos possíveis) e pelo descaso (expresso no sorridente diagnóstico de que “a educação neste país já está bem encaminhada”); mas agora tudo tomou proporções totalmente diferentes: já não se trata apenas de incompetência e de descaso, deve haver alguém deliberadamente sabotando a educação no Brasil — ou então a corrupção e a inépcia dos funcionários do MEC atingiu níveis nos quais já não seriam capazes de diferenciar entre a própria bunda e uma melancia.

Referências:

  1. Link para a reportagem no portal R7:
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<p>Os pedagogos do MEC, responsáveis pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (esta peça de humor pastelão que rebatizou o ensino de português como &ldquo;Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias&rdquo;) acharam que não seria apropriado que a obra &ldquo;Caçadas de Pedrinho&rdquo;, de Monteiro Lobato, um clássico de nossa literatura, fosse distribuída às bibliotecas de nossas escolas públicas, afinal existem nela resíduos de racismo que podem traumatizar as crianças negras ou tornar em potenciais hitlers todas as demais.</p><p>No entanto, segundo tive o desprazer de ver hoje no telejornal matutino da Rede Record, o critério para considerar impróprio o livro de Lobato parece muito mais vago do que inicialmente parecia &mdash; e ele já parecia muito vago.</p><p>O caso é que ao mesmo tempo em que pretendeu censurar um clássico da literatura por conter trechos potencialmente racistas, o MEC não viu problema algum em distribuir a mais de quarenta mil escolas do Brasil a tradução portuguesa de um <a href="http://pt.wikipedia.org/wiki/Mang%C3%A1" rel="noopener">mangá</a> de Kazuichi Hanawa intitulado &ldquo;Na Prisão&rdquo;.</p><p>A escolha do tema já é, por si só, preocupante. Em vez de pretender ensinar conteúdos positivos para os jovens, o MEC achou que seria interessante que eles aprendessem sobre como é a vida em uma prisão japonesa. Mas me abstenho de imaginar razões para a escolha do tema e me restrinjo a tentar compreender como ou porque esta obra em especial foi aceita.</p><p>Porque Kazuichi Hanawa não a escreveu para crianças em idade escolar &mdash; e sim para adultos. No Japão o consumo de mangá e animê pelos adultos é pelo menos tão grande quanto para crianças. A temática da obra em questão não é nada &ldquo;infantil&rdquo;: trata-se do retrato da cruel rotina de uma prisão, na qual o protagonista encontra todo tipo de gente e ouve todo tipo de histórias &mdash; inclusive histórias que envolvem crimes sexuais (hetero e homo), uso de drogas (até injetáveis), tortura (física e mental), nudez representação gráfica de órgãos e atos sexuais (como estupro, masturbação e outras coisas).<br /></p><p><span style="font-style:italic;font-weight:bold;color:rgb(153,153,153);">Ressalva: como não li a obra, estou deduzindo tudo isto a partir das imagens que foram exibidas pelo telejornal e pelas descrições da obra que encontro na Internet. Mas adoraria que quem tenha lido me envie mais detalhes.</span></p><p>Tudo isso pode ser aceitável (e o é) numa obra voltada para um público adulto, devidamente distribuída de forma discreta e contendo na capa alerta sobre o conteúdo inapropriado. Mas como algum pedagogo resolveu achar que uma obra de conteúdo tão pesado seria apropriada para crianças que já enfrentam tanto conteúdo impróprio no mundo?</p><p>Eu ainda achava tolerável quando a obra do MEC era caracterizada apenas pela incompetência (que tantas vezes levou este órgãos a escolher os piores livros didáticos possíveis) e pelo descaso (expresso no sorridente diagnóstico de que &ldquo;a educação neste país já está bem encaminhada&rdquo;); mas agora tudo tomou proporções totalmente diferentes: já não se trata apenas de incompetência e de descaso, deve haver alguém deliberadamente sabotando a educação no Brasil &mdash; ou então a corrupção e a inépcia dos funcionários do MEC atingiu níveis nos quais já não seriam capazes de diferenciar entre a própria bunda e uma melancia.</p><p>Referências:</p><ol><li>Link para a reportagem no portal R7: <a href="http://noticias.r7.com/videos/escola-estadual-de-porto-alegre-rs-disponibiliza-livro-improprio-para-criancas/idmedia/9c6ccd8b5bc9f7354564c68bfd6c24f7.html&rdquo; target=" _blank"="_blank&quot;" rel="noopener">http://noticias.r7.com/videos/escola-estadual-de-porto-alegre-rs-disponibiliza-livro-improprio-para-criancas/idmedia/9c6ccd8b5bc9f7354564c68bfd6c24f7.html</a></li><li>Prova de que o livro foi distribuído pelo MEC: <a href="http://www.fomezero.gov.br/noticias/escolas-publicas-recebem-historias-em-quadrinhos&rdquo; target=" _blank"="_blank&quot;" rel="noopener">http://www.fomezero.gov.br/noticias/escolas-publicas-recebem-historias-em-quadrinhos</a></li></ol><p>Agradeço quem puder contribuir scans das páginas desta história, ESPECIALMENTE scans da edição distribuída pelo MEC, que contém o selo do PNBE na capa.</p>

25
Out 10
publicado por José Geraldo, às 19:13link do post | comentar

Estou aqui com dois ótimos contos, em fase quase de conclusão. Mas estou com receios de postá-los neste blogue. Na fase atual em que me encontro, buscando atenção e uma editora, talvez fosse interessante postar aqui alguma coisa polêmica (e nada polemiza tanto quanto falar de religião, visto que vivemos uma fase de aguçamento das sensibilidades religiosas nesse país). Porém ainda estou em dúvida se estou disposto a pagar o preço de obter tal atenção.

Um dos textos em questão, chamado «Jó e Jeová», nada mais é do uma narrativa em estilo sóbrio e seco dos episódios envolvendo os dois personagens em questão. A história é desenvolvida de forma bem próxima ao texto original, sem procurar adicionar nenhum personagem ou episódio — a não ser um pequeno desvio da trama, para enriquecer o personagem Satanás e dar mais vivacidade ao seu diálogo com Jeová. Temo, porém, que os cristãos e judeus não estejam preparados para ver a história de Jó contada numa linguagem chã e linear, como estou fazendo.

O outro texto é um conto pós-apocalíptico. Literalmente. Uma história que procura imaginar como seria viver na «Nova Jerusalém» descrita no Apocalipse. Esse é certamente mais herético, porque vai além do texto da Bíblia. Esse é o que mais me preocupa. Principalmente porque, em vez de um ateísmo marxistão e simplório, ele tergiversa com misticismos vários, Dante Aligheri e algumas doses homeopáticas de bom senso (para obter efeito contrário, como sói acontecer na homeopatia).

Ocorre auto-censura quando, mesmo não havendo leis que proíbam ou dificultem a produção ou divulgação de certos conteúdos, os autores se sentem desconfortáveis, «desconvidados» a produzi-los e divulgados por receio das consequências difusas que podem advir de sua publicidade. Este sentimento começou quando comecei a postar no meu antigo blog um texto argumentando contra a razoabilidade da crença em revelações divinas. Como o texto começava dissecando as afirmações de Maomé a respeito do Alcorão, recebi uma enxurrada de email enviado por muçulmanos. Alguns educadamente dizendo que eu estava errado e que eles oravam para que eu encontrasse a verdade, tal como os cristãos educados fazem. Outros não eram tão polidos e partiam para ameaças de diversos tipos. Um deles, por exemplo, fez questão de me lembrar que, segundo a teologia islâmica, todos somos criados «muçulmanos» e os que não se submetem de fato vivem em rebeldia contra o seu estado natural, de forma que um clérigo mais radical pode acusar qualquer um de apostasia, mesmo o suposto apóstata nunca tendo declamado a shahadda.

Quando isso aconteceu eu fiquei muito revoltado porque eu não podia aceitar que em um país livre eu tivesse constrangida a minha liberdade de expressão. Depois eu amadureci, com o tempo, à medida em que fui encontrando outras manifestações de intolerância, como os neonazis que descobriram o meu telefone e ameaçaram a minha família porque eu os ridicularizei em um debate sobre o nazismo em uma comunidade do Orkut, ou como os cristãos que disseram que enviariam mensagens ao meu empregador denunciando meu comportamento como contrário aos interesses da instituição. Estes fatos me mostraram que, de fato, não estamos em um país livre, pois não há liberdade onde não há garantia de justiça e, pior, não adianta garantia de justiça quando lidamos com fanáticos que não ligam para as consequências. Como o assassino de Theo van Gogh, que não se importaria nem mesmo de ser executado, pois crê ter prestado um serviço a Deus e cumprido em vida uma missão que é mais importante do que a vida que poderia viver se não a tivesse cumprido.

Estas coisas nos mostram que, de fato, o espírito livre está o tempo todo comprimido, a cotoveladas, pela multidão que pensa em contrário. E isso nos leva à auto-censura, pelo menos enquanto, como no meu caso, não temos poder econômico suficiente para resistir a um processo cível, que uma maneira de punir uma pessoa que não cometeu crime, forçando a gastar dinheiro em uma defesa, ou para contratar guarda-costas.

Por causa desta sensação de insegurança em que vivo, e da imagem pública que preciso cultivar em função de meu emprego, eu desisto de publicar certos textos mais polêmicos e vou postando inofensivos poeminhas e continhos mais contidos. Um dia, se virar best-seller, terei coisas mais polêmicas para postar.


08
Set 10
publicado por José Geraldo, às 20:03link do post | comentar

Em 2003 já era difícil ter paz sonora neste mundo em que o ruído supre a carência de atenção do indivíduo face à indiferença de uma sociedade numerosa e apática. Sete anos depois, mesmo o horrendo sucesso «musical» tendo sido esquecido, as ideias e os sentimentos continuam atuais como nunca:

O meu vizinho de frente comprou um toca-discos. Seria um acontecimento banal se hoje em dia este simples eletroeletrônico não se tivesse transformado num equipamento perigoso que pode ser usado para o mal. E infelizmente a potência do aparelho é inversamente proporcional à cultura e à educação do proprietário.

Não o vi chegar, por isso assustei-me quando ouvi aqueles ruídos e batidas que faziam fundo à voz amarfanhada de alguém que declarava sem misericórdia que eu estava dominado, que todos estávamos dominados!

A princípio pensei que havíamos sido invadidos, quem sabe por alguma raça de bárbaros, por dominadores marcianos ou mercenários ianques. Ou então que o crime organizado resolvera, enfim, substituir o confuso e obsoleto poder público. Após o susto inicial, reuni coragem e cheguei a janela. Meu vizinho, juntamente com alguns amigos estava sentado à calçada enquanto um toca-discos reluzindo de novo se exibia de dentro de sua sala para a rua vociferando ameaçadoramente em centenas ou milhares de watts P.M.P.O.

Por horas a mesma música se revezou consigo mesma na preferência daqueles rapazes, atritando com a minha sensibilidade até o limite extremo. Eram já sete e meia da noite de sábado e eu não suportava mais que gritassem que eu estava dominado porque me considero um sujeito indomável, ou sonho sê-lo.

Saí então de casa, como se for à rua fosse uma atitude capaz de contornar o intolerável da situação, já que não era plausível ir até o vizinho e pedir-lhe a fineza de ouvir a sua “música” em volume urbanamente aceitável porque hoje em dia as pessoas não são mais razoáveis, parece que se tornaram incapazes de compreender qualquer coisa que lhes diminua o terreno e um pedido dessa natureza poderia ser respondido com grosseria, com uma agressão ou com um recrudescimento do já insuportável volume.

Minha única possibilidade de não ser dominado seria ter força suficiente para derrotá-los a todos em uma luta corporal e destruir o demoníaco instrumento de ódio que me impedia de gozar do ócio de sábado dentro de minha própria casa. Claro que eu também poderia fugir, e foi o que tive de fazer.

Eram cerca de oito horas e trinta minutos quando cheguei ao centro da cidade, andando, é claro, sem a mais tênue sombra de pressa. No meio da avenida encontrei um amigo e nos sentamos para tomar umas cervejinhas em um barzinho sossegado ao som da boa e velha MPB, que anda ganhando mofo e perdendo qualidade a cada novo fenômeno não descoberto que faz concurso público em vez de gravar outro disco. Mas a companhia foi somente por uma cerveja, pois meu amigo era casado recente e sua esposa não aceitaria facilmente que permanecesse pelas ruas até altas horas sozinho no sábado.

Fomos juntos até a esquina, onde nos despedimos e voltei a andar a esmo pela rua, buscando distração e companhia. Minutos depois estava no centro nervoso da noite cataguasense e não estava bem. Perambular pelas ruas à noite perdeu o sentido: em vez de ser divertido, tornou-se um desprazer perigoso. Ao virar uma esquina dei de frente com três rapazes enrolando um «baseado». Fingi que não vi — mas vi — e continuei andando para não chamar a atenção. Na esquina meninas precoces contavam aventuras sexuais em alta voz para quem quiser ouvir. Um grupo de bêbados dizia vulgaridades a mulheres vulgares que passavam desfilando carne e produtos de beleza enrolados em tecidos da moda. Ambos os lados obedeciam ao script da moda: o fino é ser grosso.

Carros passavam desobedecendo as mais elementares leis de trânsitom roncando motores turbinados e executando sons tribais em alto volume, em suas cavernosas equipagens de som. Animais no cio passavam neles, batendo a mão do lado de fora e urrando. Garrafas de cerveja voaram pelo ar no meio de uma briga e uma clareira se abriu na selva para dois símios se digladiarem usando garrafas quebradas como clavas. A chegada da polícia foi recebida com vaias, que resultaram em golpes de cassetete que fizeram os corajosos brigões caírem de quatro (mesmo com o risco de não conseguirem mais levantar). Bastou uma breve demonstram de poder para os heróis chamarem os polícias de «doutor», na subserviência conveniente dos que já assimilaram o tipo marginal: sabem-se culpados.

A polícia foi embora levando para um passeio ao xadrez os brigões. Um pouco mais tarde seus ricos pais os tiram de lá, devidamente humilhando os soldados que cumpriram seu dever. E o mundo segue com seus ruídos.

Depois da passagem da viatura o agito foi voltando aos poucos, até atingir de novo o nível extremo de antes. É preciso isso. Somente o barulho pode expressar a alma de uma juventude que não consegue ouvir o próprio coração, imerso nesse poço de mediocridade e insensatez. É preciso fazer barulho, muito barulho. Sem barulho não se existe, sem sufocar a voz alheia não se atrai a atenção, sem animalizar-se não há socialização.

Na música animalesca (não mais tribal, mas realmente animalesca), raiva, acasalamento e auto-realização oral. Ao fundo repica a batida insolentemente pré-fabricada que dá cobertura à boçalidade de alguém que decreta a perdição: «‘Tá dominado! ‘Tá tudo dominado!» Não há mais esperança: eles venceram. Está tudo dominado pela mediocridade. Resta-nos o conformismo ou o suicídio.

Sem conseguir encontrar ninguém conhecido e mais uma vez sozinho na floresta perigosa da noite, não tenho remédio senão voltar para casa cedo. Pelo menos nos bairros os ruídos insuportáveis são proibidos após às dez horas da noite, assim posso estar seguro contra a dominação se ficar escondidinho dentro de casa. Sem sequer a curiosidade de olhar o mundo por uma greta.


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